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As diversas facetas de Ligia Kamada

  • Foto do escritor: Michele Costa
    Michele Costa
  • 11 de abr.
  • 17 min de leitura

Em Um Útero é do Tamanho de um Punho (Companhia das Letras, 2017) Angélica Freitas reduz o útero para reforçar a força feminina. O corpo da mulher, muitas vezes reduzido a uma função reprodutiva ou sexual, é resgatado como espaço de resistência. Oito anos após a publicação, Ligia Kamada dá outro sentido ao órgão: com ele, a cantora visita sua ancestralidade e o existir como mulher no mundo em Kamadas, seu segundo disco. 


Após se encontrar nas matas da Serra da Mantiqueira e compartilhar com o público o seu retorno ao Brasil - após sete anos morando na Europa - em Yermandê (2017), Ligia se apresenta sem medo em Kamadas. Assim como o seu sobrenome, o álbum é autobiográfico, mostrando as diversas camadas que a cantora possui. Sincera, ela canta sobre a retirada do útero, seus antepassados, a ambiguidade da vida e a morte, além de celebrar a terra. 


"É um disco sobre uma mulher racializada (amarela) nesse mundo, mas também sobre ser uma mulher sem útero diante do peso que é colocado em cima desse órgão e de nossas decisões", conta. 


Com produção de Pipo Pegoraro, vencedor do Grammy Latino 2023, Kamadas é um sobrevoo pela Serra da Mantiqueira e pelo Monte Fuji com participações de artistas incríveis que contribuem para que Ligia se desague sem medo.


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Kamadas é um disco autobiográfico que retrata sua ancestralidade e ser mulher no mundo. Como foi esse mergulho para, em seguida, transformar em arte?

Em 2017 eu lancei o meu álbum autoral, o meu primeiro álbum autoral sem ser com banda, porque eu tenho alguns outros trabalhos que são com banda. Fizemos um disco com a banda SKL, que era super independente, e fomos fazer uma turnê na Europa. Então, esse disco foi só que… A questão é que eu não voltei, né? Eu acabei ficando na Europa, a vida mudou toda… Mas o Kamadas surgiu depois desse longo tempo de espera. Quando eu voltei, eu já voltei para a roça, já voltei para morar aqui em Monteiro Lobato, onde eu estou, na Serra da Mantiqueira. Então, e estava muito à tona pra mim as questões feministas, eu estava lendo muitas mulheres feministas e tal, principalmente as mulheres negras e tal, e foi uma reviravolta para mim também no sentido, não só das violências que a gente passa durante a vida toda, mas como questões que estavam vindo muito à tona. Eu peguei essa coisa do feminismo e fui fazendo projetos com mulheres, quando eu voltei para cá. Eu tive algumas bandas, eu tive pelo menos três bandas com mulheres, só que mulheres bem mais novas que eu, que eu estava meio que, uma coisa meio materna, também de professora, passando muita coisa para elas, assim, sabe? De vida, de música, de tudo, né? O que foi muito bom, assim, foi maravilhoso, só que a vida delas estava em outro momento, muito mais jovem. A gente acabou não conseguindo gravar nenhum disco; não foi um tempo perdido, mas foi uma energia e um tempo que eu coloquei nesses projetos e que depois foram se acabando devido a fatores que uma vai [mexe as mãos], desistiu da música, outra não sei o que, e aí as bandas foram se acabando… 

Até que chegou o momento que eu tive esse problema no meu útero, né? Tive um mioma que foi crescendo bastante durante a pandemia, eu estava tratando e estava tudo bem, mas de repente, na pandemia, eu não fui mais para São Paulo para fazer o tratamento e ele aumentou muito, eu comecei a ter sangramentos e eu resolvi, realmente, tirar o útero e foi um processo muito profundo! Foi nesse momento que a minha amiga, que é minha produtora, Pati Ioco falou: "Li, eu acho que você também tem um lado que está fugindo de si mesma" ela falou isso e me pegou muito! Ela falou: “você tem seu nome, as pessoas chamam para ir pro show aqui, não a banda das mulheres, elas chamam por causa de você, porque você que já é mais conhecida e tal pelo trabalho autoral.” Eu acho que foi esse momento de eu falar: "realmente, eu vou encarar isso, nesse processo ainda profundo que eu tô passando." Comecei a escrever, comecei a fazer parceria com poetas, uma das poetas que tenho várias músicas com ela, mas nesse disco entraram somente duas, é a Clara Baccarin, ela mora na mesma cidade que eu. O poeta arrudA também tem duas composições nesse disco com ele… Enfim, foi isso, esse momento de mergulhar profundamente em questões que eram até inconscientes, né? Porque eu não sou mãe, foi uma opção também de não ter seguido, tanto é que a música “Sem Útero” fala sobre isso, né? Assim, a decisão de não ter dado prioridade pra isso na vida, eu sempre segui o som.

O primeiro disco foi muito da experiência que eu tive na Europa, muito da experiência que eu tive com os senegaleses também que chegavam nos barcos… Era um disco que não foi sobre mim, apesar de ter coisas sobre mim, ele foi bem misturado; mas Kamadas é o primeiro que eu falo que tem a ver comigo, com a minha família, com a minha ancestralidade, tem a ver com as questões raciais que eu passei, com as questões de gênero e tudo isso, né? As violências, enfim, tudo, eu acho que esse disco tá misturado, e também tem a ver com a natureza, né? Tem a música “Shukufuku”, que é uma benção em japonês, uma parceria com Ceumar, e muita água e tal, teve isso também no disco. 


Por ser um disco autobiográfico que conta também sobre você, sobre a sua história, a natureza, ela tá realmente muito presente. Me fez lembrar muito a música "Ando a Pé", do seu primeiro disco, em que você diz que é necessário andar para se encontrar. Você se encontrou no momento em que decidiu morar no meio da roça? 

Olha, foi realmente algo pra mim, porque assim, eu cresci em Sorocaba, numa região periférica de Sorocaba, que tinha muito... Também não era mato, assim, mas era um lugar mais... Ah, a gente brincava na rua, tinha árvores, eu subia nas árvores, então era uma coisa que eu acho que eu sinto que eu tenho muita ligação, de alguma forma, com a natureza, né? E aí, morar na Europa, né, coisa muito concreto, muita dureza ali, não só a questão da arquitetura, mas também da relação humana, né? Então, voltar para o Brasil já foi forte pra mim, depois de tanto tempo fora, e voltar para um lugar desse foi realmente um reencontro, não somente comigo, mas também com o que eu valorizo, com o que eu quero, sabe? 

Nos últimos dois anos que eu estava morando na Europa, eu estava morando em Paris, que é uma cidade muito fria, em vários sentidos, e eu sofri um pouco de preconceito também lá pela minha fisionomia, né? Eu acho que se eu fosse uma mulher loira, de olhos azuis, talvez eu não sofreria tanto, né? Mas não é o caso, né? A questão de ser uma pessoa racializada, independente do lugar que você está no mundo, você vai encarar essas questões, né? Então, tá no mato foi um desafio, porque pra voltar a trabalhar, estando na roça, cada vez que eu trabalho fora é uma viagem, é uma estrada que eu pego, mas eu não me arrependo de estar aqui, de ter vindo pra cá. Tem vários artistas agora morando por aqui também, né, artistas de São Paulo, né, que eu tinha conhecido, que já estão morando aqui também, eu acho que depois da pandemia também teve uma saída, assim, de São Paulo, de muita gente, né, vendo também que a cidade está chegando num limite, assim, de alguma forma, tá, coisa muito caótica, né? Eu acho que essa busca não acaba… Não é que eu me reencontrei e já estou ótima, eu acho que é sempre uma busca, é sempre uma caminhada… Eu acho que tem várias questões que vão acontecendo durante… Desde que eu tô aqui, já são dez anos que eu voltei, passa muito rápido… Eu acho que que quando foi a minha cirurgia, quando foi esse processo de eu conseguir decidir de tirar mesmo o útero, acho que foi onde eu mais me encontrei, de verdade. Foi um mergulho muito profundo, foi muito além do que eu podia imaginar que um processo desse poderia mexer. Acho que foram questões ancestrais, não só as violências que eu sofri na vida, mas que a minha mãe, minhas avós [também sofreram], sabe? Nesse processo eu senti, pela primeira vez, meu útero, de verdade. Eu tive contato, eu fiz contato com ele… Eu acho que eu nunca tinha tido, sabe? Essa enfermidade, vamos dizer assim, me deu a oportunidade de ter, pela primeira vez, tive contato com o meu útero, e isso foi muito forte, porque não é só a questão do órgão, né, esse órgão leva muitas coisas em cima que tem a ver com a estrutura, com a religião, que é tudo que puseram, né? Eu mergulhei bem profundamente em mim e comecei a reconhecer muitas coisas minhas… O meu também era músico, mas desistiu, porque ele também tem a fisionomia mais que eu ainda, né, porque eu sou mestiça, meus avós são japoneses, então, meu pai era um descendente japonês brasileiro, mas que foi fazer música e que sofreu muito preconceito, não só do lado japonês, como do lado brasileiro, dos dois lados ele sofreu e ele acabou desistindo. Eu acho que carrega muitas coisas que foram vindo nesse momento, desse processo de saúde… Foi um momento que eu tive que para tudo e fazia muito tempo que eu não parava e eu pude me reconectar com meu corpo de verdade. 

Ainda mais em um processo de pandemia, né? Um momento que você não tem certeza de nada e em um momento que a morte te assombra o tempo inteiro… 

Sim. O processo do mioma veio durante a pandemia já e tal, mas o processo da cirurgia, que eu decidi mesmo tirar, foi um pouco depois, foi em 2022, 22 para 23, foi nesse momento de saída de pandemia que foi minha cirurgia. 


ligia kamada
(Créditos: Jojo)

Eu também tive um mioma durante a pandemia, eu não retirei o útero, não precisei, eu fiz só uma cirurgia bem básica e tal, mas eu passei mais ou menos por esse processo também, porque eu banalizava, em alguns momentos, ainda mais pela correria do dia-a-dia, o útero. Então, o útero para mim era só um órgão que as pessoas denominavam como vida, eu não via vida, porque eu escolhi, não ser mãe, mas que eu banalizava no sentido “ele só vai aparecer aqui pra mim uma vez por mês”. Quando você descobre um mioma, passa por algumas transformações, você percebe que o útero não é somente o útero e ele vai além da vida que denominam para você, né? 

Sim, sim, exatamente. Curioso você está falando, eu tenho conversado com muitas mulheres que também passaram e passam por isso, só que a gente não fala muito sobre isso e isso é um dos temas do livro que eu li nessa época que chama Útero (Planeta, 2023), da Leah Hazard, que eu indico para todo mundo. Ela era uma parteira americana que fala sobre todas as questões que envolvem esse órgão. Ao mesmo tempo que ele é colocado nesse lugar de que a mulher tem que ser mãe… Até o aborto, as questões em relação a anticoncepcionais, por que a mulher que toma o anticoncepcional, se é o homem que pode ter milhares de filhos por ano? A mulher só pode ter um filho por ano, o homem pode ter milhares. Se eles quisessem, eles tinham feito uma pílula para os homens, mas quem são prejudicados são sempre as mulheres. 

Então, eu tomei anticoncepcional muito jovem, por coisas de espinha, de coisas de acne, que uma médica irresponsável, eu considero, me deu um remédio quando eu nem tinha ainda relação sexual nem nada, ela me deu pra pele, uma coisa que faz mal pra saúde. O anticoncepcional tem muitas consequências pra saúde da mulher. Inclusive, depois que eu parei, eu não menstruava sozinha, meu corpo desacostumou a menstruar sozinho sem o remédio. Então, foram anos dependente desse remédio, não por conta de precisar, por conta de eu não tá conseguindo menstruar sozinha, entendeu? Então, assim, as consequências são infinitas, né? O fato de ter pouquíssimos estudos em relação aos órgãos femininos, em relação a todas as temáticas que têm a ver com cada coisa, porque endometriose é um caso muito grave também, que muitas, milhares e milhões de mulheres têm, e não se pesquisa exatamente, não tem pesquisa suficiente sobre essas questões todas, por falta de interesse, né? Porque se quisessem, teriam. E colocam sempre a mulher no lugar de que, quando ela não consegue engravidar, ela é culpada. É sempre colocando na mulher a responsabilidade e a culpa por tudo que acontece, isso também é uma violência extrema, né? Eu acho que isso reflete nessas enfermidades que a gente tá tendo muito… Por que tanta mulher tá tendo problema no útero, no ovário, por quê? Essa é uma pergunta, entendeu? Não é à toa. Então, junta uma coisa com a outra, são milhões de mulheres que perdem o útero a cada ano. 


"Eu acho que esse processo, para mim, foi um olhar para mim e admitir e considerar que eu tenho que me valorizar pelo que eu sou. E isso só pode vir de mim, porque eu não dava esperar isso de ninguém. Então, isso foi bom. O dia que eu pus a mão no meu útero, eu chorei muito durante esse processo. Eu não entendia de onde estava vindo tanta lágrima. Por isso que eu falo das águas, né? Era água fora, dentro, era água para todo lado, sabe? E eu não entendia por quê, mas eu permiti que isso acontecesse, que isso fosse acontecendo, porque não era uma coisa que eu controlava."

O que é ser mulher para você hoje e o que mudou desde o momento em que você se encontrou como mulher? 

Eu acho que a gente se vê mulher desde que a gente nasce, né? Quando a gente fala de fechar perna, de você é uma menininha, de botar rosa, de botar lacinho na cabeça, que a mãe vai lá e faz isso, e a sociedade inteira te vê como uma menina e sempre se coloca ali... Isso é o primeiro momento de você se ver como uma menina, uma mulher, e aí a adolescência, né? Aquela coisa da mini saia, que não sei o quê e tal. Mas eu sempre fui muito insegura, eu acho, também pela questão da minha fisionomia, que, enfim, não é uma coisa muito comum, né? Hoje em dia está mais, mas, por exemplo, a minha mãe foi a primeira brasileira a entrar na família japonesa. Então, assim, a minha geração é um pouco... Talvez tenha um pouco anterior, mas, assim, é uma... [a conversa trava por dois segundos] Fomos chamadas de japa a vida toda, assim, sabe? Então, isso era uma dificuldade que eu tinha também, essa questão de me reconhecer como pessoa, mulher, né? Então, foi um processo difícil, essa coisa das espinhas, tudo, minha adolescência foi bastante difícil, assim, por essa questão. Então eu me via como uma menina, tudo, mas eu me sentia muito rejeitada, né? Então era uma mulher, mas era uma mulher muito... Não era uma pessoa muito... Feliz comigo, com o meu corpo, até que sim, porque eu sempre achei meu corpo bonito, eu sempre fui elogiada pelo meu corpo e tal, mas eu não me reconhecia inteira, sabe? Com todas minhas... Não reconhecia nem minhas belezas, minhas qualidades, né? Enfim, que não é só estética, sabe? Esse primeiro momento de me reconhecer mulher foi bem difícil, foi bem complicado, assim. Até porque eu acho que eu sou uma pessoa bissexual, eu já tive namoradas mulheres, hoje em dia eu tô casada com um homem, mas eu já tive paixões que eram mulheres, e eu me considero de que eu não sou uma mulher hétero normativa, não sou essa pessoa. Eu sinto que eu posso amar qualquer pessoa. Isso é uma coisa que eu sinto já desde... Acho que desde adolescente eu sinto isso, sabe? Mas eu sempre namorei com meninos, porque menina tem que namorar com menino, né? Aquela coisa que já tem muito achado essa coisa, assim, na cabeça da gente e tal. Mas, assim, o processo de me reconhecer mulher hoje, eu acho que foi depois dos 40, que foi que eu me reconheci como mulher de uma nova forma, e acho que depois também de ler muito sobre o feminismo, de ter amigas feministas e tal, eu acho que nesse momento, e depois de tirar o útero que também foi muito forte essa coisa, né, de... Então, tiro útero não é mais mulher, né? Uma mulher sem útero não é. Mas eu reconheço, foi muito forte, porque eu também me conectei muito com minhas amigas trans, sabe? Com mulheres trans que também não têm útero. E não é por isso que elas deixam de ser mulher, sabe? Então, foi um novo olhar, né? Para mim, ser mulher é tão relativo, sabe? A mulher não precisa ter nascido num corpo de mulher, de feminino e tal, para ser mulher, para se ver como uma mulher, né? Eu me vejo mulher, eu me acho muito mais bonita hoje do que quando eu tinha de 20 a 30 anos, sabe? Eu acho que foi depois dos 35 para os 40 que eu realmente comecei a me ver melhor, sabe? E me aceitar mais, me achar bonita, me olhar no espelho e gostar do que eu vejo, sabe? Eu acho que é importante esse processo. Então, sei lá, ser mulher, para mim, é se sentir uma mulher. E não necessariamente tem que se sentir só mulher. Tem hora que eu sinto em mim uma energia super masculina. Eu acho que eu tenho uma energia masculina, até a minha voz, ela é um pouco grave, né? Enfim, eu não tenho um jeitinho feminino, nunca tive um jeitinho super feminino, aquela coisa. Nunca tive esse lugar.Talvez quando eu era pequena, mas era uma coisa imposta até, talvez, né? Mas, assim, meu jeito é um jeito muito híbrido, assim, eu sinto, sabe?

E o título Kamadas diz muito isso, né? Porque é a Lígia em camadas, são todas as camadas desde o momento em que você nasceu até agora, né? 

Sim. São muitas camadas da minha vida, da minha pessoa, da pele, né? Porque no momento que você corta ali e vai fazer como se fosse uma cesárea para tirar um órgão e não é para tirar uma criança, são muitas camadas cortadas ali também, né? Isso, para mim, foi forte também, ter uma cicatriz enorme no ventre que não foi para ter um filho. São essas camadas também. Eu também gosto muito de mexer com camadas sonoramente. Então, eu sempre... Na pandemia, eu fiz um projeto Povo em Pé, que é um álbum visual que está só no YouTube, em que eu, sozinha, na pandemia, estava aqui no jardim e peguei um loopstation, que é um aparelho que você vai fazendo loops, você vai colocando uma camada em cima da outra e as músicas são todas construídas dessa forma nesse projeto. Essa coisa de camadas vocais e das coisas que eu sempre gostei, desde quando eu comecei a cantar com o meu pai, a gente já cantava juntos e tal. Então, essas camadas têm a ver não somente com tudo que eu falei, mas também com o meu nome que traz nesse disco. Eu trouxe meu pai dentro do disco, sabe? Foi muito importante isso. Eu trouxe a minha irmã dentro do disco. De alguma forma, minha mãe está presente também. E é isso também. O meu avô, o sonho dele era... Meu avô japonês, o sonho dele era ser músico. Ele tocava violino escondido no Japão, porque não podia tocar instrumento ocidental no Japão. Quando ele chegou no Brasil, no dia em que ele bebia, ele saía na rua tocando violino, meu pai morria de vergonha e tudo mais… Eu acho que vem de uma coisa ancestral. Minhas tias todas cantam em japonês. Todas! O pessoal acha que veio da parte da minha mãe, a música. Mas veio muito da parte do meu pai, que é a parte japonesa. Então, trazer esse nome também para o disco foi importante. Não só para mim, mas acho que para meu pai também.

Você dá um novo entendimento ao útero, ou seja, não é necessário gestar uma criança, um bebê, o útero é sobre vida. Tem os laços, o DNA dos pais, a ancestralidade, seus avós, seus bisavós, o mundo, a sua visão… O útero ganha outra potência, né? 

Tem uma música que se chama “Vou no Vou” que foi também um grande agradecimento aos meus ancestrais. Chegou um livro que meu tio escreveu numa época em que eu estava muito interessada na história japonesa e meu tio era o único que sabia porque ele era o mais velho de uma família de sete irmãos e escreveu esse livro, escrito em japonês, ele faleceu, mas deixou os escritos da nossa família e chegou e eu editei todinho os áudios do amigo da minha prima que conseguiu traduzir e foi incrível porque, agora, essa semana, eu tinha que mandar esses áudios pra família inteira antes de lançar esse disco e eu mandei, são quase 50 minutos sobre a minha família, mas foi muito significativo isso pra mim. Nesse disco eu falo muito sobre esse útero que é o ventre da terra - como a gente tem tratado o feminino, não só as mulheres, mas também a terra, porque a terra é o ventre! É a terra que está nos dando vida, se não fosse as árvores, se não fosse a água que corre por aqui a gente não estaria vivo. A gente tem tratado tudo que é o feminino muito mal. Pra mim, “Peixe Acrobata” fala de um feto dentro da barriga, mas também fala da gente dentro da barriga da terra, dentro desse oceano que é 70% do planeta - dentro desse planeta que é muito pequeno em relação ao universo, mas a gente tá aqui, né? Esse ventre da terra, pra mim, foi muito… Por exemplo, as músicas que eu falo, eu sinto que são minhas filhas de alguma forma, sinto que elas também vão deixar uma história… Claro que não é igual ter um filho, eu não vou ter quem cuide de mim, minha música não vai cuidar de mim [risos], ela não vai me levar ao médico, mas pode me levar para outros lugares e podem me dar condição, em outra forma, na saúde, né? Acho que a arte, como foco da minha vida, traz uma satisfação do que eu também tô deixando para o mundo, sabe? Acho que o útero é muito maior do que somente esse órgão, sabe? 

Como você se sentiu ao receber toda a história da sua família para, depois, compartilhar Kamadas

Foi bem forte [receber] o livro, porque muita coisa que eu não sabia, meu pai não sabia… Foi através disso que a maioria da minha família ficou sabendo, porque o único que sabia era o meu tio, a outra irmã era muito pequena para lembrar… Então ele foi o único que viu e que podia falar sobre isso. O meu interesse e também da minha irmã por sabermos de nossas histórias… Ainda bem que ele escreveu isso! É muito forte saber o que eles passaram, o que viram, o que passaram aqui que foi quase uma escravidão - a gente sabe muito pouco sobre a história dos amarelos no Brasil e nas Américas, mas hoje em dia tem muita gente que fala sobre. Inclusive, o Poroiwak, que participa da faixa “Tudo”, ele é do Amarelitude que resgata muito da história dos amarelos desde que chegaram na América, então, é muita coisa que a gente ainda não sabe e a gente sempre considera os negros, indígenas e brancos, como se a gente não existisse, a gente é sempre tido como estrangeiro nessa terra. Ver o que a minha família passou, ver o quanto que eles tiveram que mudar, chegaram a passar fome… Então, tudo isso é muito forte. É bom conhecer um pouco da história.  


Todos os seus trabalhos são potentes. Como você coloca essa potência sem se machucar, afinal, é um disco autobiográfico e falar sobre si pode ser doloroso, certo? 

Olha, é um aprendizado. Acho que ainda tô aprendendo, sabe? Eu tenho uma intensidade desde pequena… Não é fácil pra mim, eu me emociono muito. Eu também sinto que quando eu canto as pessoas também se emocionam. Quando eu fui pra França, eu tava cantando em português e teve um dia que tinha uma mulher que tava chorando e vi que não tinha a ver com o que eu tava falando, porque ela não tava entendendo nada, e aí eu fiquei pensando “eu não quero cantar para as pessoas chorarem, quero cantar para ver as pessoas ficarem felizes.” Algumas pessoas veem, no final do show, falar comigo, e [dizem] “é uma coisa que toca em um lugar que eu não sei explicar”, então, fiquei mais tranquila com isso hoje em dia. Arte é sobre isso. Eu acredito muito numa questão espiritual, acredito que não é só eu que tô fazendo isso, existem outras coisas, acredito na minha espiritualidade. 


Como você se sente ao revisitar sua ancestralidade sabendo que seu pai e seu avô gostariam de ter sido músicos, mas não puderam, mas você realizou. Você acha que conseguiu dar voz a eles? 

Eu não tenho essa pretensão, mas eu acho que de alguma coisa, sim. Meu pai tá super feliz! Ele me ligou essa semana [falando] “passamos de dez mil! Passei da minha meta” [número de players que “Sacode” foi tocada no Spotify] [risos] Essa é a música que ele canta também, ele faz um coro… Foi muito difícil, ele não queria fazer de jeito nenhum, foi necessário um trabalho de muita gente para que ele entrasse no estúdio nesse dia. Então, de alguma forma, sim… Ele tá super feliz e tenho certeza que meu avô, lá de cima, deve tá feliz, entendeu? O álbum se chamar Kamadas, sei lá, da música “Vou no Vou” ele tá lá [se emociona, limpa os olhos]. Desculpa, eu vou me emocionar. 


Em "Talvez em Março", você diz que quer desaguar, abrindo-se para si mesma. Agora que estamos em abril, as águas seguem jorrando ou elas se acalmaram? 

Não, acalmou, acalmou. Acho que com o processo do disco, tudo que eu passei… Onde foi que mais desaguei foi no processo do antes da cirurgia, foi o momento que mais aconteceu. Depois da cirurgia acalmou, foi acalmando devagar e fui entrando nesse processo do disco à mil, muita coisa, muita coisa, muito trampo pra deixar esse disco pronto… Agora eu tô bem, tô bem fortalecida, inclusive. Mas eu sou uma pessoa emotiva! [sorri] Eu falo das coisas que me emocionam e me emociono de novo, entendeu? [risos] Eu não quero perder isso! 



Quando Ligia Kamada pergunta "o que pode uma mulher sem medo?" em "Sem Útero", ela não procura respostas, pelo contrário, Ligia sabe muito bem a força que possui e que novos voos sempre são possíveis, como canta em "Vou no Vou": "os pássaros renovam minhas asas". Um útero não define nenhuma mulher.

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