Quando você pensa em guerra, quais são as imagens que vem à sua mente? Pessoas mutiladas? Lágrimas? Desespero? Morte? Se você respondeu à minha questão com alguns dos exemplos que escrevi, saiba que não está sozinho - a maioria das pessoas pensam em algum terror explícito. Essas imagens (e narrativas) continuam nos chocando, no entanto, já tornaram-se "comuns", ou seja, fazem parte do nosso cotidiano. Quando começamos a aceitar e compartilhar a dor dos outros? Somos capazes de argumentar sobre expor o outro? Se a vida é garantida pelo Código Civil Brasileiro e pela Constituição Federal, por que continuamos aceitando a dor dos outros?
Na semana passada, Rita Von Hunty fez um vídeo debatendo a proteção de crianças que não fazem parte da sociedade - negras, periféricas, pobres, trans, homossexuais. Sob o título "Defender Crianças", a professora aborda as violências de gênero e como o aumento de violências durante a pandemia aumentaram, escancarando as diferenças sociais e de gênero. Mesmo que o Estatuto da Criança e da Adolescência (ECA) garanta que todas as crianças e adolescentes, independentemente de cor, etnia ou classe social, tenham direito a vida e todos os cuidados para se tornarem adultos saudáveis, não são todas as crianças que possuem esse direito - onde estão as três crianças, Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique, de Belfort Roxo (RJ)? E os responsáveis pelos assassinatos estatais das crianças negras, brasileiras e periféricas? Existe justiça?
Não só isso! Em uma pandemia mundial, aceitamos as mortes diárias de três mil pessoas. Choca, mas aceitamos, porque faz parte do nosso cotidiano. Hoje, depois de um ano, torcemos que o vírus invisível não mate aqueles que amamos. Mas e a dor dos outros; elas não valem mais nada?
"(...) Mas as pessoas querem sentir-se horrorizadas? Provavelmente não. Todavia há fotos cujo poder não se enfraquece, em parte porque não se pode vê-las com frequência. Fotos de rostos destroçados, que sempre irão testemunhar uma grave iniquidade, sobreviveram a esse preço: o rosto horrivelmente desfigurado de veteranos da Primeira Guerra Mundial que sobreviveram ao inferno das trincheiras; o rosto empapado e inchado com o tecido das cicatrizes de sobreviventes das bombas atômicas americanas lançadas em Hiroshima e Nagasaki; o rosto fendido a golpes de facão dos tutsis que sobreviveram ao genocídio desencadeado pelos hutus em Ruanda - será correto dizer que as pessoas se habituam a essas imagens?"
Em "Diante Da Dor Dos Outros" (Companhia das Letras, 2013), Susan Sontag discute sobre o sofrimento dos outros a partir da pintura de Goya, passando por fotografias e imagens produzidas durante a Guerra Civil Americana, Primeira Guerra Mundial, Guerra Civil Espanhola, campos de concentração nazistas e o World Trade Center. Desde o primeiro conflito citado no livro (1861), o indivíduo continua com o mesmo comportamento ao tratar da perda do outro? Susan não responde às questões que colocou no livro, nem os questionamentos dos leitores - o que ela faz em "Diante Da Dor Dos Outros" é propor uma reflexão que nos faça encontrar uma saída para o sofrimento alheio.
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Qual o papel da fotografia? E a responsabilidade do fotógrafo? De acordo com a autora, em seu livro "Sobre A Fotografia" (Companhia das Letras, 2004), a fotografia é uma ilusão, impossível de mostrar a realidade: "Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa), justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo".
Mesmo que o fotógrafo tenha responsabilidade, crie um contexto para tirar uma foto, a mídia explora esses corpos, as cenas violentas, para criar uma certa apatia, mostrando que a violência é diária e que devemos aceitá-la. No entanto, questiono: devemos aceitar a violência apenas da minoria? Por que quando uma criança branca é brutalmente torturada e assassinada existe justiça? Os "corpos alheios" realmente não valem nada? Para Sontag, as fotografias devem ficar em livros, já que após a leitura, as imagens ficam na memória.
"(...) Para um palestino, uma foto de uma criança estraçalhada pelo tiro de um tanque em Gaza é, antes de tudo, uma foto de uma criança palestina morta pela máquina de guerra israelense. Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deportadas por suas legendas. Durante a luta entre sérvios e croatas no início das recentes guerras nos Bálcãs, as mesmas fotos de crianças mortas no bombardeio de um povoado foram distribuídas pelos serviços de propaganda dos sérvios e também dos croatas. Bastava mudar as legendas para poder utilizar e reutilizar a morte das crianças."
Assim como a história, não podemos esquecer. Não podemos esquecer todas as atrocidades que os seres humanos já passaram. No entanto, é preciso ter cuidado e bom senso (algo que está em falta), para não fazer com que a dor do outro vire um circo (palavra empregada com o objetivo de abranger as fake news, manipulações e tirar a fala fora do contexto).
"(...) Esses mortos se mostram completamente desinteressados pelos vivos: por aqueles que tiraram suas vidas; por testemunhas - e por nós. Por que deveriam procurar o nosso olhar? O que teriam a nos dizer? "Nós" - esse "nós" é qualquer um que nunca passou por nada parecido com o que eles sofreram - não compreendemos. Nós não percebemos. Não podemos, na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É isso o que todo soldado, todo jornalista, todo socorrista e todo observador independente que passou algum tempo sob o fogo da guerra e teve a sorte de driblar a morte que abatia outros, à sua volta, sente de forma obstinada. E eles têm razão."
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