Literatura Infantil: Cartas ao Filho
- Michele Costa
- 15 de abr.
- 3 min de leitura
Durante a pandemia de Covid-19 fui impactada por um vídeo no Instagram de uma mãe dizendo que todos os dias, antes de colocar seu filho para dormir, ela repassava o dia com ele, visando estimular a imaginação e suas memórias, além de, claro, fugirem da realidade do vírus que matou 1.786.347 pessoas em 2021, segundo a Pesquisa de Registros Civis divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje, cinco anos depois, a criança conta o que ouviu de sua mãe com um sorriso e deixa claro que precisa de ajuda para acessar as memórias de anos sombrios. Desde então tenho pensado sobre a importância de relatar a história nos primeiros anos de vida e como esse gesto impacta no autoconhecimento.

Pai pela primeira vez aos 42 anos, Alejandro Zambra reflete sobre o nascimento e o crescimento do seu filho em Literatura Infantil: Cartas ao Filho (Companhia das Letras, 2024). Ao longo de uma série de contos e textos autobiográficos, o autor cria uma espécie de diário de paternidade para narrar um mundo que uma criança esquecerá, diferente do pai que se torna outra pessoa. "Com você no colo, vejo pela primeira vez, na parede, a sombra que formamos juntos. Você tem vinte minutos de vida."
Diferente de outros livros sobre a paternidade, Literatura Infantil: Cartas ao Filho é uma obra profunda, carregada de afetos, dúvidas e reflexões sobre a transformação da vida. Há também um questionamento constante sobre o papel da literatura na vida real. O título Literatura Infantil é irônico, ou talvez provocativo: não se trata de um livro para crianças, mas de um livro sobre crescer — como pai, como filho, como ser humano. "Na tradição literária, abundam as cartas ao pai, mas as cartas ao filho são muito mais escassas. (…)"
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Em entrevista para a Folha de São Paulo, no ano passado, Zambra comentou sobre se tornar criança novamente após o nascimento de Silvestre e compartilhou a definição de um adulto: "Na realidade, nós somos o que sobrou da infância. Depois de um doutrinamento, de uma aprendizagem cega, você chega a ser alguém que não é nada além de um reflexo pálido de quem você era. De tanto obedecer, você virou adulto." Se somos uma consequência de um doutrinamento mal feito, conseguimos reverter o quadro e sermos quem gostaríamos de ser, certo? Sim e não.
Zambra é hoje um homem consciente e preocupado, isto é, largou vícios excessivos e procura estar saudável para acompanhar o crescimento do filho, porém, essa persona levou anos para surgir. Ao revisitar seu relacionamento com o seu pai em Literatura Infantil: Cartas ao Filho, o escritor expõe brigas, dúvidas e visões que influenciaram a ser quem é hoje. É interessante ver o seu pai se transformar em outra pessoa com a chegada do filho, mostrando que mudamos com a chegada de uma nova pessoa.
"(…) Penso em pais de outras gerações, porém é absurdo supor que algo tenha mudado. Conheci homens que exercem a paternidade com lucidez, humor e humildade, mas também já vi amigos queridos, que pareciam ter a cabeça no lugar, afastarem-se de seus filhos para se entregar a uma busca desesperada e caricatural por uma juventude perdida. Também há muitos que enfrentam a pulsão de morte sobrecarregando os filhos com um sem-número de tarefas e regras, com a intenção explícita ou velada de prolongar, à custa deles, seus sonhos interrompidos. (…)"
A obra é dividida em duas partes: na primeira, Alejandro escreve sobre o primeiro ano de Silvestre. Sentimental, o escritor não tem medo de soar piegas ao embalar, cantar e apresentar o mundo para o seu filho. O medo está presente nessas folhas, afinal, não existe um manual para criar filhos. "Ao longo da noite, a cada dois ou três minutos seguro o ar para verificar se você está respirando. É uma superstição tão sensata, a mais sensata de todas: parar de respirar para que um filho respire."
Já na outra metade de Literatura Infantil: Cartas ao Filho é composta por contos autobiográficos (a única história fictícia é "Menino sem pai"). Dessa maneira, ele conta sua história ao filho que poderá ler a história daqui alguns anos. Assim, juntos, conseguirão montar o quebra-cabeça da vida para seguir o caminho.
"(…) - Eu também vou escrever a sua biografia, espere só. Nela eu vou contar toda a verdade.
- E qual vai ser o título desse livro?
- Formas de perder um filho. (...)"
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