O cronista tem um papel fundamental na sociedade: a partir de suas observações - cenas corriqueiras, acontecimentos banais ou inusitados -, dá o seu testemunho sobre a vida com humor, ironia e até mesmo nostalgia, despertando diversos sentimentos naqueles que o acompanham. Seguindo os passos de Bob Dylan, Walt Whitman e Xico Sá, Veludo Azul transforma o dia a dia em canções com arranjos densos, embebidos de fórmulas roqueiras e também mais embluesadas.
Formada pelos amigos Emil Kopaz, Felipe Fretin e Sergio Hime - integrantes da ex-banda Cabeça Óca - a Veludo Azul produz uma sonoridade calcada em alicerces da música brasileira, como o samba e a bossa nova, sob uma estética mais elétrica e roqueira, com ecos do blues, do rock progressivo e psicodélico. Dessa maneira, a banda tem a liberdade para se expressar conforme suas sensações.
Após lançar os singles "Bença e Tchau" e "Minha Liberdade", no ano passado, a banda compartilha agora o primeiro EP, Cinco Contos, que conta com cinco canções que passeiam entre o carnaval e amores. "Ao mesmo tempo que temos muitas referências em comum, cada um também tem seu próprio universo musical e artístico. E isso foi muito interessante, porque sinto que conseguimos trazer essas referências individuais sem tirar a coesão do trabalho. E com isso sinto que cada faixa foi sendo levada para um caminho muito particular e individual, com elementos que nos levam para alguns lugares bem curiosos", comenta Emil.
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Como foi iniciar uma nova banda, com uma nova sonoridade? É tudo novo de novo ou vocês já estavam preparados e não teve aquele receio?
Felipe: Eu acho que foi bem tranquilo. A gente já se conhece há bastante tempo, a banda é praticamente a mesma, né. Mas a gente quis mudar o layout e começar uma coisa do zero, com a nossa marca, nossa digital e maduro, porque foi um processo de conhecimento e das possibilidades. Foi um processo muito tranquilo fazer essa transição.
Sergio: Algumas coisas foram diferentes, mas foi muito bom… A gente já toca junto, a gente já se conhecer bem, então, a gente sempre teve muito entrosamento. Então, nesse quesito, a gente não pensou que era uma coisa tão óbvia. Mas o que foi muito interessante é que com esse novo projeto de agora, a gente acabou colocando muita coisa que a gente tinha dentro da gente, sabe? Isso de referencia mais de rock dos anos 60, tanto de timbre, das formas das músicas. Isso foi muito bom porque parecia que era uma coisa que tava guardada na gente e a gente sempre conversou sobre isso, né… A gente gostava muito de Beatles, de Pink Floyd, Stones, Bowie e a gente sempre quis por tudo isso mais pra fora - e esse momento é muito bom porque parece que a gente tá conseguindo colocar pra fora mesmo, sabe? Na verdade, foi uma soma ótima, porque é isso, a gente já tinha entrosamento e tal e a gente tá colocando uma coisa nova, mas de um jeito super natural, sabe? Não foi uma coisa forçada, era uma vontade que sempre teve na gente. É muito prazeroso, zero dificuldades de formar algo novo, foi super natural, na verdade.
Em nenhum momento rolou aquele medo?
Felipe: Acho que não. Na verdade, por ter sido tão orgânico, foi especialmente depois de ficar naquele hiato de pandemia e tal, acho que foi muito natural. E acho que tem isso, o começo, esse reset, é uma chance de botar a coisa com mais maturidade, com mais direcionamento.
Sergio: Isso do reset é engraçado porque nem parece que é uma coisa, por exemplo, que encerrou e que outra começou. Parece que é mais no sentido de evolução e juntando isso que o Fê tava falando, da pandemia, como pra tocar, a gente precisa da presença do outro - claro que a gente conseguiu fazer coisas a distância, cada um fazia as coisas de casa e íamos implementando - e olhar um no olho do outro é o que faz a diferença pra gente tocar, exprimir os sentimentos em forma de música. Querendo ou não, a pandemia acabou deixando muita coisa guardada e agora é o momento que a gente pode soltar isso.
Vocês também acham que a pandemia influenciou nessa maturidade de vocês e na sede de aprimorar o som de vocês?
Felipe: Acho que sim, cara. É uma coisa que a gente lê nos livros de história e não imagina que na sua geração a roleta vai sair premiada e que você vai passar por esse troço dessa magnitude. Então, toda perspectiva muda, em todos os sentidos: de trabalho a relação. Teve aquele momento em que todo mundo se encontrava para tomar uma cervejinha por Zoom. A gente tinha acabado de lançar um trabalho também e ficou aquela sede de tocar e ficamos num vai ou não vai e foi assim por dois ou três anos em desacreditar no que tava acontecendo. Mas foi bom, por mais que tenha sido forçado, tem esse momento de introspecção e colocar as coisas numa perspectiva distanciada. Então, foi uma coisa de rever várias prioridades, não só na música, mas em todos os quesitos da vida, porque a gente tava, de repente, preso com a gente mesmo e teve que confrontar um monte de coisas. E ter esse direcionamento, que tava sempre latente, esse negócio de fazer uma coisa mais elétrica e tal, sem deixar pra trás essa coisa informativa que a gente tem da música brasileira, né. Então, quando a coisa entrou nessa perspectiva de realmente de só poder se ver pela internet e só ficar numas discussões platônicas sobre o que a gente já tinha feito e o que a gente queria fazer… Por mais que tenha sido um terror, foi útil.
A gente sai daquele tempo horroroso e uma nova realidade ressurge. Como foi o retorno e lidar com a sede de viver e tocar? Essa necessidade continua presente em vocês?
Sergio: Sim, acho que a volta foi muito difícil, mesmo! Quando as coisas começaram a abrir e tal, mesmo depois de vacinas, pra mim, particularmente, foi super difícil a volta, porque tinha um medo de pegar [o vírus], mesmo com vacina… A gente ficou super assustado. Não foi um estalo de "nossa, voltou, tá normal. Vamos pra rua!" A gente tá sentindo ainda os efeitos, mas foi uma coisa super lenta dessa abertura. E [sobre] essa vontade, é o que o Fê tava falando, foram anos guardando isso. Então, pra gente, dá muita vontade de tocar, subir no palco, gravar em estúdio. Eu e o Fê adoramos gravar em estúdio, de entrar lá e ficar olhando as coisas na lupa, como as coisas serão gravadas… Então, você ter isso de novo é maravilhoso. Até porque, quando a gente gravou esse EP, a gente foi fazendo isso: era uma coisa meio colaborativa durante a pandemia, que um ia gravando em cima do que o outro mandava e ia mandando, enquanto o outro ia escrevendo e depois a gente ia mudando… Aí teve um momento, quando já tava abrindo mais, todo mundo fez teste, a gente se encontrou pra tocar, um pouco antes de gravar. Era uma coisa super controlada, mesmo fazendo uma coisa super legal e prazerosa, que a gente tava com super vontade, mas com um puta medo ao mesmo tempo… Era um sentimento muito esquisito. E agora é isso: querendo ou não, de certa forma, a gente tem um "atestado" do que a gente pode fazer sem insegurança.
O que me chamou atenção é que o EP traz essa liberdade - e acho que foi o resultado de ficar preso dentro de casa por tanto tempo. Veludo traz essa liberdade também na sonoridade, né? Essa escolha foi também orgânica e/ou resultado da pandemia? E como é brincar com essa liberdade para misturar gêneros musicais e criar uma coisa linda?
Felipe: Obrigado [risos]. Eu acho que é uma coisa que a gente tem mesmo, sabe? A gente tem isso na nossa interação, na nossa formação, essa coisa de plural, multidisciplinar. Eu acho que dificilmente alguém no Brasil não tenha um escopo enorme de referências, né. A gente tem música brasileira que é uma coisa riquíssima e o rock, não só brasileiro, mas tudo que a gente tem dos anos 60, 70 e 80… O que a gente faz com mais profissionalismo é consumir música [risos], a gente acaba trazendo um monte de referências e não só da música, mas de outros lugares: cinema, literatura e tal. Então, isso veio bem organicamente, não só na construção da nossa musicalidade como grupo, mas também como interação, sempre alguém tem uma coisa nova para mostrar e troca uma figurinha ali e tal. Acho que é um traço nosso mesmo, de ter um monte de referência e ter a disposição de misturá-las e ver o que saí, né [risos].
Sergio: Complementando sobre sonoridade: é interessante que quando a gente começou a tocar juntos, eu, Fê e Emil, a gente fazia um som muito mais acústico, era uma coisa mais de violão, o Emil tocava muito bandolim, muita coisa percussiva e tal.. Eu lembro da gente tocando lá atrás, a gente sempre teve essa vontade de colocar guitarra, de colocar sintetizador, de colocar bateria, sabe? É isso que o Fê falou, foi uma coisa muito orgânica, porque a gente sempre gostou muito de música brasileira e rock lá de fora e daqui, então, foi uma coisa bem natural essa evolução, sabe?
As letras de vocês conversam com a realidade, criando uma crônica, que tem um toque de humor e uma certa ironia ali, envolvendo na sonoridade. Como é trazer a realidade para a música de vocês?
Felipe: [Há um breve corte] A maioria das coisas é fictícia. Se você vê uma coisa e aquilo te dá uma razão para inventar uma história… Você cria algo e busca uma moral da história. Eu acho que é um terreno pantanoso, uma área difusa, porque nada do que tá sendo contado ali realmente aconteceu, pelo menos não na minha experiência, talvez como observador, mas… Acho que tem um pouco dessa coisa que é característica da nossa amizade: a gente tira sarro das coisas, de repente, alguém fala aquela besteira que é hilário e vira piada interna e acho que tem bastante disso nas letras, da maneira como a gente observa a realidade e cria uma anedota - e essa é a beleza das histórias. Acho que dá pra falar muita verdade, mentindo.
Sergio: Acho que a questão da sonoridade, de como elas se complementam, é quase como se a música fosse mostrando pra gente por onde se deve ir, sabe? Porque as composições, as letras do Fê, são tão genuínas que você vai por uma coisa ou outra e a própria música te mostra se é por aí ou não, sabe? É quase como se você tivesse desvendando a própria música, como se fosse algo que já existe, mas você só tá percorrendo algum caminho. Por conta da nossa amizade, a gente sabe o que um gosta e o que o outro desgosta, não é uma coisa racional… Não sei, só vai fazendo sentido, sabe? Isso é maravilhoso, porque não é uma coisa racional que você fala "vou por uma distorção aqui, porque eu quero que tenha esse efeito"; você só pôs porque era o que tava sentindo na hora. Fica um sentimento verdadeiro, você não tá tentando atropelar alguma coisa, você só tá se submetendo aquilo que verdadeiramente quer dizer aquela canção.
O carnaval tá chegando e vocês tem uma música que leva o título da principal festa. Nela, vocês cantam: "Birita é o remédio para dor no peito". Quem nunca foi jovem, né?! Essa afirmação continua atual?
Felipe: Eu gosto da coisa, Michele, mas a gente não tá ficando mais novo, né [risos]. Então, a relação com a coisa muda um pouco. Mas acho que faz sentido no geral, porque é justamente esse negócio de que… Naquele momento de expurgo, naquele interlúdio estranho da vida cotidiana, você consegue extravasar, você consegue sair do personagem, seu coração tá batendo do lado errado e ao invés de tratar as coisas, você afunda ainda mais com birita. É meio essa provocação do que é o carnaval, no sentido de que é realmente um expurgo, sair do personagem mesmo, depravar a personalidade e ver o que saí dali. E aí tem todas essas dicotomias do Cristo brigando, então, todo mundo ali tá errado [risos]. Acho que tem essa brincadeira de que bate no lado direito, no sentido de dar certo, sei lá [risos], mas fica aberto para interpretações. Acho que todo mundo passou por uma história bizarra de carnaval que saiu do personagem, né.
Sim, sim, com certeza! Só se vive uma vez…
Felipe: Exatamente [risos].
Aliás, essa questão de interpretação me chama atenção: ao criar a música, vocês sentem uma coisa, mas quem ouve, pode ouvir de outra maneira. Como é ver essa questão? É esse também o impacto que vocês querem causar nas pessoas?
Felipe: Eu acho que isso é inerente, né. Não tem como você jogar algo no mundo e esperar que as pessoas vejam da maneira que você concedeu - e acho que a beleza da coisa tá nisso. De você ter outra percepção, jogar e, de repente, outra pessoa vê e falar um negócio bom ou ruim que você nem tinha percebido; e usar isso como uma crítica construtiva. Acho que se você não quer fazer uma obra de gaveta, deixar tudo no baú, lacradinho e pra ser queimado junto com você quando morrer, você joga no mundo e para as pessoas. Acho que isso é uma questão de ter o respeito de quem ouve e de quem ouve a crítica - acho que tudo é válido quando tá nesse momento de crítica construtiva. Acho necessário até, porque se não, ia ser uma coisa chata… Mas acho que toda obra que vai pro mundo tem isso, né. Acho que até as coisas de gaveta: você faz um negócio maravilhoso e um ano depois você vai ler e já não é mais maravilhoso, né - o que mudou? Não foi o papel na gaveta, talvez tenha sido você.
O que vocês esperam despertar em quem ouve vocês? Existe algum objetivo?
Felipe: Ah… [breve pausa] Acho que é contar história, entreter e que cada um tire o que quiser e o que conseguir. É aquele negócio do trovador: contar histórias, entreter e é a coisa mais antiga que a gente faz como espécie. Contar uma história, contar um ponto de vista, começar um diálogo e de uma maneira bem despretensiosa também.
Em "Pé no Pedal", vocês repetem carnaval - ele tá sempre muito presente - e vocês cantam: "É carnaval, mas a coisa em geral não vai bem". Na minha visão tem um ar pandêmico, mas mesmo passando aquele momento, as coisas ainda não estão bem o suficiente. Pergunto: qual é a visão de vocês?
Felipe: Ah, a gente é brasileiro, né [risos].
Sergio: Pra começo de conversa…
Felipe: Acho que o recorte de partido, as coisas não vão bem faz um tempo, mas essa música… Eu escrevi ela antes da pandemia, mas acho que ela casou muito bem, né; porque é isso, é sempre um aperto aqui, um aperto lá e, de fato, tem essa outra perspectiva do carnaval, mas acho que ela é menos explosiva, ela tem um caminho: a coisa começa no apartamento, daí vai para o prédio, vai para o bar, vai pra rua, tem essa progressão. Mas não vai bem, acho que as coisas estão melhorando um pouco, acho que depois do estrago que foi feito pós-Dilma, pós-golpe, a gente caiu num calabouço de desgovernança e acho que a coisa começa a dar sinais de vida. E independente de vida urbana e política, acho que a condição humana - a gente gosta de reclamar! Pode tá tudo bem, a gente vai querer achar um motivo pra achar problema… E que bom! Que bom que existe movimento pra gente poder perceber o que tá bom e o que tá mal.
Agora que Cinco Contos está no mundo, como vocês se sentem?
Sergio: É muito bom poder tirar da gaveta ou só da gente. Fiquei pensando aqui quando você perguntou sobre o que a gente espera das pessoas, uma coisa que eu sempre pensei é que a gente proporciona sentimentos para as pessoas - seja na letra ou na escolha dos acordes. É sempre uma sensação que você vai ter e isso é muito prazeroso, porque é super poderosa, exercer uma influência no jeito de uma pessoa sentir… É muito bom poder tirar tudo isso. A gente lançando coisa e tal, é meio a gente tirando coisas da gente também e colocando aí, para compartilhar. A gente tá sempre querendo fazer mais, parece que a gente lança um negócio e já pensa no próximo, porque é uma fome de fazer coisas sempre.
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