A coletividade de Calvin Voichicoski & Pelocurto para enfrentar os colapsos
- Michele Costa

- 21 de ago.
- 13 min de leitura
Os dois primeiros álbuns de Calvin Voichicoski - Moscas Volantes (2017) e Lar da Retórica Incompreensível (2021) - foram feitos sozinhos, em casa. O processo de criação mudou após assinar a produção do EP Pelocurto (2018), composto por Celso Sorc, Heitor "Hektōr" Martins e Nickolas Marchioretto. O encontro foi tão fértil que, mais tarde, o trio se consolidou como a banda de apoio de Calvin em suas apresentações ao vivo. Hoje, os amigos estão lançando bodoque (2025), um disco feito a partir da coletividade.
Combinando elementos de indie rock, anti-folk, música popular brasileira dos anos 60 e invasão britânica, bodoque aborda a chegada definitiva da vida adulta e do futuro de uma maneira crua. Em "e.m.t/domingo", por exemplo, a internação é metáfora e também memória; o eletrochoque é denúncia e também ruído; o humor - que soa nonsense em algumas estrofes - se torna uma maneira de olhar para o colapso sem ser esmagado por ele.
O disco de Calvin Voichicoski & Pelocurto me faz lembrar do escritor David Foster Wallace (1962-2008): após anos de isolamento, o escritor encontrou na coletividade uma saída para continuar sua existência. Em Um Antídoto Contra a Solidão (Âyiné, 2021), o escritor vai abandonando a ironia, marca de sua geração, para se identificar com os outros e, consequentemente, os unir com seus leitores, colegas, amigos e jornalistas. Nesse sentido, a presença do trio no álbum reforça a noção de coletividade como antídoto: se o mundo parece à beira do fim, a música mostra que é possível encarar o abismo junto.
Bodoque - com o rosto animado do cachorro do cantor - soa como um manual de sobrevivência irônico para dias em ruína onde a gargalhada, mesmo atravessada de dor, ainda é uma forma de resistência.
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Quando que começou essa parceria e como surgiu o start para esse disco?
Calvin: Começou quando eu produzi o disco deles em 2018, a gente era parceiro de selo e os meninos estavam querendo lançar alguma coisa. Acho que o Pelocurto originalmente era só vocês… [olha pra trás]
Celso: Eu e o Heitor.
Calvin: Daí o Marchioretto entrou depois. Eles me chamaram pra produzir o disco deles. Depois eles acabaram virando a minha banda de apoio para alguns shows. A gente fez alguns shows juntos…
Heitor: Acho que no mesmo ano, né?
Celso: É, a gente fez um show em Curitiba e fomos a banda de apoio do Calvin, depois teve o show da Pelocurto encerrando.
Calvin: Depois da pandemia, eu queria fazer música presencialmente. Eu queria sair um pouco da tela do computador pra fazer música e uma das primeiras pessoas que eu pensei foi a Pelocurto. Foi uma experiência tão maneira produzir o disco deles que eu nem pensei duas vezes… Na época eles tinham tecnicamente acabado, né? [olha pra trás]
Celso: É, não existiam mais… A gente anunciou o fim oficialmente no Instagram, mas voltamos muito pensando em não voltar… Não era a volta da Pelocurto, era mais o disco do Calvin.
A banda voltou mesmo?
Celso: Não, a priori não. Eu era contra ter o nome Pelocurto no disco antes, por exemplo.
Calvin: É, eu tive que convencer o Celso. Mas é porque, pra mim, eles têm tanto a mão deles quanto a minha, assim. Eu escrevi as músicas, mas o arranjo é deles, sabe? É uma coisa que não poderia existir sem eles. Esse foi sempre o meu argumento, que eu preciso ter o nome de vocês, sabe? E acho que Pelocurto é o nome que calhou direito.
Heitor: E aí o Celso perdeu a síndrome. [risos]
Você começou a pensar no disco a partir de ter uma banda de apoio ou foi conforme escrevia as músicas?
Calvin: Começou com algumas músicas, ele não surgiu pronto. Eu acho que um pouco da ideia foi isso mesmo de me permitir fazer esse disco enquanto a gente estava ensaiando, enquanto a gente estava descobrindo o que essas músicas iam ser. E daí, de repente, adicionar uma coisa. Tanto é que a maioria das músicas não tinha uma letra pronta até um, dois dias…. Teve uma letra que eu escrevi no dia da gravação. Foi uma coisa bem... As músicas foram até o fim lógico delas, sabe? Até onde a gente conseguia não ficar maluco, batendo naquela mesma parede, sabe?
No release fala que o disco apresenta um olhar positivo sobre a chegada da vida adulta e do futuro. Me chamou muita atenção no quesito olhar positivo, porque as músicas não são tão positivas no sentido literal da palavra, como é o caso de “This Pain” e “Cemitérios de Orelhões”. Qual o significado de positivo e qual o lado positivo que vocês enxergam na narrativa deste disco?
Calvin: Eu acho que essas músicas contam, talvez, uma história de alguém que está indo mal e se resolve. Eu acho que, pelo menos na minha perspectiva, é isso, sabe? Tem muitas músicas sobre o sentimento de estar mal, e até quando eu falo sobre estar bem, existe um certo cinismo, algo que eu sei que o mundo não é algo tão legal assim, não é algo tão bom, mas existem lados positivos pra vida. Acho que o momento que eu tô da minha vida, agora, tem a ver com isso. “e.m.t/domingo”, primeira música, é muito sobre o momento onde eu tava internado e todas essas músicas são meio que uma jornada - tudo que eu senti nesse meio tempo, essa jornada de aceitação de que, tipo “ok, o mundo é horrível”, eu não vou mentir pra mim mesmo em relação a isso, eu não vou fantasiar em relação a isso, mas existe um lado positivo, sabe? Eu posso amar pessoas, eu posso ter amigos, eu posso ter algo na minha vida, não no sentido material, mas eu posso ter essas conexões, eu posso dar sentido à minha vida assim, sabe? Acho que é algo, talvez, uma explicação profunda demais pra algo que não é tão profundo, mas é como eu vejo.
Celso: Eu sinto que numa questão de arranjos, eu acho que a gente não é um disco necessariamente triste. A gente pode falar de coisas mais delicadas, mas é um disco com arranjos pra cima, um disco que tem uma coisa muito mais pra frente do que uma coisa que é necessariamente triste. Isso tem a ver com um novo olhar, um olhar mais esperançoso.
Heitor: Eu acho que a coletividade que permeia todo o processo do disco... Tem músicas que vêm muito, não sei se muito, mas que vêm antes da ideia de a gente se unir e fazer tudo junto. Mas o fato de a gente ter gravado ao vivo, todo mundo ao mesmo tempo, é uma coisa que nenhum de nós nunca tinha feito… E eu acho que a positividade vem desse senso de proximidade entre nós. De união, de saber que, apesar da vida ser horrível e o mundo ser tão horrível quanto, a gente consegue contar um com o outro. Ter pessoas ao redor que, às vezes, estão se sentindo tão mal quanto você. Mas que, tipo, você tem essas pessoas e elas têm você e é a nossa melhor chance.
Nickolas: É, eu acho que é muito sobre a visão que nós, não como banda, mas como amigos e pessoas, temos… Acho que a linguagem do disco é muito única pelo fato de parecer muito sobre como a gente trata dos assuntos no geral; sobre como a gente faz piadas sobre as coisas e fala sobre coisas sérias de um jeito muito específico. Eu acho que uma coisa muito bonita do disco é essa personalização que tem da banda como indivíduos. Eu acho que é por isso que tem esse quebra-cabeça - é um disco que fala sobre coisas tristes, mas também é um disco que propõe essa diferença. Porque é um disco que tem uma personalidade muito específica que é dos indivíduos da banda como pessoas, amigos e uma soma.
Calvin: Sim, eu acho que é interessante como uma banda, ou como artistas no geral, navegar entre esses dois lados. Os Dead Kennedys falavam que tem algo de errado com uma banda que só sorri - e eu acho que também tem algo de errado com uma banda que só chora, sabe?
"Eu acho que é sobreviver à luz nesse buraco que estamos, sabe? Acho que "Cemitério de Orelhões" é quase uma sátira a um ponto de vista, sabe? Esse ponto de vista de que tudo no passado era melhor e que o futuro é inútil, sabe? Acho que é uma mensagem constante durante o disco, essa coisa de buscar o futuro e aceitar o passado e entender o passado, mas não negar o futuro, não deixar de viver o futuro"
Será que é possível fazer as pazes com o passado para viver o presente? Para que no futuro a gente não seja uma pessoa, sei lá, mais triste do que o normal?
Calvin: Eu acho que é o que a gente está tentando.
Celso: A banda voltou. [risos]
Calvin: Eu acho que essa é a coisa. Tentar chegar nesse lugar… Estar constantemente se tornando alguém melhor, mas ainda ser você, sabe? É o que a gente tem que fazer para estar vivo.
Como vocês olham para o futuro? O que vocês esperam dele?
Celso: Rock and roll, mano.
Heitor: Eu não sabia que eu ia fazer análise duas vezes.
Calvin: Mas eu não sei sobre o futuro. Eu acho que a tendência das coisas é sempre se manter horrível, talvez, mas a gente precisa muito de pessoas que façam com que essas coisas não sejam tão horríveis, porque sempre vão ter pessoas se esforçando ao máximo para tornar o mundo o pior lugar possível.
Celso: E olhar com carinho para o que você tem ao seu redor também. Se a gente ficar se apegando talvez só aos grandes problemas do mundo, talvez nunca a gente vai conseguir, talvez, até se aceitar. Uma comparação tão extrema com o que existe fora.
Nickolas: A esfera que a gente vive é muito pequena, tá ligado? A gente tem esses problemas grandes e não ajuda, às vezes, a enxergar o futuro, sabe?
Calvin: É importante se manter informado e é importante acreditar em coisas, mas também é importante ter amigos e família.
Celso: É prezar para o que vale para você viver a sua realidade.
Heitor: Eu acho que o Calvin falou sobre cinismo um tempinho atrás, algumas perguntas atrás, é um disco que ele tá situado em um anseio pela sinceridade por parte da nossa geração por parte da nossa geração, porque a gente se acostumou muito com uma cultura geral que é muito irônica, que é muito cínica. E que tudo é muito... É sempre tudo muito esvaziado de sentido em prol de uma piada ou de um impacto imediato que se esvai na mesma hora. E a gente está falando de coisas que... Aqui, pelo menos, na entrevista, a gente pode falar de coisas que soam clichês ou soam ingênuas para certas pessoas, mas eu acho que a gente não pode subestimar o potencial que tem, às vezes, você se entregar para isso, para essas ideias que são mais simples, são mais... É, que são mais simples. São... São menos permeadas por tudo que acontece o tempo todo. No mundo inteiro, em todas as redes. Para nós, sempre foi muito importante, ao longo do processo do disco, estar aqui, na casa do Calvin, e ter esse nosso mundinho por algumas horas e depois a gente volta para a vida real. Para o futuro, eu acho que é importante manter esses hábitos.
Calvin: Acho que foi uma coisa que a gente teve que reaprender depois da pandemia, viver realmente em sociedade. Pelo menos eu sei que eu tive muita escuridão. Foi um processo bem difícil. Estar com os meninos aqui, sei lá, semana sim, semana não, foi uma coisa que me ajudou a voltar para o mundo real e entender a vida de novo, sabe?
Aqui foi usada a palavra apegar. Além da música, o que vocês se apegam para continuar vivendo e para continuar mostrando quem vocês são?
Celso: Amizade e gostos pessoais.
Nickolas: Eu acho que, pelo menos para mim, dá pra definir tudo como humanidade: o que me faz seguir em frente é perceber a humanidade das pessoas que gostam de mim e que eu gosto e me conecto com elas e seguindo em frente. Isso me dá um pouco mais de esperança.
Celso: Eu acho que a gente tem muita afinidade com vários tipos de arte também. Eu acho que quando você está envolvido com mais um tipo de arte, isso começa a influenciar a sua vida como um todo; seu olhar sobre o mundo. Inclusive como essas formas de arte se relacionam. Então eu acho que muitas vezes, sinceramente, a arte é o suficiente, porque ela é tão grande, ela é tão expansiva. Ela toca em tantas coisas em mim como pessoa, não só como artista… Acho que na maior parte do tempo é isso que me move.
Calvin: Acho que pra mim são as pessoas. Eu tenho uma relação complicada com as pessoas. Eu tive ansiedade social por muito tempo de uma maneira que eu não conseguia fazer nada. Enfim, eu acho que o meu relacionamento com a minha esposa é uma coisa que é bem importante pra mim. É uma coisa que me ajuda bastante. Eu acho que ela me mostrou durante essa época da pandemia que apesar de tudo, ainda é bom estar com outras pessoas e poder compartilhar tudo o que você tem na vida. Eu acho que eu sempre fui uma pessoa muito que criou de maneira solitária com o tempo e a minha esposa me mostrou que eu podia fazer coisas muito melhores e muito mais interessantes em conjunto com outras pessoas - é uma coisa que eu levei pra esse disco.

Falando em processo de criação, no release você disse que iria para outros caminhos se não fosse a chegada dos meninos. Pra onde você acha que estaria se você não tivesse essa chance de estar com os outros e trabalhar com os seus amigos?
Calvin: Eu não sei nem se eu teria interesse em ter realizado esse álbum, pra ser sincero. Porque fazer o meu último álbum foi um processo, de novo, pandemia, depressão, bláblábláblá, mas foi um processo muito desgastante, tanto que as músicas não foram terminadas. Eu só falei “ok, é isso que eu tenho, acabou.” Acho que pra mim, toda coisa de chegar com três, quatro acordes e uma melodia pros meninos e falar “ok, isso é música” e de repente o Nickolas tá tocando bateria, o Heitor tá tocando baixo e o Celso tá tocando guitarra e é uma música de verdade mesmo que sejam só três acordes e eu falando blábláblá. Existe algo mágico aí, sabe? Muito mais mágico do que você sentar no ableton e dar play e falar “ok, agora eu acho que eu preciso de baixo”, “ok, agora eu acho que eu preciso de uma guitarra.” Seria interessante se eu tivesse um trompete aqui e eu não tenho trompete, sabe? Esse processo é ótimo, é incrível que a gente tenha tecnologia pra fazer isso, mas no fim das contas, música é uma coisa humana. É interessante ouvir músicos numa sala tocando os seus instrumentos fora de um clique e se atropelando um pouco e correndo um pouco em algumas partes porque é humano, é interessante.
Celso: As músicas eram assim, né, nos anos 60, nos anos 70 eram assim. Você tinha que saber tocar as músicas e gravar, não é isso? E é a identidade da banda que se mostra ali, né? A reprodução.
Mas voltando pra cá, em “This Pain”, por exemplo, você diz que houve um tempo em que se sentia bem. E aí eu fiquei pensando muito nessa frase em específico, porque eu acho que a gente tem uma mania também de falar que um tempo atrás, como já foi mencionado anteriormente, era melhor. Vocês acham que no meio de guerras, neoliberalismo, extrema-direita e tudo mais, é possível se sentir bem?
Calvin: É uma pergunta carregada. [breve silêncio] É muito complicado. Eu não sei se a gente tem outra alternativa, se não, pelo menos, tentar ficar bem. Eu acho que a gente precisa se preocupar, a gente precisa usar as nossas vozes pra falar - se a gente tem vozes, a gente precisa usar as nossas vozes pra falar sobre essas coisas. Mas, ao mesmo tempo, não sei. Eu não sei. [risos] Eu gostaria que fosse possível. Eu quero que seja possível. Eu acho que talvez essa seja a minha visão: eu quero que seja possível, então eu vou viver como se fosse possível.
Celso: Isso é utilizar o que a gente pode pra poder fazer o mundo melhor. O impacto que a gente acredita, se a gente está querendo encontrar um lugar mais confortável pra gente, a gente está lutando pra isso também nessa discussão.
Heitor: Eu acho que, tipo assim, meio que, pegando o gancho desses pontos que você está colocando, sobre a conjuntura que a gente vive, às vezes eu observo um movimento de estreitamento dos laços das pessoas, não com medo de me repetir, mas todas essas crises, elas unem as pessoas. Nem que seja pelo desespero, a gente acaba, eu não sei, tem alguns grupos que sim, tem outros que não, mas eu observo às vezes uma tendência das pessoas se coletivizar, porque elas percebem que “ok, eu tentei por anos e anos e anos resolver minha vida e ser feliz e sozinho eu percebi que meio que não dá, porque tem toda uma estrutura que está acima de mim que está ativamente me atrapalhando.” Então, eu acho que, de novo, a nossa melhor chance é se coletivizar, se unir e manter as pessoas que a gente ama e que a gente acredita não só no que elas fazem, mas no que a gente faz quando está com elas, cada vez mais. E eu acho que pra mim a resposta vai estar muitas vezes nisso - no que as pessoas são capazes de fazer juntas.
Calvin: É bom e é ótimo, mas ainda assim a gente cai no teto do capitalismo - todo mundo precisa pegar condução lotado pra chegar aqui, a gente precisa gastar dinheiro pra comer… É ótimo, é incrível, mas ainda tá fodido. O mundo é uma bosta.
Nickolas: Pra ser presente a gente só tem que continuar tentando até não conseguir mais, sabe? Não tem o que fazer.
Em “O vento nos caniços” vocês dizem que “o futuro é como um furo velho em roupas novas”. Dito isso: seguimos nas repetições?
Calvin: Eu acho que sim, a história é cíclica, né? Você estuda história, o que você acha? [se vira para Nickolas]
Nickolas: É. [todos riem] Basicamente todas as cagadas do século de Cristo até agora.
Se estamos repetindo, como fazemos para não repetir?
Calvin: Acho que aí entra a parte de se importar com o passado. Olhar para o passado não com esse molde, não com essa figura de como tudo deveria ser, mas é a clássica: aprender com os erros do passado e entender quais coisas funcionaram.
Celso: Se aceitar, olhar para o passado e encontrar conforto para seguir em frente.
Nickolas: Eu não sei se é possível encerrar um ciclo vicioso de problemas de outras gerações, mas acho que melhora a partir do momento que você é ciente sobre isso, sabe?
Próximos passos de Calvin Voichicoski & Pelocurto
A banda se prepara para a apresentação de lançamento que acontecerá em outubro em São Paulo (TBA) e para uma série de shows na capital nos meses seguintes. No entanto, será possível ver Calvin Voichicoski & Pelocurto no dia 30 de agosto, no WagCave, em São Bernardo do Campo. O convite veio do grupo Ente (RJ) que também contará com a Jardim Depressa. Garanta o seu ingresso aqui.




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