azul azul é o som que pulsa
- Michele Costa

- 24 de out
- 18 min de leitura
Em Formas de Voltar Para Casa (Cosac Naify, 2014), o escritor chileno Alejandro Zambra narra um retorno íntimo e poético ao passado, guiado por lembranças e silêncios após a derrubada de Pinochet. Foi desse livro - e de suas camadas emocionais - que nasceu o primeiro EP da banda alagoana azul azul, lançado em 2019. Se naquele momento o grupo explorava o início da juventude, agora, com o álbum homônimo azul azul (2025), o quinteto habita o presente, mas revisitando o passado para não esquecer a própria trajetória.
Formada em Maceió em 2019 por Mateus Magalhães (voz), Lucas Marques (guitarra), Igor Cavalcante (guitarra), João Gomes (baixo) e Fellipe "Chase" Pereira (bateria), a banda é uma das principais apostas do indie brasileiro da década. Entre o shoegaze, indie rock e pós rock, o som do grupo dialoga com diferentes gerações ao abordar os sentimentos da vida adulta que oscilam constantemente.
"Eu sinto que a Azul Azul nunca vai acabar. Só vai acabar se um de nós morrer ou, sei lá, um matar o outro, porque, enquanto formos amigos, a banda vai existir." Felippe
Leia também:
Formas de Voltar Para Casa possui uma forte ligação com a literatura - inspirado na obra de Zambra - e o cinema. Como esses universos surgiram no processo de composição e até mesmo na criação da banda?
Mateus: Vou tentar começar pelo surgimento então, [enquanto] eu vou pensando aí na conexão com a literatura. Acho que todos nós tínhamos um envolvimento com música já, né? Todos nós já tínhamos participado de bandas - mais o Lucas e mais o Fellipe - e quando o azul azul nasceu já tinha uma trajetória mais consolidada na música. Mas tanto eu, como o Igor, quanto o João, a gente já tinha tido essas experiências. Eu mesmo tinha tido uma banda anterior chamada Pacamã, que foi uma banda que acabou logo depois de lançar o primeiro disco. E eu não era o principal cantor dessa banda, então quando ela acabou, eu estava bem decidido a encontrar essa nova banda para poder assumir esse papel de frontman ali cantando. Eu não lembro exatamente como eu pensei no nome da banda, mas eu sei que o nome já existia quando eu fui falar com os meninos, né? O Igor, ele é um músico que eu conheço, que admiro, sei lá, desde os nossos 15, 16 anos, a gente estudou junto, teve uma iniciação de muitas coisas na música junto e ele também participava dessa minha banda anterior, então de cara eu já fui falar com ele, né? Ele topou na hora. Eu lembro até que a ideia inicial era que tu tocasse teclado, né, Igor? [risos] Não sei se tu lembra disso, se tu tá certo.
Igor: Não lembro, mas acho que eu toquei no primeiro ensaio.
Mateus: E aí terminou que o Igor foi tocar guitarra, que é um instrumento que ele toca na banda até hoje. Depois de falar com o Igor, eu lembro que eu fui falar com o João, que é o baixista da banda, né? Na época ele já era um dos meus melhores amigos também, era um colega de trabalho. E dessa convivência com ele eu já sabia que ele tocava muito bem, era um ótimo baixista, também chamei ele logo pra participar, que já topou. Depois dele fui atrás do Lucas, né? Que também já era um grande amigo meu na época. Ele foi guitarrista da Troco em Bala, uma banda que foi muito importante na cena alagoana. Nessa época o Cabeça [apelido de Lucas] tava muito afim de ter banda, lembro que ele topou bem rápido também. Mas tava faltando uma peça chave, uma peça muito importante pra banda, que era o baterista, né? E desde o início eu também sabia que eu queria o Chase [apelido de Fellipe] nessa banda. Na verdade, acho que desde o início eu sabia que eu queria cada um deles participando desse projeto. Se eles não tivessem aceitado, eu nem sei o que ia acontecer, se de fato ia ter existido essa banda, né? Mas eu lembro que eu tinha deixado pra chamar o Chase mais pro final, depois de ter falado com os meninos, porque na época, até hoje, o Chase tocava umas 10 mil bandas.
Fellipe: Bateristas, né? [risos]
Mateus: E aí eu tava meio certo, né? Porque esse receio tinha uma justificativa ali, porque o Chase no início era meio resistente pra entrar. Conseguimos juntar essas cinco peças pra ter o início da banda.
Fellipe: A gente tinha um convívio também muito pela universidade. Maceió é uma cidade pequena, né? Então as pessoas com interesses em comum meio que inevitavelmente se esbarram, mas a nossa amizade foi se construindo além da música. A maioria de nós estávamos na Universidade Federal daqui, que é a UFAL… Antes da banda, a gente já se via quase todos os dias. Nos intervalos de aula, a gente sempre... As pausas eram sempre juntas. Antes de realmente ter essa parte da música e querer fazer uma banda, já existia essa relação, né? A gente já era muito amigo antes de começar. E eu já tocava com o Lucas na Troca em Bala. Já conheci o Matheus e o Igor de outros carnavais. E o João eu conheci na questão da banda e de cara a gente já ficou muito amigo. Começamos a andar juntos todos os dias.
Mateus: Pior que é, foi um momento bem mágico. Como o Chase falou, além da banda, essa amizade que já existia cresceu muito, né? E é exatamente isso que o Chase falou: gente se via basicamente todo dia, durante uns dois anos, unha e carne mesmo. E enfim, está aí até hoje e acho que vai continuar por um bom tempo.
Fellipe: E a parte da literatura, queria pincelar um pouco. Eu não sou escritor, mas o Mateus, desde muito cedo, ele é escritor, tem livro publicado, acho que você pode falar até disso, Mateus.
Mateus: É verdade, porque antes de me envolver com música, me envolvi com literatura, né? Eu lancei dois livros antes da formação da banda - um livro de crônica, outro de poesia, então, sempre foi um interesse meu. O João também, desde sempre, teve esse interesse simultâneo ali entre música e literatura também… Quando você fez a pergunta, Michele, você tinha citado Formas de Voltar pra Casa, que é o título do EP, e no disco também tem uma relação bacana com literatura, que é uma faixa que inclusive o próprio João foi o compositor, né, que é "Um Parque de Diversões da Cabeça", título do livro Lawrence Ferlinghetti, que é um poeta dos Estados Unidos.
João: É, foi na época que tanto eu quanto vocês estávamos lendo bastante a geração beat, né? Você tava lá no Ginsberg e eu tava no Ferlinghetti. E o que eu achei muito, muito massa no Ferlinghetti foi a maneira como ele fazia os versos, né, que eram bem deslocados, fora da paginação mesmo. Foi o Matheus que me apresentou, talvez, se não fosse por ele, eu não tivesse conhecido tanto quanto eu gostaria desse autor. E a música em si é um resultado do livro, na verdade, porque cada verso é um verso de um poema dele que eu fui pegando de poemas aleatórios que eu fui juntando. Então, foi um trabalho que até um dia desse eu peguei o PDF do Um Parque de Diversões da Cabeça para ir buscando palavras-chave para ir encontrando os versos da música. E, realmente, eu já tinha esquecido como tinha sido esse processo de criação porque cada verso da música é um verso de um poema diferente que eu saí montando e vendo que fazia sentido. Mas, realmente, tem esse laço com a literatura, até Formas de Voltar Para Casa, né Mateus? Tem menção direta a Victor Heringer, por exemplo.
Mateus: É verdade, a gente não mencionou isso, né? Também está ali, bem presente.
Eu não queria ir direto para Victor, mas já que mencionaram ele… Como ele impactou vocês para a construção da canção? Também queria que vocês falassem um pouco sobre a letra, porque fala muito sobre carregar o mundo; vocês acham que ele carregava o mundo?
Mateus: Eu conheci o Victor através do Twitter. Não sei se você chegou a acompanhar ele nessa época, ele tinha umas tiradas sensacionais. E aí, depois de conhecer ele como twitteiro, eu conheci alguns poemas dele que estavam publicados naquele site mallarmargens.com. Não sei se você conheceu esse site, Michele, mas era aquele site de poesia contemporânea. Não lembro o nome do cara que fazia, mas ele fazia um apanhado de muita coisa. Então, primeiro conheci o Victor como twitteiro, depois como poeta e só depois eu fui ler O Amor dos Homens Avulsos (2016), que acho que é o meu livro favorito dele, que é um livro que eu gosto muito. Eu gostava muito dele, mas a música veio e isso é interessante, acho que uma, duas semanas depois da morte dele, na verdade. Muito impactado por aquilo que aconteceu - acho que a figura dele cresceu muito pra mim. E um verso-chave da música, que é "o homem mais lindo do Rio de Janeiro", que foi a partir dele que surgiu o resto da canção, foi no obituário dele que a Folha de São Paulo fez, a Matilde Campilho escreveu, que era uma das maiores amigas dele. Aquilo ficou na minha cabeça e foi um ponto de partida pra fazer a música. Acho que pensando nos temas também, acho que é isso… Era um cara que abarcava muita coisa, muito sentimento nas coisas que ele escrevia e eu tentei trazer isso um pouco pra música também, naquela imagem principal da música, que é imaginando ele no céu, ele rasgando o céu, estreia do céu. Foi muito impactado pela morte dele. E foi uma das nossas primeiras músicas também, né, Igor? Eu lembro que mandei essa letra pro Igor junto com a letra de "Aquele Filme do Rossellini" e as duas saíram no EP.
Igor: Não lembro se foram essas duas primeiras ou foi "Formas de Voltar Para Casa", que é a que dá o título ao EP. Mas acho que foi também uma das primeiras.
O livro de Zambra, que traz o título do EP, traz essa tentativa de retorno para a casa após Pinochet, mas se fossemos pensar no título sem a ideia do livro, dá o sentido de encontrar a casa, o lugar que te faz bem - seja ela onde você nasceu, onde morou, o seu corpo ou sua mente. Hoje, vocês acham que conseguiram encontrar uma casa onde são felizes?
Igor: Eu queria fazer só um comentário que eu acho que tem até um pouco a ver com isso, essa coisa de casa. Eu acho que essa coisa da amizade da gente é um pouco isso. Acho que todo mundo se sentiu confortável juntos, sabe? E é engraçado, tem um fato curioso, que eu não sei se os meninos vão lembrar, mas o livro em si, o objeto, ele rodou pela mão de todo mundo. Eu não sei nem se eles sabem onde é que está o livro, mas eu sei. Eu sei que está aqui em casa. [risos e iniciam um diálogo, relembrando o livro]
João: O Chase veio me devolver Um Parque de Diversões da Cabeça tem duas semanas.
Fellipe: Pois é, teve esse também. Um Parque de Diversões da Cabeça rodou pela galera também. E aí o João comentou, porque eu achava que era do Mateus. Aí o João me falou “não, o livro é meu, e o Mateus nunca me devolveu.” Eu falei “tá comigo” e fui lá e devolvi. [risos]
Igor: E eu acho que também tem uma coisa da própria cidade de Maceió, tem uma coisa meio... É uma capital meio com cara de interior, acho um pouco, todo mundo se conhece. E tem essa coisa familiar, sabe? Tem muito no livro também, essa referência.
Fellipe: Acho que faz muito sentido mesmo. E eu acho que Maceió, acho que não só para a gente, mas acho que para todo maceioense, ela é realmente... Todo mundo... Tanto é que em dezembro, aquela infestação do pessoal voltando, do êxodo, né? Você sempre encontra todo mundo - em dezembro é certo, todo mundo está em Maceió. Então acho que Maceió tem isso, de ser uma cidade que ninguém quer estar, mas que todo mundo quer voltar. Ela tem muito disso.
Lucas: E até a gente que está aqui, tem uma certa época do ano, durante o ano inteiro, a gente fica com essa saudade de casa, que era da nossa juventude, que é quando todo mundo tava junto, e fica ansioso para chegar esses meses de novembro, dezembro e janeiro, porque a gente não vê um monte de gente, e as pessoas vão vir, e a gente vai se sentir mais em casa, mesmo já estando em casa o ano inteiro.

Então, no final das contas, vocês que estão longe um do outro, o fim de ano é um jeito de voltar para casa e voltar para o que vocês criaram também, lá no passado?
Mateus: Nossa, sem dúvida. O Igor mora mais perto, de Maceió, ele vai com mais frequência do que eu. Mas sempre que eu chego em Maceió, uma das primeiras coisas que eu quero fazer é encontrar com esses caras, porque esse sentimento de voltar para casa, de encontrar uma casa, acho que encapsula bem, não só o disco, mas também o momento que a gente vivia, naquela época, sei lá, um início de vida adulta ali, tentando encontrar caminhos, e também meio que foi um prenúncio do que ia acontecer depois, com a pandemia de 2020, aquele período de 2021 ali… E acho que no meio de todo esse caos, enquanto tentava descobrir essa casa, encontrar essa nossa casa, a casa tava ali na criação artística que a gente fez em conjunto, e que sempre que a gente se reencontrar vai estar viva novamente, e vai abrir espaço para novas criações, para novos trabalhos, novos discos, novos momentos juntos também, porque não é só música entre nós, como os meninos falaram, é uma relação que vai para muito além disso.
Igor: Só para não dizer que eu estou mentindo, olha aqui o livro. [aponta o livro Formas de Voltar Para Casa para a câmera]
Mateus: Ele deve ter passado pelas mãos de umas dez pessoas no mínimo, além da banda.
Fellipe: Depois que a gente lançou o EP, teve gente que também foi se interessar, de tipo "ah, esse é um livro? Ah, eu quero ler" e foi atrás.
Ainda falando em "Formas de Voltar Para Casa", na canção, vocês falam muito sobre medo. Vocês continuam sentindo medo dos homens que estão no mundo, ainda mais com a volta da extrema-direita, como Zambra relata em seus livros?
Mateus: Acho que sim, acho que é inevitável não sentir esse medo quando a gente vê algumas coisas hoje no mundo, né? Do genocídio de Gaza a violência crescente nas capitais brasileiras contra pessoas LGBTQIA+, é impossível a gente não ter medo dessas situações e acho que essa ideia tá presente ali de uma maneira mais escondida, mas fica explícita nesse verso que você citou - e acho que vieram muito do sentimento do livro, da questão do Zambra discutir não só o passado, da extrema-direita no Chile, mas como isso se enraizou na sociedade do Chile, assim como o medo se enraizou.
Igor: Eu acho que também tem um fator da desigualdade que a gente tem vivido que passa pela gente por se isolar um pouco… Acho que esse processo de isolamento vai desembocar em uma questão de olhar com medo, com receio, para o outro, independente de quem seja, sabe?
Lucas: Eu acho que a gente vai, cada vez mais, cercados por essas pessoas que a gente tem medo, sabe? Não vou dizer que são pessoas ruins, mas no meu ponto de vista, são. A gente sempre soube que existem células neonazistas, existiam pessoas preconceituosas e que existiam todo esse tipo de gente, só que a gente não sabia que era nosso tio, nosso avô, que era o vizinho, que era gente que tava do nosso lado. Se a gente for pensar desde que tudo isso começou, 2017 ou 2018, essa corda vem sendo esticada cada vez mais. As políticas e as ideias da extrema-direita cada vez mais se radicalizando e essas pessoas que tão coaptadas a terem essas ideias vão se radicalizando juntos. Nesses últimos dias, o pessoal começou a pegar mais no pé de nordestinos também, pessoal falando em separar, não sei o que… É inconstitucional, mas eles plantam a sementinha da ideia e daqui a pouco muita gente ao nosso redor tá com essa sementinha plantada e tá espalhando essa ideia também.
Vocês acham que em um futuro será possível acabar com esse medo?
Mateus: Na minha visão sim, é algo que me faz seguir em frente. Não gosto de abrir mão dessa ideia.
Lucas: Eu particularmente sou um pouco pessimista. Eu tenho a impressão de que só vai piorar e gente vai aproveitando o espaço que a gente tem, procurando formas de se divertir, de ser feliz, de se unir com as pessoas que pensam como a gente e criar coisas juntos. Mas acho que quando a gente tiver sob esse domínio da internet, redes sociais, acho que vai piorar; eu não vejo um horizonte que a gente vá escapar dessas garras tão cedo.
Em "Acordo" vocês cantam que não negociam com artistas porque eles não sabem o que fazem. Vocês, sendo artistas, sabem o que estão fazendo?
Fellipe: Nem um pouco. [risos]
Igor: A gente tem um escape dessa pergunta porque não foi nenhum daqui que escreveu ela.
Mateus: É verdade! [aponta o dedo pra cima]
Fellipe: Eu entendo um pouco dessa linha como um ranço que eu acho que eu tenho também com o lance do artistão, aquele cara que é quase como… Adoro o Gil, Caetano e Chico, mas acho que essa primeira prateleira da MPB ajudou a criar [a ideia] de ser quase como uma entidade, ser um degrau acima dos meros mortais e eu acho que essa linha, de certa forma, dá uma cutucada nisso; a maioria dos artistas querem ser o Gil, o Caetano e o Chico, mas eles meio que só estão tentando ali emular alguma coisa dessa áurea e essa pessoa tá perdidinha do pagode, não sabe o que tá fazendo. Acho que isso é um ranço que é bom de se ter [para] tentar se distanciar desse artista que é uma pessoa que tem alguma dávida…
Mateus: Desumanizado, né? Distanciado das outras pessoas, né?
Fellipe: É como se ele tivesse algo de especial sendo que não. Eu que trabalho com arte e música todos os dias, nunca me senti especial por isso, pra mim, é um ofício como outro - é como dar aula, como é pro Cabeça fazer designer, sabe? Eu sou uma pessoa normal.
Igor: E pra corroborar um pouco com isso, eu acho que uma das coisas mais impressionante - e é motivo de admiração desses três que você citou - é a noção da realidade e não o contrário.
Fellipe: Tem uma coisa: tem um vídeo do Lobão meio que xingando os três…
Igor: Tô ligado!
Fellipe: E eu concordo com o Lobão - é muito difícil concordar com o Lobão - porque eu acho que Caetano, Gil e Chico criaram sim essa áurea, apesar falarem que não, mas acho que foi criado essa áurea ao redor deles sim.
Lucas: Em defesa deles, eles tem um repertório pra criar essa áurea pelo menos, né? O problema é quem tá querendo colocar essa áurea antes de ter qualquer coisa.
Novas bandas estão surgindo. Vocês acham que Deus perdoará esses novos artistas, como cantam?
Mateus: [risos] Espero que fique o exemplo.
Lucas: Acho que não, mas é essencial que não tenha esse perdão e que tenha a sensação de estar fazendo algo errado para continuar com o espírito de rebelião.
João: É o espírito da coisa.
Lucas: Não pode ser conformista e querer fazer o certinho. Essa parada religiosa tá em alta, por isso, às vezes, a gente tem que ir contra essa ideia de Deus e a gente tem que fazer coisas que ele não vai se agradar e não vai nos perdoar.
azul azul: o disco amadurecido da banda alagoana

A azul azul viveu um período sem lançamentos, mas com atividades criativas ininterruptas, com o novo disco sendo gravado por partes entre as cidades de Maceió, Recife e São Paulo, entre 2020 e 2024. "As canções deste disco surgiram logo na sequência do primeiro EP, com uma pré-produção feita em 2020 e que depois, entre 2024 e 2025, deu lugar a uma gravação completamente nova", explica Mateus.
O retorno da banda foi estimulada pela versátil e profícua produção da cena independente que parte de Maceió, além dos fãs que seguiram ouvindo e cantando as canções da azul azul. "Essa movimentação nos deu vontade de voltar a gravar e tocar, além disso, nossa base de ouvintes continua ativa esse tempo todo. Acreditamos que esse disco é também uma resposta à toda essa movimentação dos fãs", aponta o vocalista.
azul azul é mais do que um disco de estreia: é uma declaração de sensibilidade. Ao final da audição, fica nítido que o grupo alagoano não apenas fez um álbum, mas construiu um universo narrativo, onde literatura, cinema e música se dissolvem em uma mesma cor.
Vocês lançaram o EP e depois de seis anos, vocês apresentaram o primeiro disco. Me chama atenção no tempo porque em 2020 o disco estava em pré-produção e entre 2024 e 2025 deu lugar a uma gravação completamente nova. Hoje em dia, vocês estão felizes com a sonoridade do álbum? Esse tempo de espera também foi necessário para amadurecer algumas ideias? Como foi esse processo nos diferentes tempos?
Fellipe: Isso é meio complicado porque eu sempre digo que disco você não termina, você pare. Eu sinto que, obviamente, foi muito bom esses quatro anos parados, mas também foi ruim… Foi bom porque a gente conseguiu ter certeza sobre algumas dúvidas. Não acho que a gente errou o timing porque as músicas funcionam em 2025, não é um disco datado, mas eu sinto que se, talvez, ele tivesse sido lançado em 2021 ou 2022, talvez tivesse um frescor a mais… Eu não sei. Mas já que a gente lançou agora, sinto que a gente ganhou muitas coisas também: ele tem uma sonoridade muito boa, ideias muito boas.
Mateus: Outra coisa importante, Chase, é que em 2021 - você até comentou ontem comigo -, o play que a gente tinha para essas músicas em 2021 era em outro nível porque eram músicas que a gente tava sempre ensaiando, sempre tocando ao vivo, aquele sentimento que a música tá no seu sangue no seu coração, né? Talvez tivesse isso nesse registro se a gente tivesse gravado antes, mas eu não acho que o resultado ficaria melhor no geral, sabe? Até pela possibilidade de ter conseguido polir as músicas melhores, resolver algumas questões de arranjo que na época não tava tão claro pra gente, como você falou.
Fellipe: É, teria sido diferente nesse sentido, a gente tava tocando muito naquele tempo, tava todo mundo respirando aquilo e, querendo ou não, quatro anos de gap deixa as coisas mais mornas. No resultado final deu pra ver que tudo deu certo e foi massa.
É um disco que não é datado, traz sentimentos que não expomos na pandemia e agora, muitas vezes, temos dificuldades para soltá-los. Uma canção que me chama atenção, falando nesse sentido, é “Clifford, o Cão” baseado em um desenho animado, não é tanto da minha época, mas dos meus primos mais novos, e é possível relembrar - pelo título - lembranças do passado. Por que transformar essas mudanças em música?
Mateus: Essa música que você citou é curiosa, porque a primeira música que a gente compôs pra azul azul se chamava “Clifford, o Cão Vermelho” que era uma música totalmente diferente, com outra letra e outros elementos construídos totalmente diferente. Aí entrou em ação Matheus Borges que também é compositor de “Acordo”, do EP. Ele pegou aquela música e deu uma cara nova pra ela. Eu acho que a temática dessa música é uma temática que aparece muito no disco e é justamente o que você comentou - essa memória afetiva combina com essa visão pro futuro. Sei lá, a gente fala muito sobre intimidade no disco, fala muito de memória, fala muito de coisas contemplativas, um tema que tá presente em uma psicodelia e vai muito nessa linha. Falando mais sobre “Clifford”, a gente trabalha com temas que tem tudo a ver com esse momento que a gente vive hoje, a vida adulta, que é falar sobre amigos perdidos, sonhos esquecidos, juventude que tá se distanciando, até no próprio refrão “os anos não vão passar” - esse paradoxo de um lado estar recusando a esquecendo e do outro lado, você tá conhecendo que aquilo tá passando e que é inevitável que passe. Acho que tá mais forte nessa música, mas é algo que eu sinto na temática geral do disco: uma tentativa de preservar experiências contra essa erosão que vem do tempo.
Igor: Pra complementar, acho que essa coisa da dualidade - essa questão da juventude - tá muito presente no som. Tem muita guitarra com aquele fuzz que a gente fez, referência direta a coisas que a gente sempre gostou, por exemplo, o shoegaze, as guitarras do My Bloody Valentine e da própria Lupe de Lupe. É aquela coisa da nostalgia misturada com a juventude.
Vocês têm a sensação de que algo foi perdido e que algumas coisas ficarão em vocês?
Mateus: Acho que como no desenho, onde o cachorro ficava grande, queria muito que acontecesse isso com a gente em algum momento. [risos] Que a gente chegasse em outras pessoas como quem não quer nada, cresceu e conquistou novos ouvintes.
Lucas: Os artistas não sabem. Mas eu acho que a vida tem muito disso, perder as coisas ao longo da vida e ficar tentando recuperar elas, tentando ter um pouco delas de volta.
Fellipe: Acho que esse sentimento, como a gente vem falando durante a entrevista, acho que a banda em si, nossa relação e a nossa obra, é meio que um astro disso também, sabe? De ser algo do nosso passado bonito e também ser uma esperança para coisas grandes, coisas boas.
Como está sendo uma banda afastada que lançou o primeiro disco?
Fellipe: Pra mim, eu achei que ia ser estranho porque a gente era muito ligado alguns anos atrás, mas tá sendo muito gostoso de todo dia ou toda semana, pelo menos, a gente tá conversando sobre a banda, planejando coisas… Eu não tive uma sensação de namoro a distância, sabe? A banda fez a gente se reunir um pouco mais, de tá conversando mais e acho que isso foi algo importante para dar uma reavivada na nossa amizade, na nossa relação. Pra mim tá sendo maravilhoso!
Mateus: Concordo plenamente com o que o Chase falou, mas vou fazer um comentário rápido que acrescenta os dois lados dessa mesma moeda. Pra mim é difícil porque eu queria que a gente tivesse no palco tocando sempre, mas por outro lado, isso dá oportunidade pra gente focar 100% na música, no fonograma, nas composições, no que a gente vai fazer dentro do estúdio, como essas músicas vão nascer e como vão soar… Mesmo estando afastados tem esse presente.
João: Eu particularmente sinto muita saudade, sabe? Como Chase falou, desde que a gente começou a falar mais sobre o disco, Mateus gravando de São Paulo e os meninos aqui de Maceió… O grupo voltou a se falar mais, a comunicação voltou a ser mais natural, mais espontânea para além do compromisso de gravar, né. Eu vejo muitos alunos meus [perguntando] quando vai ter show e aí eu tenho que explicar toda vez “tem um que tá em São Paulo, outro em Recife…” e aí eles ficam “mas vai ter show, né?” e eu respondo que vai rolar um show [coloca a mão direita no peito], vai acontecer, mas ao mesmo tempo é uma saudade que não se torna uma pressão, sabe? Eu fico feliz em saber que mesmo com uma distância considerável dos meninos, até dentro de Maceió mesmo, não significa que a gente vai se encontrar com a mesma frequência como era antes - mas fico feliz ao ver todo mundo se comunicando sobre a banda e também como outras coisas.




Comentários