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  • Foto do escritorMichele Costa

Impressões: Inimigos: Uma História de Amor

A história do escritor Isaac Bashevis Singer não começa quando o leitor abre o livro. As primeiras páginas contém informações sobre a obra, os dados catalográficos, para, em seguida, vir a nota do autor - um dado importante. Não pule essa parte, Singer traz informações importantes para o leitor iniciar sua obra: "(...) Como a maioria de meus trabalhos de ficção, este livro apresenta um caso excepcional com heróis singulares e uma singular combinação de fatos. Os personagens não são apenas vítimas do nazismo, mas de suas próprias personalidades e destinos. (...)". Agora sim, "Inimigos: Uma História de Amor" (L&PM, 1998) se inicia.


Dizem que quando uma pessoa passa por um trauma, ela está condenada a (sobre)viver com as sequelas do baque. No entanto, algumas pessoas dizem que é impossível viver uma vida normal, um recomeço; outras acham que é possível ter uma segunda chance. Na história de Singer, Herman, o protagonista, tenta recomeçar após sobreviver ao Holocausto, mas não se sente digno de dar continuidade a sua existência: "(...) Sem coragem para suicidar-se, Hermann era obrigado a fechar os olhos, tapar os ouvidos, bloquear os pensamentos, viver como um verme.".


Em "Inimigos: Uma História de Amor", acompanhamos o sobrevivente judeu que escapou dos campos de concentração por conta da dedicação de Yadwiga, sua criada antes da guerra, que o escondeu. Herman sente que deve algo à ela, então, se casa com a polonesa e tenta reconstruir uma vida em um novo lugar. Viajando constantemente, diz à esposa que vende livros - uma desculpa para se encontrar com Masha, também sobrevivente dos crimes de Hitler, sua amante. Quando estão juntos, a angústia da existência de Herman diminui e ele aceita amar a mulher. Duas mulheres e um homem.


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Ao avançar na leitura, o leitor percebe que Herman não quer ser ele, por isso, se castiga revivendo os fantasmas do passado. Lembra de seus filhos, que foram mortos em Auschwitz, de sua ex-esposa Tamara e suas mentiras que arruinaram sua família. "(...) Mas havia em Herman uma tristeza que não podia ser aplacada. Ele não tinha sido uma vítima de Hitler. Já era uma vítima, muito antes de Hitler ter surgido." Para esquecer e/ou dar continuidade a sua vida, já que ele foi poupado da morte, vive diversas vidas (de ghostwriter de um rabino, o amante, o caixeiro viajante que não existe a vendedor de livros), tentando se adaptar com a nova realidade - uma vida sem perseguição por ser judeu.


Quando o protagonista acha que sua vida não pode piorar, Tamara reaparece. A ex-esposa que deveria estar enterrada junto com os filhos, como pensou Herman, surge através de um telefonema e pede um reencontro. Agora, a história gira em torno de três mulheres e um homem.


O triângulo amoroso rende uma boa história: a atual esposa que não aceita perdê-lo, a amante cobra sua presença e a ex-esposa que ressurge das cinzas, como a Fênix, faz com que Herman lembre de sua história, do seu passado, da sua consciência. É possível mesmo fugir do seu passado? Desse modo, compreendemos a metade do título de Singer. Mas e a palavra "inimigos"? Descobrimos rápido: os inimigos são todos - o próprio protagonista que é inimigo de sua existência, as mulheres, o rabino, a população, a vida e sentimentos. É como andar em ovos quebrados.


"(...) Durante a guerra e nos anos que se seguiram, Herman teve tempo para arrepender-se da forma como havia tratado a família. Mas no fundo continuava o mesmo: não acreditando nem em si nem na raça humana, um hedonista, um fatalista que vivia em estado de depressão pré-suicida. As religiões mentiam. A filosofia estava falida desde o começo. As promessas vãs do progresso não eram mais do que uma cuspida no rosto dos mártires de todas as gerações. Se o tempo é apenas uma forma de percepção, ou uma das categorias da razão, então o passado está tão presente quanto o dia de hoje: Caim continua matando Abel. Nabucodonosor ainda arranca os olhos de Zedekias e mata seus filhos, o pogrom, em Kesheniev, jamais acaba e os judeus queimarão para sempre em Auschwitz. Àqueles que não têm coragem de pôr fim à vida, resta uma única saída: embotar suas consciências, asfixiar a memória, extinguir o último vestígio de esperança."

Algumas pessoas dizem que um escritor não pode ser de ninguém, já que é de todos. Mito ou verdade, não podemos afirmar na vida real, mas na ficção, Herman mostra que não consegue viver, aproveitar sua existência, porque ele nunca esteve presente - nem na sua antiga vida e na(s) nova(s). O peso da náusea aumenta diariamente e chega no limite quando Yadwiga engravida, algo que ninguém (Herman e o leitor) esperava. E agora?


"- Alô! Alô! Alô!
Era um velho truque de Masha, telefonar e não dizer nada. Talvez quisesse só ouvir a voz dele.
- Não seja idiota, diga alguma coisa! - falou Herman.
Ainda assim não houve resposta.
- Você foi embora, não eu.
Ninguém respondeu. Ele esperou um momento e falou:
- Não pode me fazer mais desgraçado do que já sou."

Herman não volta para si mesmo após descobrir que seria pai de novo. Não existem tentativas do herói (engraçado como Singer emprega o conceito de herói no protagonista) de se aproximar do filho ou das mulheres que continuam vivas, tentando seguir com suas vidas. Herman, que nunca se encontrou por inteiro, desaparece e nos perguntamos se um dia, ele terá coragem para assumir suas responsabilidades e enfrentar os demônios do passado.


Isaac Singer constrói um enredo forte que prende o leitor do início ao fim. Realidade, ficção, sonhos, desejos, perdas, passado e reviravolta são algumas características encontradas na escrita do escritor.

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