No poema "Quando eu morrer", Mário de Andrade pediu para que cada membro do seu corpo fosse enterrado em uma rua de São Paulo. Setenta e oito anos depois de sua morte, o escritor paulistano segue presente (seus pedaços cada vez mais vivo) em muitas obras. Inclusive, ele é um dos personagens de "São Paulo", peça de teatro que mistura as memórias de Regina Braga e a formação da cidade da garoa.
Durante 90 minutos, o espetáculo teatral passeia pelos encantos, mistérios e fatos curiosos da cidade que diz que não dorme nunca. Para contar a história da personagem principal - e gigante -, São Paulo, Regina conta com a participação de Alfredo Castro (voz e percussão), Gustavo de Medeiros (voz e violão), Vitor Casagrande (voz, cavaquinho e bandolim) e Xeina Barros (voz e percussão).
Para mergulhar no texto de "São Paulo" é necessário prestar atenção aos pequenos detalhes: a longa mesa (os pés que a sustentam lembram caules que enraizaram no palco, lembrando as árvores da cidade que continuam sendo engolidas pelas transformações urbanas), as garrafas de vidro cheias de água, que lembram os bares paulistanos, e, por fim, os diferentes sotaques.
(Foto: Roberto Setton/Divulgação)
A ideia do espetáculo surgiu dez anos atrás, após Regina Braga finalizar a leitura de "A Capital da Solidão: Uma História de São Paulo das Origens a 1900" (Objetiva, 2003), de Roberto Pompeu de Toledo. No decorrer da história, a atriz já avisa que não é daqui: nasceu em Belo Horizonte, mas chegou à cidade quando tinha 18 anos para estudar na Escola de Artes Dramática. Após tantos anos vivendo em São Paulo, Regina mostra que é paulistana - do coração até a alma.
Sob a direção de Isabel Teixeira, "São Paulo" traz textos de autores que traduziram a cidade no decorrer dos anos, como o padre jesuíta José Anchieta, Mário, Drauzio Varella e Plínio Marcos. São 469 anos de histórias, transformações, mudanças e mediocridade. A cidade que "mais possui oportunidades", tem 32 mil pessoas em situação de rua e mais de 600 mil pessoas em extrema pobreza. É possível amar São Paulo?
Regina mostra que sim: ao contar suas histórias, é possível sentir o seu amor, mas também a raiva pelas poucas mudanças. Ao relembrar da amizade com o ator Paulo José (impossível esquecer a atuação dos dois na novela "Por Amor" (1998)), São Paulo ganha outra intensidade, afinal, foi aqui que a atriz se formou como atriz, conheceu artistas incríveis e fez sua carreira. São Paulo é difícil, cinza e chuvosa, mas ainda existe a cumplicidade dos amigos.
As músicas também invadem "São Paulo". Sozinha ou acompanhada, Regina solta a voz durante o espetáculo. "Samba Abstrato" (Paulo Vanzolini), "Viaduto de Santa Efigênia" (Adoniran Barbosa), No Sumaré (Chico César), Persigo São Paulo (Itamar Assumpção) e "O Mundo" (André Abujamra) são algumas músicas que dão o tom da peça - os músicos fazem um trabalho espetacular.
Após o fim, o texto segue ecoando na cabeça do telespectador. Relembro de uma frase do protagonista Carlos, interpretado por Walmor Chagas, de "São Paulo Sociedade Anônima" (Luiz Sérgio Person, 1965): "Recomeçar, trabalhar, mil vezes recomeçar. Por isso escolho São Paulo".
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