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  • Foto do escritorMichele Costa

Desalinhando Andrei Tarkovsky: o cineasta da vida

Vida: [1] Atividade interna por meio da qual atua o ser. [2] Duração das coisas, existência. [3] União da alma com o corpo. [4] Espaço de tempo entre o nascimento e a morte dos seres vivos.


No livro "Esculpir o Tempo" (Martins Fontes, 2010), Andrei Tarkovsky explicou o motivo de retratar a vida - união da alma com o corpo, a existência - do indivíduo em seu cinema: "No que me diz respeito, só admito um cinema que esteja o mais próximo possível da vida - ainda que, em certos momentos, sejamos incapazes de ver o quanto a vida é realmente bela". Talvez, o diretor tenha sido influenciado inconscientemente ao trabalhar com esse tema pelo pai Arseny que foi um dos grandes poetas modernos na Rússia e sua mãe Maria Inanova que era atriz - afinal, a arte retrata a vida, deixando o dia a dia mais leve.


A filmografia do cineasta é curta, apenas 7 filmes, mas os efeitos estão presentes até hoje. Vale relembrar que Tarkovsky morreu cedo, aos 54 anos, em Paris, após um câncer - que dizem, que desenvolveu a uma contaminação química adquirida nos locais de gravação de "Stalker" (1979). Tenho a teoria de quem assiste o filme de Tarkovsky nunca mais será o mesmo. É impossível seguir a vida sem se ver nos filmes do diretor.


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O primeiro contato que tive com o diretor russo foi com o pôster de "Nostalgia" (1983), meu filme favorito. Em preto e branco, acompanhamos o rosto de uma mulher ilhada, onde seus olhos carregam a nostalgia dela, do mar, de onde está. Assisti ao filme após analisar minuciosamente o pôster. Lembro de prender a respiração em diversos momentos, me perder em todo o simbolismo de Tarkovsky e me ver, de algum jeito, consciente ou não, a jornada do poeta Andrei Gorchakov pela Itália. O "1 + 1 = 3" da parede da casa abandonada, destruída, me fez chorar. Não é um filme fácil de assistir, principalmente quando você se vê no protagonista e percebe que a nostalgia também está dentro de ti, vazando, despedaçando, seguindo os passos do filme.


Ainda em "Esculpir o Tempo", Tarkovsky fez uma análise sobre o filme, mas destaco um curto período: "(...) Agora, Nostalgia ficou para trás. Quando comecei a fazer o filme, nunca poderia imaginar que a minha própria e particularíssima nostalgia em breve tomaria posse da minha alma para sempre."


Consigo compreender quando uma pessoa me diz que não consegue assistir um filme de Tarkovsky. Não é para todo mundo: com a teoria do seu cinema, "esculpir o tempo", o diretor oferece a verdadeira característica do cinema - o tempo. Com ele, o cineasta adapta nossa percepção de tempo para dentro do plano que apresenta. Me pergunto se Tarkovsky tinha a intenção de fazer com que o telespectador visse três realidades: a sua vida, a vida do diretor e das personagens que seguem o enredo.


"(...) Nunca consigo entender que significado pode ter, para nós, o conceito de "felicidade". Será, por acaso, satisfação? Harmonia? Mas o homem está sempre insatisfeito, pois nunca esta voltado para alguma finalidade concreta e definitiva, mas para o próprio infinito. (...)"

Anos depois, fui assistir "O Espelho" (1975), um filme autobiográfico que traz as memórias do diretor com cenas ficcionais e os poemas do seu pai que lê na trilha sonora. Lembro de ter odiado. Odiado! Xinguei o diretor que tanto admirava diversas vezes. Dizia para todos que era o pior filme, "duas horas jogadas fora da minha vida"... Então, com o passar dos dias, descobri o motivo que odiei - eu me vi no filme. E ao se enxergar nas diversas questões que Tarkovsky relata, dói.



Em seus diários, Tarkovsky escreve sobre o processo do filme e também das cartas e críticas que recebeu. Eu poderia colocar alguns pontos aqui, mas trago, mais uma vez, anotação de "Esculpir o Tempo":


"Uma operária de Novosibirsk escreveu: "Na semana passada, vi o seu filme quatro vezes. E não fui ao cinema simplesmente para vê-lo, mas, também, para passar algumas horas vivendo uma vida real, com artistas e seres humanos verdadeiros. … Todas as coisas que me atormentaram, tudo o que não tenho e desejaria ter, que me deixa indignada, enojada ou que me sufoca, todas as coisas que me iluminam e me aquecem, e pelas quais vivo, e tudo aquilo que me destrói - está tudo ali, no seu filme; vejo-o como se num espelho. Pela primeira vez na minha vida um filme tornou-se algo real para mim, e é por essa razão que vou vê-lo: quero impregnar-me dele, para que possa realmente sentir-me viva."



"(...) Tenho medo dos funerais! Mesmo quando estavam enterrando minha avó eu permaneci apavorado. E não porque ela morreu, mas porque havia gente por ali que expressava seus sentimentos. Eu não posso olhar para as pessoas que expressam os seus sentimentos. Mesmo se são sinceros. Está além das minhas forças: quando meus parentes expressam sentimentos. Eu me lembro que estávamos com meu pai perto da igreja, esperando o momento de tirar o caixão com minha avó (celebravam a missa de réquiem e enterravam-na em um lugar diferente), e o meu pai disse (não importa por qual razão): "O bem é passivo. E o mal é ativo" (...)
(...) Mas fico paralisado e não consigo expressar meus sentimentos. O meu amor é um tanto quanto inativo. Eu só quero, talvez, ficar sozinho em paz, ser esquecido. Não quero contar com o amor deles e não quero nada deles, e não procuro mais nada além da liberdade. Mas não há liberdade e nunca haverá. (...) Eu não sou santo nem anjo. Mas um egoísta que, mais que qualquer outra coisa no mundo, tem receio da dor daqueles que ama. Vou ler Hesse." (Diários: 1970 - 1986)

Quando comecei a ler os "Diários: 1970 - 1986" (Realizações Editora, 2011), senti que poderia chegar mais perto daquele diretor que contou, nas entrelinhas, sobre meus sentimentos, minha vivência. Com o passar das páginas, Andrei Tarkovsky se torna uma criança com medo, suplicando por um abraço, pelo merecimento, por amor. Como é possível um diretor que carrega tanto dentro de si se sentir assim?! Me lembrei de Alexander, protagonista de "O Sacrifício" (1985) que vê suas preocupações sobre a humanidade se concretizarem quando eclode a Terceira Guerra Mundial. Tarkovsky, assim como Alexander, estavam disponíveis em oferecer um sacrifício para que Deus impedisse a guerra. Morrer pelos outros. Sacrifício.


"Um dos meus maus pensamentos: ninguém precisa de você, você está completamente alheio à sua própria cultura, você não faz nada por ela, você é uma nulidade. Mas na Europa, e em outros lugares, perguntam a sério: "Quem é o melhor diretor de cinema da União Soviética?" E respondam: "Tarkovsky". Mas em nosso país guardam silêncio. Eu não existo, e não sou nada. É o chamado "um instante de fraqueza". É muito difícil sentir que se é inútil. E não quero ter valor nenhum. Quero preencher completamente a vida ou as vidas das pessoas. Estou apertado, a minha alma está apertada, preciso de algum outro recipiente." (Diários: 1970 - 1986)

Sabendo que a vida é um "espaço de tempo entre o nascimento e a morte dos seres vivos", Andrei Tarkovsky tem o mesmo desfecho de Alexander: o ato de criar também um ato de sacrifício. O diretor russo compreendeu o ser humano e apresentou nossos erros em suas obras.

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