O universo emocional de Janu: amor, brega e outras delicadezas
- Michele Costa

- há 5 dias
- 9 min de leitura
O alagoano Janu construiu, ao longo de sua trajetória, um universo próprio em que o brega não é apenas referência estética - é linguagem emocional. Em suas canções, o gênero se desdobra em múltiplas formas: ora como afeto melódico herdado das rádios populares, ora como ironia fina que ilumina o drama cotidiano, ora como poesia sentimental. Assim, o artista transforma o brega em matéria viva, expandindo-o para além do clichê e revelando sua força como expressão cultural brasileira.
Em seus discos - Lindeza (2015), Lindeza Pt. 2 (2016), Miolo do Oxente (2022) e 10 Super Sucessos (2024) - Janu brinca com tradições sonoras ao abraçar a simplicidade do romântico com arranjos sofisticados. Entre psicodelia, texturas, símbolos e imagens, o músico coloca o amor como eixo central de sua obra. Seja na forma de encanto, desilusão, desejo ou vulnerabilidade, o sentimento surge como guia: Janu canta amores possíveis e impossíveis, amores que doem e curam, amores que lembram ao ouvinte que sentir é um gesto de coragem.
Agora, o versátil músico apresenta a inédita "de todas as coisas", parceria com a artista arapiraquense Laura Emília. A faixa é uma sofrência requintada, coroada pelos versos em espanhol de Laura, e dá sequência aos caminhos que Janu vem desenvolvendo em sua obra.
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Lindeza, dividido em dois trabalhos, traz diversas participações para celebrar à imagem feminina a partir de influências locais, regionais e brasileiríssimas. Como foi fazer esses discos entre amigos?
Lindeza foi um marco pra mim. Eu já tinha lançado o EP Matuto Urbano (2011), mas foi nesse disco que eu realmente entendi o que era construir uma obra cercado de gente que eu admiro. Trabalhei com um monte de amigos - e muitos deles seguem caminhando comigo até hoje. Paulo Franco, Wado, Ítallo França, as Destaladeiras de Fumo de Arapiraca… essa turma toda não só deu forma ao disco, como também continuou ecoando na minha vida. Inclusive "O Teu Sorriso", que fiz e gravei com as Destaladeiras, virou quase um amuleto: está em filme, programa de TV, desfile… já ganhou várias versões e segue me acompanhando como se fosse um fio de encanto abençoado pelas Mestras.
E Lindeza é exatamente isso que você disse: um mergulho em influências brasileiríssimas, locais, regionais. Fazer um disco cercado de amigos deixa tudo mais vivo, mais honesto.
Além do título nos dois álbuns, a palavra lindeza aparece em duas faixas. Qual o significado dela para você? Onde você enxerga outras lindezas?
Na época, eu usava "lindeza" como gíria mesmo. Era uma palavra que escapava da minha boca o tempo todo, e acabou virando título, conceito e até produtora. Depois do disco eu até dei uma pausa nessa mania hahaha, mas no fundo a palavra sempre ficou comigo porque ela tem um brilho especial. Para mim, "lindeza" fala muito dessa alma feminina que eu sempre admirei. E não é sobre romance, como já acontece em 10 Super Sucessos... E eu vejo lindezas em tanta coisa. No jeito que alguém conta uma história, adoro ouvir. No cheiro do almoço que escapa na rua quando a gente passa andando. No canto das Destaladeiras batendo no peito da memória. Nas pequenas bravuras de quem segue, mesmo cansado. Em qualquer pessoa que cria, que cuida, que sustenta o mundo com um gesto bonito. Lindeza é isso: aquilo que emociona sem fazer alarde.
Em "Finjo Esquecer" você canta “tudo que não der, eu peço a deus.” Você ainda pede algo à ele? Se sim, o que?
Eu gosto muito dessa música. Ela tem uma inspiração forte na banda Mopho, e a participação de Ítallo França deixa tudo ainda mais bonito. "Finjo Esquecer" é dessas faixas que nasceram meio sussurradas, mas carregando um peso doce, sabe? Minha relação com Deus é bem amistosa. Sempre foi. Eu nunca fui muito de pedir nada, porque na minha cabeça ele já tem coisa demais pra resolver nesse mundão. Parece até falta de educação ficar enchendo o saco com algum capricho. Mas eu agradeço. Sempre que sinto alguma coisa se movendo, alguma proteção acontecendo, algum rumo se ajeitando. Agradeço pelas pessoas, pelos encontros, pelos desvios que dão certo. É essa troca silenciosa que me acompanha.

Já na faixa "Ele Desapareceu" você reforça que "a vida é feita de se arriscar", mas sem poder parar no meio do caminho. Enquanto você continua se arriscando para onde imagina que seu caminho pode te levar?
Engraçado como eu volto pra essa imagem do caminho em muito do que escrevo. Depois percebi que no Miolo do Oxente isso já estava meio escancarado. Em "Direção" eu canto que vou seguir minha direção. Em "Só" eu digo que vou sem pressa de te encontrar. Em "Vey" tem aquele conselho carinhoso de "segue em frente e vai, sei que nada mais te machuca, vey." É como se o tema fosse me puxando pela roupa o tempo inteiro.
E a verdade é que viver é muito sobre se arriscar. A gente arrisca nossa vida a todo momento - seja numa viagem de carro ou num gole de uma bebida adulterada. Mas ai já fica bem profundo, né? Eu venho me arriscando até fora da música e tem funcionado. As trilhas de filmes que apareceram, os livros infantis que eu nunca planejei lançar e que agora tem dado bom por aí. Sigo me deixando surpreender por essas outras portas que se abrem.
Sobre o caminho, eu imagino mil possibilidades, e às vezes percebo na hora que uma delas está acontecendo. Tento sempre não perder esse prazer de ver sonhos virando realidade, por menor que seja. No fim das contas é uma das coisas que me move. Seguir em frente e ir. Com muita fé no movimento.
Em "Povo Brasileiro" você se retira da vida pulsante para questionar o ouvinte quando foi que ele parou de sambar. Como surgiu essa canção reflexiva? Aliás, ela foi o start para fazer o mergulho para Miolo do Oxente?
"Povo Brasileiro" nasceu de uma inquietação muito específica. Eu senti que algo muito profundo aconteceu na Copa do Mundo de 2014. O brasileiro viu no 7x1 uma humilhação coletiva, quase um rompimento simbólico. Futebol sempre foi uma das razões da vida de muita gente. Torcer é brasileiro. E naquele dia parece que o país inteiro perdeu um pouco do brilho, da ginga, do samba no corpo. Essa sensação virou faísca para a letra.
Em 2018 eu também estava lendo o livro O Povo Brasileiro, do Darcy Ribeiro, e aquilo expandiu minha visão sobre quem somos como formação, mistura, contradição e esperança. Misturou-se tudo. A derrota, o desencanto, a leitura do Darcy, a vontade de fazer um comentário mais duro a polarização que se iniciava e as conspirações que tomavam conta das conversas. Até o uso da camisa da seleção virando símbolo de um dos extremos.
De alguma forma, "Povo Brasileiro" foi mesmo o primeiro passo do que eu achava que seria um disco político. Minha ideia inicial para o Miolo do Oxente era essa. Queria registrar aquilo em música. Mas a pandemia chegou e o mundo virou do avesso. As coisas de dentro pediram mais urgência. O disco deixou de ser político e virou existencial. A crítica virou introspecção. Mas falar de nós mesmos também pode ser um ato político, certo?
Por mais que Miolo do Oxente tenha sido feito durante a pandemia, não é um disco datado, pois as letras pessoais seguem ecoando nos dias de hoje. Como foi o processo desse disco? Ao revisitar as raízes para ir além, conseguiu se conhecer melhor?
O processo de fazer o Miolo do Oxente foi muito diferente. O que eu escrevi ali não era sobre o momento. As letras continuam ecoando porque são questões que eu ainda carrego e que muita gente também sente. Solidão, ego, pertencimento, direção, movimento, dúvida, coragem. São assuntos que não envelhecem.
Quando comecei o projeto, eu pensava em fazer um disco político. O próprio nome nasceu assim. Li um texto de um professor de Alagoas (Davi Sales), usando a expressão "miolo do oxente" para criticar a política local, e aquilo ficou martelando na minha cabeça. Até escrevi algumas coisas sobre identidade, formação e do Brasil profundo. Tudo apontava para um caminho mais crítico.
Só que: a pandemia. Eu me vi isolado, produzindo à distância com Paulo Franco, montando beats e harmonias que iam e voltavam pelos arquivos. Quando 2020 e 2021 chegaram, a pandemia obrigou todo mundo a se olhar no espelho, e esse espelho acabou moldando as músicas. Por isso ele virou um disco existencial. Revisitar as raízes foi o ponto de virada. Eu tinha referências mais indie, ouvindo muito MGMT, L'imperatrice e num certo momento percebi que faltava pertencimento. A visita a uma comunidade litorânea de Alagoas, Poxim, me lembrou da força do meu chão. Foi aí que o disco puxou o beat nordestino, trouxe piseiro, trouxe a sanfona, trouxe esse cheiro de terra quente. A manifestação do Mané do Rosário me influenciou, inclusive esteticamente, eu usava um chapéu com renda durante as apresentações. E quando eu abracei isso, o disco encontrou seu corpo.
No fim das contas, fazer o Miolo do Oxente me fez me conhecer melhor. Eu fui entendendo quem eu era como artista, como nordestino, como pessoa em conflito e movimento, sem participações e inclusive me aceitando mais como "cantor". E percebi que, mesmo quando não estou falando de política nas letras, minha melodia carrega um posicionamento. Tento com meu som reafirmar um Nordeste que é moderno, múltiplo, popular e experimental ao mesmo tempo.
A mensagem de seguir em frente segue presente nesse disco. Após o isolamento social, você conseguiu ir adiante?
Eu sinto que sim, consegui ir adiante. Não de uma vez, mas passo a passo. Fui me reencontrando como artista, abrindo portas que eu nem imaginava, vivendo experiências que nasceram justamente daquela pausa forçada que o mundo deu. As trilhas de filmes, os livros infantis, os projetos culturais, tudo isso foi acontecendo porque eu continuei caminhando.
Quando as coisas começaram a abrir e as fronteiras voltaram a respirar, eu fui logo fazer um mochilão pela América Latina. E mexeu comigo de um jeito massa. Caminhar por outros países, ouvir outros ritmos nas ruas, sentir o pulsar do povo… aquilo abriu meu peito e meu ouvido. A latinidade me pegou pela mão e disse que eu também fazia parte dessa mistura. Foi uma virada que influenciou demais o que veio depois. E acho que é isso que eu levo comigo. A vida não pede que a gente tenha certeza, pede que a gente se mova. O disco fala muito disso. De entender o próprio ego, de reconhecer que nada gira só ao nosso redor, que o universo é bem maior que a nossa cuca, vey. De olhar o mundo com mais humildade e, ainda assim, continuar. Caminhar, tropeçar, aprender, levantar e seguir. Sempre seguir.
O amor está presente em suas canções de diferentes maneiras. Por que ele é tão importante para você e para o seu brega?
Quando eu comecei a pensar no conceito dos 10 Super Sucessos eu já sabia que o mote principal seria o amor e os relacionamentos. Todo bom brega fala disso. É um gênero que vive desse drama gostoso, do exagero emocional, da dor que dança e do romance que se derrama. Então eu fui compondo e alinhando as letras pra essa ideia, trazendo também os termos e comportamentos da nossa contemporaneidade. Tem o love bombing em "Eu Quero Ser a Razão da Sua Vida", tem o ghosting em "Me Ignora" e em "Brega Bem Vadio", tem o status do ser emocionado que aparece em "Jasmin". Era importante atualizar essa linguagem do amor, porque hoje a gente vive e nomeia essas coisas de outro jeito - mesmo sendo as mesmas coisas sentidas e cantadas por Reginaldo Rossi ou Nelson Gonçalves.
E no fim das contas, amor é importante pra todo mundo. Ele atravessa, marca, ensina, derruba, levanta. Pelo estilo das músicas, ele tinha de ser o epicentro das composições. O brega pede isso. Ele quer o coração na boca, quer sentimento derramado, quer verdade. E eu acho bonito poder transformar tudo isso em música. É como se cada faixa fosse um pedacinho dessa grande novela que todo mundo vive, mesmo quando finge que não.
O brega aparece nas suas músicas de um jeito muito afetivo e nada caricatural. Quando esse estilo entrou na sua vida?
O brega entrou há um bom tempo. Desde sempre eu consumi, sou nordestino, interior de Alagoas. Lá em 2012 eu já tinha feito Brega da Obsessão, que a galera gosta muito até hoje. Ela entrou no meu primeiro EP, Matuto Urbano, e depois eu regravei em Lindeza. Então esse estilo já caminhava comigo bem antes de virar conceito nos 10 Super Sucessos.
Eu sinto que o brega é uma base nossa, quase uma linha direta com a latinidade que corre no Brasil. E ao mesmo tempo ele é um pouco do nosso rock, no sentido de ser um gênero que grita, que sente, que se joga, que não tem medo de entregar emoção. Pra mim, Reginaldo Rossi é mais Rei que Roberto. Ele abriu portas, moldou um imaginário inteiro e mostrou que exagero também é elegância quando vem acompanhado de verdade.
E nas minhas músicas o brega aparece desse jeito afetivo porque é assim que eu o vivo. Não como caricatura, mas como identidade. Como algo que faz parte do meu sotaque, da minha memória e da forma como eu entendo o amor e a música. Ele não é elemento decorativo, ele é raiz. É sentimento quente. É Brasil. É América Latina.




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