Tiaslovro: a travessia pela música e imaginação
- Michele Costa

- 3 de set.
- 8 min de leitura
Em Grande: Sertão Veredas (1956), João Guimarães Rosa utilizou a palavra travessia diversas vezes para expressar a caminhada existencial de Riobaldo, protagonista da obra. Sessenta e nove anos depois a palavra retorna na obra de Tiaslovro, onde suas canções, concebidas com sensibilidade audiovisual, constroem uma narrativa quase cinematográfica, onde cada som parece abrir uma janela para outro tempo, outro ritmo, outro olhar.
Entre o caos urbano de São Paulo e a contemplação da natureza em Florianópolis, o artista encontrou no indie folk contemporâneo um terreno fértil para construir atmosferas poéticas e cinematográficas. Portos do Reino, seu primeiro EP, equilibra intimidade e amplitude, oferecendo ao ouvinte a sensação de atravessar paisagens internas e externas em constante movimento.
Produzido por Caio Nazaro e Teco Costilhes, o trabalho de Matias Lovro, nome por trás de Tiaslovro, nasceu da simplicidade de violão e voz, expandindo-se em camadas etéreas, percussões orgânicas e arranjos delicados. Dessa maneira, cada faixa é apresentada como um porto: um ponto de pausa e de partida, onde a escuta se transforma em ritual. Suas canções atravessam épocas e realidades diferentes, oferecendo à escuta não apenas canções, mas caminhos de reencontro.
"Desde que compus essas canções, e a cada vez que toco ou mesmo penso nelas, enxergo imagens, como se fossem cenas de filmes - especificamente, de animação. São pinturas em movimento de cenários fantásticos, de alguma outra realidade. Eu venho do cinema e penso em histórias audiovisuais há muito mais tempo do que em música. Depois que essas canções vieram, fui entendendo que essas histórias que quero contar podem ser bem mais ricas se projetadas na imaginação das pessoas, ao invés da tela de algum aparelho. Na imaginação elas são infinitas, e cada um cria seu próprio sentido e suas imagens pra cada uma. Sinto que as músicas de Portos do Reino transitam nesse lugar."
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As cinco faixas de Portos do Reino são atravessadas por referências implícitas às teorias de Joseph Campbell e Carl Gustav Jung, pensadores que exploraram, cada um a seu modo, os mitos universais e os arquétipos que habitam o inconsciente coletivo. Essa influência se revela tanto na construção narrativa das músicas quanto nas imagens evocadas pelas letras.
Assim como Campbell descreve no célebre A Jornada do Herói (1990), as canções de Tiaslovro funcionam como etapas de uma odisseia interior: o chamado para a estrada, o confronto com forças instintivas, o encontro com o tempo e a reconciliação com aspectos esquecidos da psique. "Eu não me vejo, por exemplo, escrevendo sobre coisas cotidianas e falando "a mesa, o celular, fui na esquina e fiz isso." Pra mim o que funciona são coisas meio abstratas, criar imagens, símbolos e arquétipos para deixar a pessoa vir ao encontro", confidencia.
O começo de Tiaslovro
Durante muito tempo, Matias não se viu como músico. Jornalista de formação, sempre acreditou que sua criatividade se expressaria melhor pela escrita e pelo audiovisual. O violão em casa parecia apenas um objeto adormecido, tocado esporadicamente, até que, num momento, versos escritos intuitivamente revelaram uma nova possibilidade.
O surgimento de Tiaslovro não foi apenas uma questão de intuição criativa — foi, sobretudo, uma questão física. Ao ingressar na Groove, escola renomada de música, que trabalhava a repetição rítmica, o músico percebeu que seu maior obstáculo não estava no aprendizado técnico, mas no corpo. Uma tensão crônica nas costas e no pescoço dificultava sua relação com o ritmo e o violão. Até que, em um exercício aparentemente simples, algo se desbloqueou: um estalo nas costas, um relaxamento na nuca — e, de repente, uma nova forma de ouvir.
"Foi como se meus ouvidos se destampassem", recorda. "De uma hora para outra, tudo ficou dez vezes mais claro. O ritmo vinha fácil, minha voz saía mais afinada, eu conseguia distinguir as vozes ao meu redor. Pela primeira vez, eu entendi como a música podia fluir naturalmente." O episódio não durou mais do que um dia, mas deixou uma marca definitiva: mostrou que a música não era um mistério inalcançável, e sim uma experiência enraizada no corpo.
A partir daí, o caminho de Tiaslovro passou a ser atravessado por práticas corporais, meditação e uma atenção sensível ao modo como tensões físicas e emoções se entrelaçam. Se antes o bloqueio vinha da autocrítica e da rigidez, agora o gesto criativo podia simplesmente passar pelo corpo e sair em forma de canção. "É muito doido porque eu precisei soltar o meu corpo - não é o corpo, né, tá tudo na cabeça - pra relaxar um pouco, pra me entender e, nesse meio tempo, viver a vida."

Como surgiu esse processo de criação, onde você não quer apresentar o que está em nossos olhos, vamos dizer assim, e ir pra uma coisa mais misteriosa?
Boa pergunta. É uma coisa que já tá tão dentro de mim, porque apesar de um EP que eu fiz agora, eu tô começando agora na música. Eu venho atuando nas artes, criando de alguma maneira há muito tempo, principalmente no audiovisual e no roteiro, e eu acho que [o processo de criação] vem um pouco das histórias que são bem jornadas de herói, bem clássicas, sabe? Eu sou muito fã de Joseph Campbell e comecei a me ligar que eu gostava de histórias que se encaixavam nessa estrutura e aí eu conseguia ver através dessas histórias a enxergar o que tá por trás delas - entender que a pessoa tá usando essa história pra falar desse outro lance que tá atrás dessa viagem, dessa coisa e tal… Isso me emociona, me pega, me puxa. Comecei a me ligar que era um gosto meu, uma coisa que eu curtia e cada vez ia me aprofundando tentava criar isso, emular isso, fazer arte desse jeito, criar desse jeito. Eu não gosto de falar diretamente das coisas, tipo, o que é isso, eu acho que a gente tem que acessar o sentimento, tá nesse lugar da pessoa chegar junto, né, encontrar ela no meio do caminho, através da subjetividade… Tem muito de Jung nisso, sou muito fã dele e eu sinto que eu opero nesse universo: Jung, Campbell e autores que conversam com tudo isso.

Em "Mountain" você canta sobre sua caminhada ao desconhecido para a busca de si mesmo. Você conseguiu alcançar um lugar para dizer, com todas as letras, quem é você?
Acho que sim, acho que encontrei o caminho - acho que ele tava lá o tempo inteiro, a gente vai ficando cada vez mais ciente de que esse é o caminho, sabe? O tempo inteiro tava no caminho, a música narra isso: você indo nesse caminho, seguindo as placas. Eu vejo nessa música, assim como as outras, um filminho sobre a estrada - e só tem essa estrada, não tem opções de curvas, a estrada é aquela e você tá nela - e você tá seguindo as placas e indo sem saber para onde, mas sabe que tá no caminho. Acho que cada vez mais as coisas vão me confirmando que é o caminho e passo numa tranquilidade.
Como você vê o seu caminho?
[breve silêncio e sorri] Vou te responder falando sobre Campbell. Ele sempre traz uma explicação no mito da Távola Redonda, momento cabeção. [risos] Quando os cavaleiros da Távola Redonda saem em busca do Santo Graal, cada um vai para um lado diferente e entram na floresta no seu ponto mais escuro, mais denso. Campbell explica que onde o caminho é um pouco menos denso já passou alguém, sabe? Onde o caminho é mais denso, ele é seu caminho mais genuíno como pessoa, só você pode trilhar ele e eu vejo o meu caminho assim: o meu caminho é muito diferente da maioria das pessoas, sabe? Não é o padrão de como as coisas acontecem, eu já entendi que comigo é de outra maneira, mesmo profissionalmente, eu sempre fui pingando em várias coisas… Eu sempre fui o cara que não era exatamente desse lugar mas que foi pra esse, mas também não é exatamente do outro [lugar] porque foi daquele [lugar]... Meio deslocado sempre, nunca houve um pertencimento total a um lugar, mas até eu entender que o pertencimento total era eu comigo mesmo e em mim mesmo. Meu caminho é fora do padrão, mas cada vez mais é legal ver as surpresas que ele traz.
O que você acha que tem no final dessa estrada?
[risos] No final, vish… Não, não! Acho que é sobre só indo e confiando, sabe? Acho que algum dia, quem sabe, vai ser uma coisa de não necessariamente fazer o meu rolê, mas passar pra frente, sabe? Acho que todas as coisas que narrei pra você… Acho que seria interessante que outras pessoas soubessem para ajudar outras pessoas, mas isso é uma coisa… Tem tanta vida antes de pensar nisso - é apenas um pensamento.
A memória é um elemento presente no disco que dialoga com o tempo que você apresenta no EP. Precisamos visitar o passado para seguir adiante?
Não sei se tenho a resposta exatamente para isso, mas falar sobre o tempo é igual falar sobre a física quântica: é só uma ilusão. O tempo atravessa a gente, percebemos as coisas através do tempo, mas ele não existe… Aí essas coisas, a arte e essas coisas que vem do inconsciente - essas coisas que a gente não consegue entender de fato - estão além do tempo, né? Elas mostram uma vida própria. Tem o lance de "Mountain" de confiar e ir porque o caminho tá posto… É muito doido que as coisas vão acontecendo e vão te mostrando cada vez mais que é isso mesmo. Acho que o tempo tá nesse lugar, mas é uma coisa muito subjetiva - quando eu falo no tempo é jogar uma coisa… Tá além da minha própria racionalidade. Eu coloquei ali, sabendo que coloquei, tendo um sentido pra isso, mas sem querer entender totalmente aquilo, sabe? Cada um faça o seu sentido disso.
"Torre do Tempo" traz essa travessia que ele nos evoca. Você canta que nunca mais foi o mesmo após descobrir a porta. Você gostaria de voltar a ser quem era antes de alcançar esse lugar ou você gosta do que é hoje?
Cada dia que passa gosto mais de quem eu sou e onde tô, faz mais sentido - sinto paz e pertencimento. Sinto que antes não tinham coisas que estavam tão alinhadas, tão confortáveis, tão legais… Conforme o tempo passa parece que eu posso ser mais eu e tudo faz sentido, sabe? Não queria voltar [ao que já fui]. Tem gente que fala que queria voltar ao passado, mas cada dia que passa melhora; a vida é cada vez melhor. Eu sofria por umas coisas que… Nossa, não!
Se tudo resume a sim ou não, como você canta em "Dona Leoa", por que temos dificuldade de falar essas palavras? Conforme o tempo vai passando, conseguimos compreender os significados delas para sermos nós mesmos?
Acho que tem muita coisa pra desempacotar. Essa é uma frase extremamente densa, uma coisa bem filosófica sobre o jeito de enxergar o mundo, o universo e a vida. Acho que saber dizer não para os outros é saber dizer sim para você, né? Acho que o sim e o não resumem tudo - é a mudança ou a resistência à mudança. É sobre você deixar as coisas fluírem conforme a vida quer que elas fluam. Quando eu escrevi essa letra, antes da versão final, ela tinha outra frase que ia junto que era meio paralela a essa que falava sobre as forças do medo e do desejo que é a mesma coisa do sim e do não, né?! Quando você se deixa fluir para o sim, você não sabe para onde vão as coisas porque elas vão mudar, mas elas fluem, né, porque é o que o mundo tá querendo. O não é doído, tem que fazer força.
No momento em que você diz sim pra você mesmo, você acha que tem abraçado as coisas que viu quando abriu aquela porta?
Acho que sim [sorri]. Acho que é o que tô fazendo.
O que você viu que é tão diferente dessa realidade doentia que vivemos? Por que te impactou tanto?
Ah, essa é a grande pergunta que não quer calar. [risos] Acho que cada um tem que achar sua própria resposta.
Após uma longa viagem nesse EP, você finalizou a viagem. Você encontrou um lugar que a mente não alcança?
Não! Não, eu parti agora! Eu saí da estrada em "Mountain" e eu cheguei em Portos do Reino e saí pra viajar, comecei agora. Você faz essa pergunta daqui 50 anos e talvez eu tenha uma resposta pra você. [sorri]




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