Vida, velhice e morte de uma mulher do povo
- Michele Costa
- 2 de set.
- 3 min de leitura
Em algum momento da vida, um médico ou um familiar decreta que a existência de um idoso chegou ao fim de sua utilidade social — e, então, decide interná-lo em uma casa de repouso. O envelhecimento, em nossa época, parece ter se tornado um ato proibido: envelhecer é quase uma transgressão. Paradoxalmente, os números avançam em outra direção. Segundo a Divisão de População da ONU, em 2024 cerca de 588 mil pessoas completaram 100 anos de vida. É nesse contexto que Didier Eribon publica Vida, velhice e morte de uma mulher do povo (Âyiné, 2024), obra que cruza biografia, sociologia, literatura e filosofia. O livro não apenas registra o luto de um filho pela mãe, mas denuncia o apagamento social que recai sobre os corpos envelhecidos, sobretudo os pobres.

"Eu tinha prometido à minha mãe que estaria presente no dia em que ela se mudasse para essa casa de repouso", escreve Eribon no segundo capítulo. A promessa é o ponto de partida para a reconstrução de uma vida atravessada pela marginalização, que se entrelaça com a trajetória do próprio autor. Nesse gesto de rememorar, a memória deixa de ser apenas homenagem íntima: transforma-se em resistência política contra a desigualdade estrutural que condena tantos ao esquecimento. "Sua <<doença>> chamava-se velhice, a casa de repouso seria a partir dali sua <<prisão>>."
Sabemos que não é fácil envelhecer: além da pressão da sociedade, os cabelos brancos, as marcas no rosto e o ritmo mais lento deixam de ser vistos como sinais de experiência e passam a carregar o estigma da perda. Envelhecer é um aviso que a morte se aproxima.
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A escrita de Vida, velhice e morte de uma mulher do povo não busca a catarse, mas a elaboração — não apenas da ausência da mãe, mas daquilo que ela representa como símbolo de uma geração esquecida. Ao mesmo tempo, o livro desnuda a tensão entre a ascensão intelectual do autor e a permanência da mãe em um mundo distante de seu reconhecimento acadêmico. Essa fratura de classe, explorada com rigor e sensibilidade, confere ao texto uma dimensão incômoda: o luto individual nunca é separado das fronteiras sociais que o definem.
A velhice é retratada como uma espécie de sentença: não fruto de doença específica, mas consequência do próprio tempo, que a sociedade insiste em tratar como falha, incapacidade ou peso. Ao chamar a velhice de "prisão", o autor escancara a violência simbólica que atinge tantos idosos — especialmente mulheres pobres, cuja contribuição social é apagada, restando-lhes apenas o silêncio e a reclusão institucionalizada. Citando Simone de Beauvoir, Annie Ernaux e Albert Camus, Eribon nos obriga a olhar para o que preferimos esquecer.
"À medida que envelhecemos, aquilo a que Erving Goffman chama o <<território do eu>> - o conjunto de direitos, lugares, espaços e relações que definem quem somos - diminui inevitavelmente. E, quanto mais envelhecemos, mais esse <<território>> encolhe de maneira progressiva, restringindo-se a muito pouco. O que resta do <<eu>>, o que acontece ao <<eu>> quando já não lhe resta quase nada do seu <<território>> de antes, e sobre esse pouco já não tem nenhum ou praticamente nenhum controle?"
Além de lançar mão da memória para reconstruir a trajetória de sua família, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo expõe também a culpa de um filho que deixou a casa cedo, em busca da própria liberdade, e acabou se afastando de uma família que não o acolhia plenamente. Mas o livro não se limita a esse distanciamento: ao longo das páginas, Didier Eribon revela o afeto profundo por sua mãe e a ressignifica pela escrita, conferindo voz, dignidade e poder a essa mulher do povo tantas vezes silenciada pela sociedade.
"(...) Porque viver é estabelecer uma relação com o tempo, com a temporalidade e, claro, com a espacialidade: ter a capacidade de se projetar no tempo e de se deslocar no espaço. Mas a idade, quero dizer, a velhice, a velhice muito avançada, modifica, depois anula e destrói totalmente essa relação ontológica com o espaço e com o tempo. O fechamento da espacialidade e a aniquilação da temporalidade fazem desaparecer, pouco a pouco, aquilo que define as próprias condições da existência humana. (...)"
Cinquenta anos após o advento do "culto à juventude" como modelo hegemônico de vida, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo é um lembrete incômodo e necessário: envelhecer é inevitável, mas ser invisibilizado não deveria ser.
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