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Foto do escritorMichele Costa

Impressões: Manual Para Sonhar de Olhos Abertos

Atualizado: 29 de jun. de 2021

Ao abrir o livro "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos" (Letramento, 2021), a orelha do livro pede, sem licença, para que seja vista. Lisa, sem nenhuma frase, abro e vejo apenas duas pernas desenhadas em preto e branco. Ao manuseá-la, reparo que os movimentos que fiz me lembram do esticar uma perna. Veias, nervos, músculos, artérias e toda aquela anatomia que me foi apresentada anos atrás na escola completam o desenho. Porém, as pernas são diferentes - repare com atenção.


Continue com a orelha do livro esticada. Agora, olhe para a capa: você verá o buraco da capa, que continha uma imagem indecifrável, ficar cinza. Olhe para a contracapa que conta com poucas informações: "Todas essas memórias datam a partir de minha viagem para Vallegrand, tentando esquecer um tiro na perna". As peças do quebra-cabeça começam a se juntar: "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos", primeiro livro de Helio Flanders, contará o exílio do protagonista que tomou um tiro na perna.


Ao passar as páginas pelos meus dedos, vejo que a obra contém um mapa. Lembro de "Ulysses" de James Joyce e a nostalgia de Stephen Dedalus. Inicio a leitura: "Se escolhe uma cidade para morrer pelo cheiro que seu nome tem". Paro e penso: Qual o cheiro de São Paulo? Meu nome não combina com a cidade de pedras. Se for para morrer, quero um lugar com natureza. Relembro meus passos no interior de Minas Gerais, em Lavras, alguns anos atrás. Eu morreria ali - perto das cachoeiras, do cheiro do mato e com todas as memórias adoráveis que guardo na mente; além de combinar com meu nome. Ao chegar nessa conclusão, me questiono: eu realmente me conheço? Estou vivendo? A vida tem um sentido além de ser dolorosa? Quão verdadeiro é o ser humano no dia a dia?


Guimarães Rosa disse uma vez que viver é perigoso, mas também é "rasgar-se e remendar-se". Para Helio, é uma mistura entre as duas afirmações; onde multidões se encontram, tornando-se um só corpo. Nos remendamos em pessoas, momentos, lugares e lembranças, porque encontramos o amor que sempre sonhamos.


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"Manual Para Sonhar de Olhos Abertos" conta a história de Pitico, um jovem manco que busca refúgio em Vallegrand, na Bolívia. Com poucos utensílios em uma mochila e a vontade de continuar vivo, acompanhamos a caminhada do forasteiro em sua nova estrada. Ao lado de sua bengala, Pitico apresenta a cidade e suas novas amizades que são recheadas de poesia.


É interessante imaginar que um forasteiro, uma pessoa que deve estar fugindo de algo, ter tanta lábia, curiosidade e facilidade para fazer amigos. Então, lembro que não é possível separar o criador de sua obra: Pitico é Helio, que carrega os ensinamentos do camarada Walt Whitman, a iluminação de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, a escrita de Franz Kafka e a devoção de Caio Fernando Abreu. Realidade e ficção se misturam. No final, eu também me vejo em Pitico - assim como todos os leitores.


"(...) Dias antes, bêbado, ao fim da madrugada, havia discursado sobre despedidas. Disse que deveríamos nos acostumar a elas, pois estas seriam as únicas a nos tirar pedaços durante a vida e elas viriam em doses cavalares, cada vez mais, com o passar dos anos."

Mais de um ano de isolamento social, tendo contato com apenas minha mãe e minha cachorra Pina, confesso que "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos" me emocionou. Só percebi que chorei em algum momento, após as fungadas que o nariz fazia. Será que foi quando percebi que a bengala de Pitico é uma extensão do seu corpo - seguindo a mesma ideia de Whitman?! Ou quando percebi que é possível mostrar os sentimentos, o verdadeiro, em uma pandemia ou em uma fuga?! Não sei ao certo, mas também não importa. Porém, friso que a obra remexe com tudo que está dentro do leitor, desde suas veias até as lembranças mais antigas.


No decorrer da história, nos diversos encontros de Pitico com seu passado e presente, o protagonista encontra respostas para buscar o futuro. Através dos novos amigos, das caminhadas, do rio Cuyaba ou dos bares que passou, Pitico se (re)encontra. No meio de drogas, bebidas, cartas e casos inacabados, ele consegue a autonomia necessária para continuar a caminhada de sua existência. "Ainda bem que sempre existe outro dia, e outros sonhos, e outros risos, e outras pessoas, e outras coisas", repito a frase que ouvi na infância, bem baixinho, para Pitico.


Misturando poesia e prosa, o autor envolve o leitor em um mundo utópico, onde o sentimento vale mais do que o acontecimento. Inclusive, não é preciso ir muito longe para concluir que a frase de Guimarães Rosa está correta. No decorrer da leitura, Helio mostra que é através dos remendos que continuamos a caminhada. Por mais que doa, é preciso viver para continuar amando, celebrando.


"(...) Quando o conheceu, Valentino me confessou, posteriormente, ter tido vontade de chorar. Eu não pude dizer o contrário. O meu primeiro dia com Brinco foi uma comoção por todo o meu corpo e sentidos. Uma esperança de triunfo num mundo estéril, uma exaltação de nós mesmos, que jamais teríamos orgulho ou lugar dentro de qualquer cidade do mundo. Brinco parecia trazer a paixão que não nos faltava, mas que tropeçava em nossa própria falta de coragem de exercê-la a full. Quando contemplo a mesma alvorada que nos perseguiu aquele dia ainda sou tomado por erupções e epifanias. No momento em que nos abraçamos ao nos despedir e nos olhamos com olhos molhados, vi as andorinhas marcharem."

As palavras de Whitman em "Para as terras estrangeiras" (disponível em "Folhas de Relva" - edição do leito de morte, Hedra, 2011), explica um dos motivos para continuar escrevendo - e uso uma parte para aplicar em Flanders -: "(...) Por isso envio a você meus poemas, que você encontrará neles o que procura". Em momentos difíceis, cheios de perdas, Helio Flanders celebra a vida e nos mostra que é importante continuar sonhando. O amor salva.


Sonho por dias melhores. E você?

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