A cidade de pedra esconde em seu subsolo mais de 300 rios, córregos e riachos que carregam histórias, lendas e curiosidades. Mesmo modificada, industrializada e muito mais cinza do que colorida, São Paulo é inspiração para o trio Anhangabahy. Seguindo a mesma ideia de Mário de Andrade, o grupo constrói crônicas paulistanas a partir de observações da realidade.
Formado por Hévelin Gonçalves, Rui Condeixa Gonçalves e Wady Issa Fernandes, o Anhangabahy atravessa (como os rios) pelo teatro e pela literatura para criarem canções que falam da loucura do tempo, da vida da metrópole, situação política e, claro, o amor.
O nome faz referência ao rio que costumava cortar o vale do Anhangabaú, que era conhecido como "Córrego das Almas". Um ótimo nome para os dias atuais, já que o centro ficou/está esquecido pelos governantes.
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São Paulo realmente inspira vocês?
Hévelin: Me inspira artisticamente muito! São tantas coisas para observar, até a tristeza inspira, não só a alegria. Às vezes, a gente olha pra São Paulo e é muito triste, muito dura, e às vezes é muito linda, mágico… E essa coisa dela ser tão gigante; são várias cidades dentro de uma. Você pode se deslocar do centro para qualquer lugar e você já tá em outro mundo.
Rui: E às vezes até de forma direta. A gente tem a nossa cota de músicas que remete diretamente à cidade: uma das primeiras que a gente fez, chamada "Anhangabaú" que foi bem nessa onda das jornadas de junho [às manifestações que aconteceram em 2013] que tem um verso "Um olhar a menos não te deixa cego" [corte na gravação] e faz todo recorte ao "O Anhangabaú anda tão feio", faz toda essa coisa em volta da imagem da frase. Reformaram [o Anhangabaú] e continua feio. Lembro que a gente falava: 'Pô, vão reformar e a nossa música vai ficar pra trás", mas aquela reforma brutalista… A gente pode continuar. Tem uma música que fala da história do nome da banda, chamada "História do Centro", que também fala do Anhangabaú, onde tinha o ribeirão das almas… Em geral, quando eu componho, eu tô na rua. É mais raro de vir uma ideia de canção dentro de casa do que na rua.
Será que em algum momento vai voltar a ser alegre?
[leve pausa] Wady: Eu diria que depende da música [risos], porque a música "Anhangabaú", que tem o nome dentro da música por conta do rio que está embaixo do Anhangabaú, fala que a gente tá plantando uma semente para as pessoas do futuro que serão melhores do que a gente. Então, tem essa esperança de que sim. Mas também às vezes aparece um outro lado de que isso não dê certo.
Hévelin: "Torvelinho" também fala disso: "Como água brotando no chão". Nem eu tinha parado para pensar nisso agora, do quanto essa água que brota do chão também é a gente, porque o Anhangabahy é rio, que está abaixo do Anhangabaú, né. Eu acredito nessa força brotando pela água, a natureza… É muito forte como ela se espalha e sobrevive. Então, acho que a gente é parte disso, a gente pode ter uma florzinha e é uma sementinha…
Rui: Mas tem uma coisa que reina no paradoxo que eu acho que tem a ver com isso que o Wady tá falando e que a Hévelin tá falando… São Paulo é alegre também, ela é horrorosa e linda também. Tem uma canção que eu tô compondo agora que o verso é: “Que delícia deslizar da Vergueiro até a Sé, da avenida Liberdade” que é um troço que eu faço muito esse caminho de bike - como diz a canção: “Longa descida suave” -; e um dia a Evelyn foi pegar esse caminho e falou: “vai se foder você, não tem nada de delícia” [risos].
Hévelin: Só passei raiva nesse caminho.
Rui: Mas é essa coisa do terreno do paradoxo: um dia você pega o ângulo certo, a temperatura certa e você vai deslizando… São Paulo produz, como produz morte, também produz muita festa. Duvido que São Paulo vai ser corrigida, no sentido daquele plano lindo e maravilhoso que os urbanistas têm - eu não sou otimista o bastante para achar [que isso vai acontecer]. Mas é bonito mesmo assim.
Hévelin: Acho que o ser humano consegue dar uma transformada na realidade, um pouco, um dia. Não é fixo. Como a Santa Cecília, onde a gente mora, eu já vi uma tap lapse, vamos dizer assim, durante todos esses vinte e quatro anos que eu tô morando aqui, já vi a região ir ao baixo e subir e ir ao baixo e subir… Você vê o bairro respirando um pouco essas mudanças. Muitos lugares que não tocavam samba na rua hoje eu tô vendo que hoje eles estão tentando cantar. E dá vontade de parar e ficar - e eu paro! São tentativas e isso traz um pouco de felicidade.
Qual é o papel do artista? E qual foi o papel durante os anos de pandemia?
[pausa longa] Hévelin: Acho que o artista começa naturalmente, sem a preocupação do que vai ser, do que vai virar. São reflexões que você nem tem ainda formada. Fichas vão caindo no decorrer do tempo e a gente se molda em posicionamentos. Zé Celso [diretor, ator e dramaturgo do Teatro Oficina] foi um cara que não se dobrava para ser algo para alguém. Eu fico preocupada, às vezes tantas bandeiras caberem em mim e eu não atender bandeira nenhuma.
Rui: Eu queria que o papel do artista fosse fazer arte, porque as pessoas precisam.
Hévelin: A gente fica listando as bandeiras que a gente gosta e que não gosta, mas de fato, estar lutando pra cada bandeira daquela ou cada posicionamento fazer muito sentido… Eu não sei se fazer muito sentido pra nós é o papel do artista, sabe? Eu não tenho uma resposta correta para isso. Eu me envolvo com coisas que me comovem. Acho que o artista tem que tentar [mostrar] que as pessoas são livres, mas sem machucar ninguém.
Wady: Eu entendo o ofício do artista dentro de uma perspectiva de entreter e questionar. Às vezes, questionar é uma crônica, não só no âmbito político e ao entreter e questionar, ajudar a dobrar-se sobre si - o pensamento que dobra-se sobre si para se entender, né. No sentido da pandemia, acho que não ganha mais do que no comum, não teve um “se tornou mais importante”, mas se tornou muito importante esse movimento da arte, do artístico, trazendo essa significação, trabalhando todos esses sentimentos represados. Eu lembro que teve incontáveis vídeos da galera tocando juntos, tentando buscar essa conexão que tinha sido quebrada, né. Então, todo esse movimento de se significar, da sociedade se entender, o artista performa isso, de uma forma ou de outra.
Vocês misturam samba com o movimento carnavalesco e o bolero, trazendo as guitarras do rock. Como é feita essa mistura?
Wady: A gente é influenciado pelos grandes medalhões da MPB, principalmente Caetano, mas todos esses grandes medalhões tem de [misturar] diversos ritmos, trazer coisas do rock, do reggae, do carimbó. A gente aprende com eles, nossos avós [risos].
Rui: Mas uma característica dos arranjos do Wady é essa coisa de quebrar no meio, né? Na mesma canção você tem uma virada…
Wady: Eu gosto bastante de brincar assim. Dentro da mesma canção, utilizar esse recurso de misturar, de estar fazendo funkiado e misturar com marchinha, a gente fica dentro da brasilidade.
As canções são crônicas que trazem questões históricas e sociais, do dia a dia. Como é feito o processo de criação?
Rui: O processo de criação não é um processo de criação, as coisas caem do céu na minha cabeça e eu agradeço. Se é pra trabalhar é pra achar a harmonia dela, mas letra e melodia…
Wady: Vem de estímulos da vida, né? Eu percebo que tem alguma coisa que te dá o estalo e daí esse estalo…
Rui: Mas é muito aleatório, né. [Ao] andar de bicicleta sempre vem uma inspiração que surge, às vezes fica até temática…
Wady: São inspirações cotidianas, acho que isso ajuda a ter esse caráter de crônica.
Rui: Eu sou escritor em outras freguesias também. Eu sou dramaturgo e também escrevo literatura e é muito diferente cada uma, até a poesia tem a coisa do sentar para escrever, aí você fica dando volta, mexendo naquele verso… A canção vem muito mais pronta pra mim, por isso que eu falo que é um não processo. E também é um inferno porque às vezes ela fica incompleta por anos, né.
Ao cantar, vocês também trazem o ar teatral e da literatura. Como é fazer essa brincadeira de misturar diversas coisas, como a performance e o modo de tocar?
Hévelin: Muitas vezes eu queria combinar mais, ter um tempo maior de cuidar, vamos dizer assim.
Wady: A gente tem esse cuidado de olhar como espetáculo, já que são corpos em um palco, com música e tudo. E tudo isso conta história, comunica coisas. Eu acho que a gente tá, justamente, em um processo de refinar ainda mais essas influências que vem naturalmente… A literatura vem porque o Rui é escritor, dramaturgo e dentro dessa lógica de crônica, as palavras… Ele até canta várias vezes em metalinguagem, de viver as palavras, de cantar as palavras.
Hévelin: A gente sai do show e as pessoas perguntam: “Vocês fazem teatro?”. A gente ainda tá buscando uma linha de comunicação que pode juntar isso legal, porque pode forçar a barra, né. A gente projeta para o futuro sim, um show bem teatral, já estamos um pouco discutindo aqui um pouco sobre. É um desejo. Algumas pessoas falam: “Parece que você tá vivendo alguma coisa dentro daquela música”, e é gostoso [ouvir isso] porque a gente vê as imagens e a gente não trabalha com adereços a gente leva, né… Eu fico, muitas vezes, sem saber o que a gente fez para aquilo acontecer… Às vezes, a gente entra num jogo onde um fica de costas, o outro falar com aquelas costas, fazer um gesto com a mão que fica mais presente - aquilo já entra numa chave para as pessoas se envolverem com aquilo.
O palco também dá essa liberdade, né?
Hévelin: O palco é aquele momento que é tua casa também, né? É teu chão e tem que tá confortável com ele, né. Eu acho que quanto a gente tá [nele] e passa esse conforto, isso reverbera mesmo.
Em "A Mais Bonita", vocês cantam: "É preciso abraçar a vida para ver o que ela tem para dar". Para vocês, o que a vida tem de mais bonita?
[longa pausa] Rui: Putz, cara…[pausa] Vou fazer paralelo com outro verso, que é do “O Trabalho é a Maldição”: “A vida não é prisão, mas é fácil de virar”. A vida humana tem essa coisa, essa possibilidade de ser a coisa mais maravilhosa e o inferno mais horroroso. Inclusive, às vezes, algumas pessoas têm o azar de experimentar as duas coisas, né. A gente é artista e isso já é… [pausa breve] A arte, o amor e a beleza. Eu sou um defensor da beleza, como um valor humano superável - inclusive, falando de São Paulo, da cidade, né. A São Paulo que eu experimento, morando onde eu moro, andando por onde eu ando é muito mais bonita do que a São Paulo que outras pessoas experimentam morando onde elas moram e fazendo os caminhos que elas fazem. Mas eu acho assim: acredite na beleza, cara. É o clichê do clichê do clichê, mas é real. Olha pra fora, olha pro céu e para as flores, porque isso faz toda diferença.
Recentemente, vocês lançaram "Torvelinho", uma canção bem produzida. Como foi fazê-la?
Wady: A gente explora bastante o atenuo, o questionamento, o sentido da vida. A gente quis trazer isso de forma leve, por isso, trabalhamos com cores vibrantes nos ensaios fotográficos e na composição.
Hévelin: Acho que musicalmente, você pode acrescentar que…
Rui: Foi a primeira vez que a gente trabalhou com produtor musical.
Hévelin: É, foi a primeira vez que a gente teve alguém coordenando a produção, que a gente sempre fez. Isso pesa muito!
Rui: Quando é você que faz a coisa, o ouvido vicia.
Evelyn: Quando você tem uma pessoa que deixa o ouvido livre para mapear aquilo bem legal e coordenar, o que foi que aconteceu. Foi corrido, na verdade, porque tudo é rápido [risos]. Musicalmente, eu fiquei muito feliz! O resto, as coisas das imagens, eu acho que tem muito a ver com a gente, no campo pessoal de como a gente quer enxergar o mundo mesmo.
Rui: E com uma caveira [risos].
Hévelin: É, como não falar de morte também?! Porque falar de vida é falar de morte, não tem escapatória, as duas coisas caminham junto o tempo inteiro. E como a gente é viciado em desenho animado, a gente usou nossas referências de “mundo legal” [risos] e foi por aí que pintou o colorido da coisa toda e querer jogar um pouco de fantasia para não ser uma música… As palavras não baterem, apesar de toda musicalidade, a reflexão não bater de maneira: “pô, tão falando de morte”. A gente quis deixar tudo pra cima porque é a nossa vibe.
No final das contas, a vida é realmente um torvelinho?
Hévelin: Menina, eu não paro de falar nisso! É toda hora, porque toda hora passa um torvelinho. A arte é foda por causa disso, porque você começa uma coisa - qualquer coisa que você vai trabalhar -, o texto ou o teatro, você começou a falar sobre aquele assunto de só ver isso e não ver mais nada. Então, começou a falar de torvelinho… Meu pai me liga e a frase é: “É, a vida é um torvelinho”. [risos]
Wady: Aquele ditado: “O mundo não dá voltas, ele capota”, né. Acho que a gente é surpreendido por essas coisas que a vida traz o tempo inteiro, né.
Hévelin: Mais torvelinho do que o governo anterior!
Como fugir desse torvelinho, baseado nas cores que dão vida?
Rui: Acho que você não foge, cara. Você tem que ficar ali que nem a Dorothy [protagonista de “O Mágico de Oz”]. Viver dentro do torvelinho.
Hévelin: É foda, a Dorothy encontra um mundo colorido, mas não é tão bom. Ela sai da sépia e entra naquele universo fantasioso, cheio de maldade e aprovações. Eu acho que, depois que passa o torvelinho, e você cai… Se você pensar, o mundo vai passar, você vai passar e o mundo vai continuar. [Rui fala junto a última frase] Não tem jeito, é viver e contar história.
As músicas do Anhangabahy passeiam por um redemoinho, já que despertam diversas sensações, devido à realidade. Ao ouvir "Sonhar é a Solução", disco gravado em 2018, lembro de “O Mágico de Oz”: os furacões acontecem diariamente e, por mais que tentamos sair daquele lugar, é necessário viver para aprender. Como citado no livro: "A verdadeira coragem está em enfrentar o perigo quando você está com medo." Sonhemos!
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