Siso segue em expansão
- Michele Costa
- há 2 horas
- 12 min de leitura
Siso - projeto artístico de David Dines - surgiu na música como quem cutuca um terceiro molar: algo ali precisava sair, incomodar, abrir espaço para um novo jeito de cantar e compor. Desde seus primeiros passos, o artista tem transformado esse "incômodo" em identidade, desenvolvendo uma obra que transita entre brasilidade, indie, pop experimental e eletrônica, a poesia do cotidiano e uma sensibilidade que parece sempre à procura de novas formas de morder o mundo.
Em Terceiro Molar (2016), seu primeiro EP, a metáfora do dente - algo que cresce, pressiona e exige mudança - sintetiza o desejo de expandir linguagens. Assim, Siso construiu um trabalho que mistura camadas eletrônicas, lirismo pop e uma abordagem visual detalhista, criando um universo em que som e imagem são extensões naturais um do outro.
Nos projetos seguintes - Saturno Casa 4 (2017), S2 (2020) e Vestígios (2022) -, o mineiro refinou ainda mais sua escrita e sua pesquisa sonora, abrindo espaço para novas texturas e parcerias que ampliaram seu alcance. Agora, Siso coloca na rua os singles "Sabiá Sabiá" e "Quebra-Mundo", que abrem caminho para o novo álbum, previsto para o próximo ano.
O primeiro, com participação de Tiê, nasceu da necessidade de dizer - e ouvir - que o desalento é passageiro e que as coisas hão de encontrar seu lugar de equilíbrio e valor. Já "Quebra-Mundo", parceria com Luiza Brina, fala de ruínas e desorientações, mas também da reconstrução após o tombo, na busca por uma direção mais honesta.
Com os novos lançamentos, o músico reafirma seu lugar como um artista que transforma inquietações em movimento e que encontra, no risco, um caminho para seguir adiante. Entre dentes que pressionam, pássaros que alçam voo e silêncios que se quebram, ele segue ampliando seu próprio território sonoro, preparando terreno para um próximo capítulo que promete ser tão sensível quanto ousado.
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O título Terceiro Molar, seu primeiro trabalho, sugere a ideia de algo que precisava ser extraído. Como foi o processo de desenvolvimento desse álbum, que mistura tantas linguagens, até chegar ao lançamento? E, de certa forma, ao colocar essa obra no mundo, você sentiu que aliviou o incômodo que um molar costuma causar?
Esse projeto foi um ponto de virada dentro da minha caminhada artística, e tem um tanto a ver com o nome “Siso”, que escolhi pra mim nesse período e acabou virando um apelido. Terceiro Molar como título foi mais um desdobramento da história quase num tom de piada, mas encapsula muito do cerne do meu trabalho.
Resolvi adotar esse nome por notar que minhas músicas tinham um elemento central, que era as dores do amadurecer. De repente o dente do siso, o terceiro molar, virou uma metáfora disso. Siso é uma palavra que se usa como sinônimo de sabedoria ou juízo, mas é um dente que chega rasgando tudo, como um indicador da maturidade do corpo, mas uma maturidade que é também questionável, já que é um dente vestigial - ou seja, não tem mais função na mastigação do ser humano, tanto que tem gente que nasce sem sisos. Ao mesmo tempo, hoje se sabe que os sisos são uma fonte de células-tronco, que podem ser transformadas em novos tecidos de qualquer parte do corpo. É quase como se fosse um veículo do novo dentro de uma coisa muito ancestral. Enfim, uma grande viagem. E sempre vou encontrando novos sentidos que agregam a esse nome. Esse ano descobri que, em iorubá, essa palavra, escrita de forma ligeiramente diferente, significa “provérbio, aforismo”, o que também tem a ver com o trabalho.
Mas o Terceiro Molar surgiu da minha mudança de Belo Horizonte para São Paulo e do meu encontro com o produtor Christopher Mathi, que é meu coconspirador nesse projeto. Levamos um ano e meio pra concluir a produção, que foi feita de uma maneira muito artesanal e experimental. Paulo Beto, do Anvil FX, gravou sintetizadores em “Eclipse” e cedeu um pedaço noise de uma faixa dele para “Clubber do Milharal”, mas o grosso do trabalho era feito no estúdio caseiro do Christopher, e depois eu trazia o material pra casa, finalizava e mixava. Eu morava no centro e ele na Zona Sul, e no longo caminho de metrô e trem sempre surgiam ideias de letras, arranjos, texturas.
Era um período peculiar de nossas vidas e também muito agitado no geral, com o país no centro das atenções com os grandes eventos esportivos, as manifestações, o impeachment esquisitíssimo da Dilma Rousseff, as ocupações das escolas em São Paulo… E também era um momento em que a ideia de um pop brasileiro ainda não tinha uma cara totalmente formada pra nossa geração, já que Anitta e Pabllo estavam no começo de suas caminhadas. O pop BR que marcou a década anterior tinha sua coisa muito eletrônica, de pegada gringa. Então, quisemos propor a ideia desse outro tipo de pop torto, que mesclava muitas referências do Brasil e de fora, junto dessa característica existencialista. Fiquei muito feliz quando essa proposta foi abraçada pelas pessoas, tendo chegado até ao chart viral do Spotify Brasil na época.

Em “Lá Vou Eu Botar Tudo a Perder” você canta que o mundo sempre pisará nos sonhos e, por mais que coloque tudo a perder, você resolve. Hoje, ao revisitar o passado, você conseguiu arrumar as coisas e sonhar?
Arrumar as coisas, cada vez mais. Deixar de sonhar, jamais. Essa canção me relembra de repetidos momentos de vida em que tive que encarar situações complicadas e, pra zelar pelo bem-estar de todos e pela condução adequada de tudo, tive que baixar a cabeça e seguir em frente como se nada estivesse acontecendo, até que a resolução fosse alcançada. No meio do processo, às vezes surgia um ímpeto de mandar tudo à m*rda e assumir um risco destrutivo, só para ter algum tipo de alívio. Mas dois segundos depois, batia a consciência de novo e eu seguia resolvendo o que tinha que resolver, porque havia muito a perder. Mas, no meio de tudo, continuava sempre carregando o sonho comigo, nunca largando a mão dele, por mais árida a condição. Na letra, são os sonhos “de geral” porque quase todo mundo se depara com esse tipo de momento em algum ponto da vida e faz a escolha que cabe na situação.
Nessa questão de arrumar as coisas ao revisitar o passado, sinto que, depois de muita análise, de muita porrada e de muita epifania, me tornei alguém um tanto diferente de quem escreveu essa canção. Capaz de arrumar melhor, sofrer menos, continuar sonhando e acreditando no impossível, mas com mais ferramenta estruturante. Com mais capacidade de agir com os pés no chão, lidando melhor com a expectativa e o acaso, separando melhor o que é do outro e o que é meu. Ao menos em comparação com dez anos atrás. Mas reconheço e acolho a perspectiva dessa música, tanto que eu devo voltar a fazê-la ao vivo, no show do novo álbum.
Saturno Casa 4 traz faixas biográficas. Como foi se expor e colocar para fora as dores?
Era o que eu sabia fazer na época, era como eu sabia operar na minha arte. Cresci fazendo da minha música um lugar de escape e apreciando arte de gente que ia nesse approach auto dilacerante, testemunhal. Na música, os anos 1990 foram um grande celeiro de gente cantando suas grandes dores de maneira pouco ou nada velada. E isso não era só na música, mas também na literatura, no cinema, no teatro e nas artes visuais. Foi o que fiz no Saturno, e o resultado, pra mim, foi uma faca de dois gumes.
Ao mesmo tempo que teve gente entrando em contato comigo dizendo que se via nas canções e houve a possibilidade de criar um espaço de acolhimento, também percebi que alguns dos assuntos-tabus com que eu lidava eram motivos de muito constrangimento. Se o Terceiro Molar foi recebido com surpresa e celebração, o Saturno teve uma reação menos calorosa por conta da temática. Por vezes recebi até um silêncio perturbador, quando não algo na linha da pena. E a sensação de isolamento que isso trouxe provocou uma quebra interna, quase uma retraumatização. Entregar grandes fragilidades íntimas pra algo regido por um mercado pareceu uma armadilha que só depois percebi o que era, e eu sentia um pavor delirante como o de uma presa capturada, mas que foi desprezada pelo predador.
Percebi ali que havia uma falha subjetiva minha, diante desse meu repertório de vida: não se deve expor cruamente na arte uma dor pessoal com uma expectativa de aplauso e acolhimento. As coisas não são assim, as pessoas não estão sempre dispostas a enxergar o incômodo num espelho, ainda mais quando não se reconhecem em certas experiências específicas. É perigoso pra psique humana ir atrás da redenção pelo aplauso alheio, que é o tipo de validação que muitos artistas buscam a qualquer custo. Coisas lindas podem surgir desse gesto, mas o preço a pagar é muito alto. Tem gente que perde a vida nessas, mas eu tenho um grande senso de autopreservação. O mito do artista trágico não é pra mim. Eu gosto do que perdura. O processo de acerto de contas com o traumático precisa ser consideravelmente de ordem íntima pra ser efetivo, e trazer o espetáculo pro meio disso antes da elaboração adequada é algo arriscado, pode bagunçar muita coisa. Depois desse trabalho, me retraí do olhar do público por um tempo e fui direto pra cadeira da psicóloga, e então comecei a desembolar esse novelo de lã. Agora, o espaço pra dor no meu trabalho é só enquanto reconhecimento de algo que é coletivo por natureza e buscando alguma transcendência diante disso. O que me é particular informa o artístico, claro, mas só vira material pro palco ou pro estúdio depois de muita elaboração e entendimento sobre se aquilo vai perpetuar ou não um ciclo de dor, seja pra mim ou pro outro.
O título do seu primeiro disco é ligado à astrologia e ao autoconhecimento. De que forma esse disco dialoga com suas experiências pessoais e com as inquietações do mundo?
Saturno Casa 4 foi feito no meu período do primeiro retorno de Saturno, que todo mundo passa entre os 27 e 29 anos. Tudo o que não é sólido cai nesse período, e dependendo da casa astrológica em que Saturno está no mapa da pessoa, certos assuntos podem ser mais testados. Como eu o tenho na casa 4, tudo envolvia a família, o lar, as coisas estruturantes e o senso de segurança. Naquele momento, esses temas entraram todos em xeque e foram abrindo várias caixinhas de Pandora. Apesar dos pesares, não me arrependo de ter feito um disco dessa forma, porque a honestidade dele é algo que permanece, e creio que seja nesse lugar que ele se conectou e continua se conectando com as pessoas. Além disso, tem certas coisas que são e sempre serão da minha natureza enquanto alguém que cria. Tenho sol quase na divisa da casa 9 para a 10, muitos planetas pessoais regidos por Mercúrio e coisas geracionais importantes regidas por Saturno, então essa coisa inquisitiva e filosófica sempre vai me acompanhar.
Se o passado não importa e o futuro nos acenar, como canta em “Tentação”, o que você espera do futuro?
Hoje me prendo menos a uma visão pré-definida de futuro distante, porque são tempos muito incertos e ansiosos. Diante da tensão generalizada, prefiro suavizar o olhar e prestar mais atenção naquilo que é do presente e num horizonte mais imediato, aprendendo também com as lições do passado. O passado importa, sim, e bastante. Tolo é quem não reconhece que tudo é cíclico. Mas entendo também que, quando criei essa música, minha vida já era de muito passado, de muita experiência difícil, mesmo sendo jovem, então eu ansiava pelo novo, pelo diferente.
Em termos de futuro imediato, tenho muita curiosidade em relação a como o meu próximo álbum, que chega em fevereiro, vai tocar as pessoas. É um trabalho que surgiu de premissas muito diferentes das que eu vinha trabalhando. Ele surgiu de letras, não de melodias, harmonias ou produções, e essas letras vieram principalmente de experiências espirituais e familiares. A sonoridade foi sendo encontrada ao longo do caminho e tem um pé no que já fiz, mas também abre a porta pra algo bem diferente. É um presente com gosto de futuro e passado ao mesmo tempo, e que faz parte de algo maior.
Enquanto expectativa, o que espero é que, no micro e no macro, encontremos meios de cair fora das armadilhas que criamos e possamos escolher viver melhor, em todos os sentidos. Enquanto isso, prefiro saborear o que é de cada momento.
Em S2, você se aproxima de uma estética mais pop e coloca as relações humanas no centro do disco. Esse tema surgiu como consequência da pandemia ou ganhou potência emocional justamente durante esse período?
O interessante é que praticamente todas as canções do álbum já estavam compostas antes da pandemia ser definida como tal pelas autoridades. Esse trabalho seria originalmente coproduzido com o Paralaxe, duo de Belo Horizonte. Estava tudo já combinado, mas o distanciamento social foi decretado um mês antes de entrarmos em estúdio. Todos os planos foram por água abaixo. Preso dentro de casa com aquelas canções, no alto da minha ansiedade, eu só pensei: “vou ter que dar um jeito de realizar isso, nem que seja sozinho, e vai ser agora”. Levantei o disco inteiro em 6 meses, tocando e programando tudo, com vários equipamentos emprestados e uma interação remota ou outra.
A ideia já era a de ser um álbum mais eletrônico e dançante desde o início, e ele é muito uma investigação sobre as dinâmicas de amor, atração, projeção e apego. Acho que o fato de termos que nos isolar nesse período só amplificou esse tipo de experiência e questionamento para todo mundo, muito em função da falta, da ausência. O disco saiu em novembro de 2020 e só foi possível levá-lo para o palco em uma das primeiras ocasiões de reabertura, mais de um ano depois, e foi um estrondo. O primeiro show foi na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, pra uma plateia muito calorosa. Foi a realização de algo que aguardava muito tempo pra vir pro mundo em sua plenitude.
"Quando as expectativas e as premissas prévias se quebram, o que é realmente importante se revela de maneira muito límpida, permitindo que tudo o que é falso e acessório seja descartado em prol de uma energia nova, ainda que com alguma trepidação" sobre "Quebra-Mundo"
Já Vestígios traz releituras de músicas de outros artistas. O que te levou a sair do eu para abraçar o nós?
A coisa de um álbum de releituras de bandas underground dos anos 2000 e 2010 era uma ideia que tinha havia bastante tempo, mas deixava em segundo plano em função dos projetos autorais. Sentia que muita coisa preciosa havia sido produzida nesse recorte temporal e que, com as mudanças tecnológicas, muito do contato e da percepção de relevância desse material havia se perdido, principalmente considerando gerações mais recentes, que não puderam saber do contexto original em primeira mão. Em 2022 me veio o ímpeto de realizar essa ideia, creio que até por buscar uma experiência diferente do que foi a produção do S2, que foi muito isolada. Chamei vários produtores amigos e coloquei uma música na mão de cada um, alguns com elementos já rascunhados, outros como uma espécie de desafio. Foi uma experiência peculiar, até por ser ainda um período de adaptação no fim da pandemia, então muito do trabalho continuou sendo feito remotamente. Vestígios foi apenas um recorte afetivo de uma cena muito rica, e fico feliz que tenha inspirado outros artistas a fazer o mesmo exercício depois.
Ao mesmo tempo em que explora o íntimo, suas composições capturam sensações compartilhadas da experiência contemporânea: ansiedade, relações, conexão e estranhamento. Como é transformar essas percepções do coletivo em música?
Vejo o fazer artístico bem como o David Bowie descreve naquele vídeo conhecido: é algo que se faz como uma forma de se entender melhor no mundo e, por consequência, entender melhor o mundo, e não apenas como uma peça ou produto feito para encaixar no prazer do outro. Ele também afirma, e eu concordo, que é preciso manter-se enquanto artista num lugar trepidante, desconfortável, pra conseguir acessar algo de diferente. Vejo que o jeito como consumimos música na internet hoje é estruturado de uma maneira que privilegia aquilo que acessa só o centro do prazer, de maneira descomplicada. Quanto mais direto e simples, melhor. Tem coisas boas que surgem disso, mas é uma abordagem limitada, que às vezes propicia palco pra coisas absolutamente previsíveis e desinteressantes, que viram tendência e muitos artistas seguem só pra não acirrar os ânimos do público. Daí, vários ouvintes passam a esperar menos da música em função disso. Passam a não vê-la mais nesse lugar de acesso ao transcendente, àquilo que ainda não se sabe articular, colocando-a só no plano da funcionalidade simples, de trilha sonora de uma atividade, de algo pra preencher o silêncio e não incomodar, não fazer pensar, nem sentir nada de diferente. Se for pra ser só assim, o artista que escolhe esse caminho de inércia, dependendo do contexto, pode correr o risco de colaborar pra depreciação histórica e estrutural de seu trabalho, diante das coisas criadas por inteligência artificial. Claro, vivemos tempos de sobrecarga de informação e os ouvintes buscam algum alívio dopaminérgico, mas quero acreditar que continua havendo valor em acessar outros tipos de emoção e pensamento por meio da música, partindo do pessoal como um indicador do que se passa no coletivo. É uma forma de reconhecer-se no todo e pode servir no difícil processo de elaborarmos juntos as nossas mazelas compartilhadas. Essa é a minha aposta.
O tempo é um elemento importante em suas obras: representa memórias, fantasmas, caminhos e futuro. O que você busca registrar ou preservar quando compõe?
Acho que todo artista busca o instante que se faz eterno. Aquilo que faz parte de um contínuo, que orna com o todo de uma maneira especial e que vai continuar a ser cantado por gerações. Aquilo que diz do eu, mas também do todo. Aquilo que diz do agora, mas também do que foi e do que será. Eu busco registrar a experiência humana a partir do meu filtro e julgo que nenhuma experiência é totalmente individual. Talvez aquilo que eu mais busque registrar seja o fenômeno do transformar, do mudar de ideia, do decidir algo de diferente e melhor pra si e pro seu contexto. Talvez o que eu desejo com minha música seja possibilitar a desobediência àquilo que se entende como sina.
