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Flecha

  • Foto do escritor: Michele Costa
    Michele Costa
  • 1 de jul.
  • 3 min de leitura

Uma flecha é um projétil de madeira ou metálico, pontiagudo e disparado com um arco. É usado para caça, guerra, esporte e literatura. Em Flecha (Editora 34, 2022), Matilde Campilho oferece uma bússola ao leitor ao escrever histórias, imagens e sentimentos a partir de observações silenciosas. Dessa maneira, o título alcança o seu alvo - embora não seja fixo -: o leitor. 


Diferente de Jóquei (Editora 34, 2015), Flecha flui livremente entre o pop e o lírico, entre a cidade e o corpo, entre o afeto e a política. Há humor, há dor, há memória, mas acima de tudo há busca - assim como uma flecha que voa até alcançar o seu destino - por sentido, por beleza, por humanidade. Dessa maneira, a escritora encontra um novo estilo, com mais estrutura e reflexivo. 


"Uma mulher, sem nenhum vestígio de medo no olhar, atira um punhado de pó seco sobre o corpo morto de seu irmão." (página 104) 

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Em entrevista à Quatro Cinco Um, Matilde diz que não escreve poesia há anos, no entanto, é possível ver a poética em histórias nascidas de outras histórias, de livros, crônicas de animais; histórias inventadas e histórias escutadas pela própria autora; microcontos, frases, memórias e pinturas na obra. 


A narrativa da escritora portuguesa caminha pelo mundo: Olinda, São Petersburgo, o deserto da Califórnia e Porto - mostrando que seus versos têm o dom de encontrar leitores onde quer que estejam. Não por acaso, a obra conquistou leitores em diversos países e é celebrada em saraus, redes sociais e traduções. A flecha de Campilho, uma vez lançada, não para: ela continua a voar, atravessando idiomas e tocando pessoas que nem sempre sabiam que estavam esperando por ela.


"Eram onze irmãos. Os seus pais, por sorte, morreram antes de qualquer um deles. Todos cresceram mais ou menos saudáveis, a maioria casou, teve filhos, teve netos. Nenhum dos onze esqueceu a infância alegre em Vila do Conde mas claro que com o tempo foram envelhecendo. E numa ordem meio aleatória foram também morrendo. Um por um, até sobrarem apenas duas raparigas: a quinta mais velha, agora com noventa e oito anos, e a mais nova, agora com oitenta e sete. Falavam todos os dias por telefone até ao dia em que o telefone da mais velha parou de tocar. Nesse dia todos os seus filhos e netos correram para a sua casa. Quando os viu chegar, ela, que passara toda a manhã em silêncio, chorou. Nenhum deles a tinha visto chorar antes. Choraram também. A sua neta do meio sentou-se a seu lado e ela disse-lhe que agora tinham ido todos. Que a irmã era a última da trupe de Vila do Conde e que agora só sobrava ela. Depois fez silêncio outra vez, para dar um espaço à lágrima. Quando a água lhe ia já lentamente a meio do rosto, recuperou o sopro e disse: Acostumamo-nos a tudo, menos à morte. É como um foguete que nos atinge e nos deixa quietos. E ficou quieta, de mão dada com a neta do meio, deixando cair as velhas pálpebras sobre dois grandes olhos azuis, agora cegos. Adormeceu enfim, sem saber que naquele segundo, quase um século depois de nascer, entregara um tesouro simples e fundamental a uma mulher de trinta e seis anos. Essa mulher leva agora a mão ao ventre, e sente remexer-se dentro uma memória vila-condense humana, viva, cheia de futuro."

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