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Memórias de uma Beatnik

  • Foto do escritor: Michele Costa
    Michele Costa
  • há 6 dias
  • 3 min de leitura

Toda vez que se fala na geração beat, nomes como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Gregory Corso e Lawrence Ferlinghetti vêm à mente. Embora cada um tenha revolucionado o movimento à sua maneira, raramente há menção às escritoras que também fizeram parte dele. Joyce Johnson, Brenda Frazer, Elise Cowen e Joan Vollmer permanecem esquecidas ou lembradas apenas pelas sombras masculinas que as cercavam. Diane di Prima, por sua vez, conseguiu romper parte desse silêncio. No Brasil, seu nome ganhou destaque apenas em 2013, com o lançamento de Memórias de uma Beatnik (Veneta), obra em que a autora transforma suas experiências sexuais em um poderoso instrumento de afirmação e liberdade. 


memórias de uma beatnik

Publicado em 1969, Memórias de uma Beatnik é mais do que um relato autobiográfico ou um manifesto de liberdade sexual: é um ato de subversão dentro de um movimento literário majoritariamente masculino. A franqueza e o erotismo estão presentes desde as primeiras páginas e ganham novas dimensões quando Di Prima assume sua sexualidade como forma de autodefinição e resistência, e não como objeto de desejo masculino. Dessa maneira, a obra transforma o corpo feminino em território de poder e autoconhecimento — uma inversão radical num contexto em que o prazer era, quase sempre, narrado pelo olhar do homem.


A crítica literária, muitas vezes, rotulou o livro como pornográfico, ignorando seu caráter amoroso, poético e reflexivo. Diferente de seus colegas — Kerouac e Ginsberg, por exemplo, que exploravam o esoterismo e a transcendência —, Diane di Prima escolheu narrar sua própria experiência, os lugares por onde passou e os corpos com os quais se encontrou. O sexo e as drogas podem chocar o leitor, mas é importante lembrar que o livro surgiu sob encomenda do editor Maurice Girodias, que pedia "mais sexo" a cada novo capítulo entregue.


"Existem tantos tipos de beijo quanto há pessoas no mundo, e as permutações e combinações dessas pessoas. Não há duas pessoas que beijem do mesmo jeito - nem duas pessoas que transem do mesmo jeito -, mas, de alguma forma, o beijo é ainda mais pessoal, mais individualizado que a transa."

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memórias de uma beatnik
(Créditos: Getty Images/Divulgação)

A autobiografia começa com o relato da perda de sua virgindade com Ivan, um jovem que conheceu em um bar. Nesse primeiro momento, a linguagem oscila entre o rude e o amoroso, mas a liberdade se reafirma quando Diane descreve, com minúcia, a experiência do orgasmo feminino. Além disso, a autora recorre a simbolismos cósmicos para retratar o prazer — tanto o seu quanto o de seus parceiros —, conferindo uma dimensão quase espiritual à sexualidade.


Outro ponto marcante de Memórias de uma Beatnik é o olhar que Diane lança sobre a cidade que nunca dorme. Sua escrita captura imagens únicas, em constante movimento, revelando uma autora que está presente não apenas fisicamente, mas também mental e afetivamente nos lugares por onde passa. Sua atenção se estende à coletividade, às questões de raça, gênero e classe.


Mais de meio século depois, o texto continua pulsante, ecoando nas discussões sobre feminismo, corpo e poder. A obra não apenas reivindica o espaço da mulher dentro da contracultura, mas também redefine o próprio conceito de liberdade, ou seja, uma liberdade que não se limita às estradas ou às drogas, mas que se inscreve na carne, no desejo e na escrita.


Diane faleceu em 2020, em plena pandemia. Mesmo doente, nunca deixou de escrever. E é importante lembrar que sua produção vai muito além da literatura erótica: sua trajetória inclui poemas, romances, artigos, panfletos e obras de experimentação literária. Talvez não tenha alcançado o mesmo reconhecimento que seus colegas homens, mas uma coisa é certa: a escritora abriu caminhos e influenciou gerações de escritoras que, como ela, ousaram transformar a experiência feminina em voz e linguagem.


"Ele só disse "oi", pegou minha mão e colocou dentro do bolso do seu casaco, junto com a dele, mas o rosto demonstrava alívio e prazer, e fiquei feliz por não ter feito picuinha por uma questão de protocolo. Andamos pelas ruas e pelos becos em silêncio no começo, com a sujeira molhada da cidade cobrindo nossos pés nas sandálias. Paralelepípedos lisos e escorregadios. Becos com plataformas de cargas escuras, onde paramos de vez em quando para beijar. Piadas bobas e conversas sem importância, que cintilavam como a chuva. E um caixão de pé, simples, sombrio, na calçada em frente a um prédio, nos estimulando a entrar com ternura e amor. Se estivéssemos precisando de algum estímulo."

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