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Simpatia

Foto do escritor: Michele Costa Michele Costa

A expressão "vida de cão" define a última obra de Rodrigo Blanco Calderón. Simpatia (Incompleta, 2024) narra Caracas em colapso, população em fuga. Sob liderança de Nicolás Maduro, os homens se transformaram em cachorros: andam pelas cidades porque não possuem dinheiro para o transporte, desmaiam de fome e encontram meios para continuar vivos. O pertencimento, de ambas espécies, ficou para trás: a violência fez com que donos abandonassem suas casas e seus animais para construir um novo recomeço em outro lugar. 


Segundo reportagem publicada na Gazeta do Povo, alimentos para cães e cuidados veterinários estavam fora do alcance de milhões de pessoas. É sob este cenário que Ulisses Kan recebe a missão de transformar uma mansão em um abrigo para cães abandonados, junto com os ex-funcionários do General Martín Ayala, seu ex-sogro, e um casal de protetores de animais. O casarão torna-se personagem da trama, pois carrega os demais personagens - vivos e mortos. Por isso, a trama assume, por vezes, tons picarescos; em outros momentos, um lirismo insuspeito encontra a brecha para escapar da tensão que solapa o país. 


Assim como os personagens de Homero e James Joyce, Ulisses inicia sua odisseia após receber o comunicado que sua esposa, Paulina, está indo embora. A separação, que soa amigável no primeiro momento, se transforma em uma guerra após Ulisses ser inserido no testamento do antigo sogro. A partir disso, o protagonista vive situações perigosas e traidoras para continuar com sua casa. 


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Simpatia começa com Ulisses conversando com Martín sobre cachorros. Já nas primeiras páginas temos informações importantes sobre a trama: o herói é órfão e segue buscando um lar para pertencer; o general está morrendo e prefere seus cachorros do que seus filhos; Paulina é uma parasita; Medeia, antigo amor, retorna na vida de Kan. São elementos importantes para desbravar o mundo de Calderón que é intenso, contraditório e traiçoeiro - quando nos afeiçoamos com um personagem acontece um ploft twist, deixando o leitor transtornado. 


simpatia
(Angela Mendes e Laura Del Rey)

A obra conta com um toque da literatura fantástica de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar ao questionar o sentido de lar. Inclusive, o que essa palavra significa para um órfão? Essa definição vai além da estrutura que protege os indivíduos, ou seja, casa é a companhia e a segurança que amigos e cachorros proporcionam. "Talvez seja nisso que consista um lar, pensou. Ter vontade de sair só para poder voltar", reflete Ulisses. 


A palavra simpatia, um sentimento de afinidade que atrai e identifica as pessoas, retrata a ideia principal da obra: Simpatia, finalista do The Internacional Booker Prize 2024, compartilha o acordo que duas espécies marginalizadas fizeram para continuar sobrevivendo em um regime repressivo. 



"Porém, às vezes se descuidava, voltava aos livros de Kafka e caía na angústia. Kafka revolvia o conflito da maneira mais impiedosa. Deus existia. Isso não tinha que ser posto em dúvida. O problema era a natureza do caráter de Deus. Nesse sentido, os romances, os diários e as cartas de Kafka eram irrefutáveis. Quando estava de bom humor, Deus transformava num bicho e te prendia num frasco que emulava um quarto e se esquecia de você para sempre. Quando estava de mau humor, te declarava culpado e te torturava com a espera, alimentava a esperança durante alguns dias e por fim te sacrificava. Como um cachorro."


Simpatia - Coleção Capitais & Cafundós 

A coleção CAPITAIS & CAFUNDÓS trabalha com expedições literárias. As rotas são constantemente recalculadas, não há centro. O mapa que temos a bordo nos foi dado por aves migratórias, para quem as fronteiras não existem. 


Metrópoles, vilarejos esquecidos, florestas, desertos, sertões, campos ermos, mundos imaginários sólidos ou esfacelados: os destinos são obras cujo território extrapola o pano de fundo, participando como organismo vivo, tão complexo quanto seus personagens. 


Garanta o exemplar no site da Editora Incompleta.


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