As confissões de Tereu
- Michele Costa

- 7 de ago.
- 18 min de leitura
Confessar nunca é simples. Exige coragem para mergulhar dentro de si, revisitar memórias e, consequentemente, compartilhar sobre sua vida. É exatamente esse gesto de exposição sensível e poética que move Música Pra Enxergar de Novo (Selo Truq, 2025), disco de estreia de Tereu. Entre o passado e o presente, o interior e a cidade, o toque humano e os algoritmos, o álbum se constrói como uma colcha de retalhos afetiva, entrelaçando traços da música brasileira e sul-americana com relatos cotidianos, memórias familiares e angústias contemporâneas.
Mais do que um trabalho de caráter confessional, o disco observa, com olhar generoso e crítico, uma geração — a dos millennials — em constante deslocamento. Tereu, nome artístico do compositor, pesquisador e multi-instrumentista Matheus Andrighi, explora as transformações emocionais e geográficas que moldaram sua trajetória. Desse movimento surgem canções que refletem vínculos formados em trânsito, o impacto das novas formas de comunicação e as camadas de memória que se sobrepõem no tempo presente. “É uma linha do tempo dos últimos trinta anos a partir de um olhar curioso”, afirma o artista.
Seguindo os passos de Belchior (e dialogando com ele em "Canto da Boa Vontade"), o músico expõe as contradições do Brasil e de si mesmo. Ao reconhecer que "o passado é uma roupa que não serve mais", ele também entende que não se pode simplesmente descartá-lo. É por meio desse enfrentamento que se constrói a própria narrativa, capaz de atravessar gerações, territórios e afetos.
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Você atua na música há mais de dez anos, mas só agora lançou o seu primeiro disco. Por que tanto tempo?
A música sempre foi meio que um pretexto na minha vida pra várias outras coisas. Eu comecei a gostar de música muito criança - em vez de ter brinquedos normais, eu tinha, sei lá, os discos do meu pai. Eu ficava muito tempo sozinho em casa, porque eles passavam muitos anos da vida nessa correria de ter que ser uma família de classe média baixa, correndo todo dia atrás do pão, com filhos pra criar. Então, eu ficava muito tempo sozinho. Eu voltava pra casa da escola sozinho e escutava os discos do meu pai e isso levou-se muito tempo até eu começar a fazer música, de fato, na minha vida - por condições financeiras mesmo. Eu não tinha como, sei lá, bancar uma aula, fazer nada do tipo… Então, fui aprender música um pouco tarde na minha vida, com 19 pra 20 anos. E aí, a partir daquele momento, eu comecei a tocar com muita gente, fazer banda, fazer projeto musical. Eu tava morando no Pará nessa época, e aí acabou que naquela época, isso foi em 2005, 2006, eu comecei a participar de um circuito que chamava Circuito Fora do Eixo [rede de coletivos culturais] com várias bandas que circulavam pelo Brasil inteiro e eu comecei na música ali, de fato. A tocar, a ser músico. Uma coisa foi puxando a outra; eu sempre fui músico de outros artistas, fazendo música e acompanhando eles ao vivo ou compondo junto com eles, mas eu nunca tinha tido a oportunidade de fazer uma coisa que fosse 100% eu, na minha vulnerabilidade - isso não diz sobre música, diz mais sobre inseguranças mesmo, de botar um negócio pra fora, pra que soasse de uma maneira 100% minha. Então, eu acho que naquele momento, o que eu tinha pra dar era muito mais um suporte pelos outros, do que condições de fazer uma coisa que eu quisesse mostrar de fato. Até porque a música sempre foi uma coisa que eu levei extremamente a sério, eu não queria fazer qualquer coisa só por colocar qualquer coisa no mundo. Eu acho que a demora em fazer uma coisa 100% solo, um projeto que tivesse o meu nome, era mais uma necessidade de, quando fosse falar algo, ser útil de alguma forma, sabe? Então, eu acho que, enquanto isso não acontecia, eu tava tentando ser útil no sentido de dar suporte para outros artistas.

Quando você fala em ser útil, está se referindo a algo que te ajuda a se expressar, dizer o que você quer, e ao mesmo tempo também tem uma função para o outro, aquele que te ouve?
Isso. Eu acho que tem mais a ver… Tem a ver comigo, claro, mas tem a ver mais como uma coisa que fosse dar pra quem fosse ouvir, além de mim, claro, algo que não fosse só uma tentativa muito individual, assim, sabe? De entrar num mercado, uma coisa tipo... Sei lá, fizesse sentido pra outras pessoas também, a partir de uma vivência que faz sentido no Brasil em 2025, por exemplo. Que não fosse só, sei lá, uma música que fala a mesma coisa que vários artistas ótimos falam, porque eles já estão ali, sabe? Já existem eles. O que eu queria fazer era uma coisa “bom, se for pra falar alguma coisa que seja útil, então que seja falada de uma forma muito particular” e que possa chegar na pessoa e talvez trazer um pouco de perguntas, assim como essas coisas que também me causam dúvidas, sabe? E depois disso, respostas. Então tem muito a ver com a questão lírica da coisa, sabe?
Isso me faz lembrar o título do álbum, porque dá diversas interpretações. Foi necessário criar músicas ou ouvi-las para enxergar algo além da realidade?
Então, Música Pra Enxergar de Novo tem um cunho muito pessoal, mas é lógico que tem muito a ver com, sei lá, com esse zeitgeist do nosso tempo, onde tudo é extremamente cinza, entendeu? Por mais paradoxal que seja, porque a gente tem condições de, sei lá, estar em patamares de todas as coisas muito mais amplos do que ontem, por exemplo, só que parece que tem um gap aí, uma entressafra da globalização, da tecnologia, da sociedade, em que, como tudo passa tão rápido, a gente ainda não conseguiu simplesmente celebrar um momento que a gente tá vivendo nas coisas boas, de tantas coisas aceleradas passando ao mesmo tempo e com uma validade super efêmera também. Então, eu sinto que sim, tem uma forma de ver as coisas diferente, igual você perguntou aí, tem uma forma de ver cores nas coisas que a gente tá vivendo agora, de enxergar a própria vida, as suas nuances de uma forma um pouco mais calma e atenta, entendeu? Esse seria meio que o significado pro outro, a partir do que eu queria contar ali. E também tem uma questão muito particular nisso, porque esse é o primeiro significado pra mim do disco, mas tem a ver com uma coisa bem particular, porque foi o fim de um momento também muito cinza da minha vida pessoal. Eu tive um problema de saúde muito grande, e eu passei um tempo me recuperando dele. Nesse mesmo momento, um pouco depois do pico da pandemia, eu tava fazendo um monte de show com alguns artistas e eu tive um problema na minha coluna que eu parei de andar, passei um tempo, alguns anos, retornando pras condições normais da vida. E aí eu lembro que quando eu tive um momento de mudança geográfica mesmo, eu me mudei, tava morando com uns amigos com os quais eu tocava junto, me mudei pra uma kitnetzinha e eu pintei todas as paredes de azul, porque eu queria voltar a enxergar as coisas de novo, depois de pandemia, tudo cinza… Eu perdi pessoas queridas, muita gente perdeu gente, eu tava começando um momento novo da minha vida... Então eu fui pensar esses dias, eu não tinha pensado nisso quando eu botei o título do álbum, era muito mais sobre o primeiro motivo no qual a gente conversou aqui, mas eu pensei "nossa, mas isso tem muito a ver com o fato de eu tá buscando enxergar coisas de novo na vida", sabe? E isso veio muito depois, isso veio semana passada, dois ou três dias antes de lançar o disco. E aí tem muito a ver com o fato de que o momento da vida, muitas vezes agora, em 2025, para o brasileiro principalmente, não tá permitindo que a gente veja muita coisa no horizonte, no sentido de humanidade mesmo… A gente tá correndo com uma batata quente na mão, a gente tá super tentando se encaixar na atualidade das coisas, com o melhor dos... A maioria das pessoas com o melhor que tem pra dar, a partir de um mundo novo, deixando um mundo super difícil pra trás, tentando se encaixar num outro mundo que também é difícil. Então tem a ver um pouco com parar, respirar e celebrar um pouco agora, vendo cor de novo num momento super simples.
Como você enxerga hoje em dia a vida? Você consegue ver cores além do azul?
Sim, eu acho que a vida tá permitindo, principalmente agora, ter um momento de parar e realmente celebrar, apesar de tudo, apesar das coisas, a gente tem muito o que olhar pra trás e perceber "nossa, a gente tá vivendo coisas que a gente talvez não teria oportunidade de viver antes." Eu tô começando... Eu acho que tem a ver um pouco com a idade também, eu tô com 34 anos agora, eu acho que pela primeira vez eu tô entendendo que eu posso ser um indivíduo no mundo a partir das coisas que foram conquistadas até então. Lógico que um monte de coisas difíceis estão atravessando o nosso momento, mas eu consigo ver muitas cores agora. E eu acho que não só isso, mas brigar por isso também, sabe? Brigar por um reconhecimento, enquanto brasileiro, de uma coisa que a gente tem lutado bastante pra se reconhecer, sabe? E talvez, não sei pras gerações de antes ou as gerações que vêm depois de mim, mas eu percebo o mundo mudando muito nos últimos 20 anos e de um jeito que existem ferramentas pra que ele seja muito melhor do que já foi, portanto mais colorido.
É muito curioso porque a nossa geração esperava uma coisa que foi prometida, diferente dos nossos pais, mas isso nunca aconteceu, né? Claro que houve mudanças, mas sempre vai ser assim, independentemente da geração, mas os meios serão outros, como é o caso das redes sociais, algo que não tínhamos tão constante em nossas vidas.
Com certeza. Eu vejo todo dia isso, as pessoas que conversam, sei lá, dessa faixa [etária], os millennials, o começo da geração Z... Tipo, cara, prometeram pra gente um mundo bem diferente. Só que se a gente vai ver... Cara, a gente é a linha de frente de uma mudança extrema, e aí quando falam que a geração milênio, as pessoas de 20 e poucos anos, 30 e 30 e poucos anos, meio que fracassaram, eu não consigo discordar mais, porque a gente não tem nenhum tipo de referência. A gente tá realmente estancando as coisas no chão e falando assim, bom, o mundo é assim, a gente vai ter que lidar com ele e vamos em frente. E a partir disso eu acho que a gente tá fazendo um mundo… Isso já foi tão mais difícil. Então tem o começo de uma música ali, que é até uma das músicas de trabalho do disco, que é a "Canto da Boa Vontade", que fala "Logo na nossa vez de saber do mundo / Como não repetir o passado no futuro / Nada pode ser tão pior do que esquecer" - como o mundo já foi e o que falar para essa nossa geração e o que não repetir, sabe? Então acho que a gente tá fazendo um bom papel.
Você acha?
Eu acho, apesar de tudo. Eu sinto que o mundo sempre funciona assim, a gente dá dois, três passos para trás, dá um para frente, aí dá dois para frente e dá dois para trás, sabe? Eu acho que as necessidades que as gerações dos nossos pais tinham e foram solucionadas, criou na gente uma, como é que eu posso dizer? Uma zona de conforto, por exemplo, essa questão das telas, por exemplo, né? Neles e na gente também, que a gente vai ter que lidar daqui um tempo com os filhos e netos. Acho que é meio geracional, sei lá, o Belchior já falava das gerações lá, 50 e todos os anos atrás, como se as gerações não se conversassem umas às outras. Mas eu acho que a gente em si, ou pode ser a bolha, não sei, a gente tá lidando com o afeto de uma maneira um pouco mais resolvida do que antes. Então, isso pra mim já é um sinal de, sei lá, coisas terem sido um pouco melhor interpretadas, talvez, apesar de todas as questões que a gente tá falando, né? Fica parecendo que eu sou muito otimista, na verdade eu sou uma pessoa...
Então, é isso que eu ia te perguntar, porque na música você cita que "a esperança
não me finga", mas você tá sendo esperançoso aqui.
É, um realista esperançoso, como diz o meu colega Jota.pê. [risos] Eu consigo ver todas as nuances do mundo e todos os problemas, mas me resta apostar na boa vontade, entendeu? [risos]
Todas essas questões estão presentes nesse disco. Você faz uma linha do tempo dos últimos anos da sua vida, também com observações. Eu acho que o ouvinte se vê também nisso, porque nos enxergamos ali. Como foi criar essa narrativa a partir de revisitações e agora poder cantá-la?
Bom, foi lidar primeiro com uma questão muito grande nessa parte da vulnerabilidade. Foi bem desafiador, é todo dia, vai ser todos os dias desafiador para mim lidar com uma questão muito confessional. Todo o cantor, todo o artista que tá cantando sobre as coisas que ele mesmo trouxe à tona, sempre tem uma questão de lidar com uma vulnerabilidade muito grande. Então, pra mim, tá sendo bem difícil, a real, o lance de aceitar que eu não tenho um personagem. É muito sobre eu mesmo, dizendo coisas que eu não sei se as pessoas vão entender. Porém, nesses três dias, quatro dias de lançamento, eu já tive um monte de retorno "nossa, realmente é muito sobre isso, né?" E eu não sei se é sobre isso. Eu tô falando coisas que são muito sobre a minha própria vida, entendeu? E que bom se isso for reverberar de uma forma identificável na vida dos outros. Foi muito difícil para mim lidar com a questão dessa parte que eu te falei: eu não me vejo criando um personagem, é muito olhar para trás mesmo. Quem é a minha geração? Quem sou eu? Quem é o Matheus? Todas as músicas que tem ali têm a ver com situações da vida real que aconteceram. Tudo bem, nem toda música é criada assim no mundo, todos os dias, existe uma técnica de criar composições com base em coisas que não são verídicas em si, mas eu fiz questão de fazer isso como um exercício até de luto pessoal, de autorreconhecimento.
Eu não sabia que isso ia ser um disco, por exemplo, eu comecei a fazer essas músicas de madrugada ali na minha casa, depois que eu me mudei e pintei as paredes e tal. Pensei "nossa, agora que eu tô conseguindo viver de novo, de boa aqui, eu vou só tentar, nas minhas horas livres, fazer coisas que eu curto, fazer música de novo, escrever coisas" e isso foi se tornando meio que um relato diário - diário não no sentido periódico, diário no sentido de ser um relato meio que confessional dos caminhos que eu tive na minha vida, eu, o Matheus, né? E quando eu percebi, aquilo ali tinha sido meio que um registro meio biográfico da coisa que dava para ser um disco. E foi bem louco, porque eu sou uma pessoa bem... Na minha vida, eu sou uma pessoa um pouco até introspectiva, eu não tenho muitos amigos. Quando eu vou trabalhar com outros artistas, eu faço meu trabalho, eu fico na minha, eu fico de boa. Então, agora, estar criando esse lugar, essa sustentação narrativa de um artista tem sido bastante desafiador, mas é a primeira vez que eu sinto que estou fazendo a coisa com... Como é que eu posso te dizer? Aquilo que está ali é 101% verdade. Então, eu não tenho medo disso, sabe? Eu tenho medo de não ser capaz de ser um bom transmissor da coisa ali. Acho que isso aí talvez é perfeccionismo, porque também é sobre isso, também é sobre romper essa ideia de ser uma questão perfeita, uma grande coisa. Tirar um pouco desse protagonismo e ser mais uma pessoa real. O que é um ensinamento desse disco para mim, sabe? Tipo, ser real, mesmo que isso seja cafona, mesmo que isso seja estranho, esquisito. Porque, talvez, Música pra Enxergar de Novo é justamente o momento em que o mundo esteja muito padronizado, acético nesse sentido, das produções, da indústria, de como o capitalismo usa isso para tornar tudo muito… [faz uma careta] E voltar a ser um pouco mais imperfeito mesmo. Tipo, agridoce, sabe? Nesse lugar de "eu vou fazer as coisas porque eu amo fazer e dane-se", entendeu? E as pessoas vão se identificar, eu tenho certeza.
E como é ser verdadeiro em um período em que somos engolidos pelas redes sociais, pela padronização que estão presentes nas redes sociais para todo mundo soar igual e não mostrar o verdadeiro?
Boa pergunta. Ótima pergunta, inclusive. Eu acho que eu não tenho uma resposta para isso. Eu acho que simplesmente o fato de fazer e me permitir a ideia do fracasso, não no sentido trágico da coisa, falar assim "eu estou indo conscientemente contra a maré do que tende a ser o economicamente viável", por exemplo. Contra a maré do que é a hype agora, por exemplo. Se o hype é ser um pouco debochado na comunicação, talvez eu seja mais sisudo, mas é por uma causa boa, uma causa verdadeira. Então, talvez essa seja a única resposta que eu posso te dar. É só fazendo e descobrindo agora mesmo, sabe? Porque eu também não sei, cara. A gente está vivendo num momento do mundo em que realmente, tipo, tudo é muito feito pra a gente estar ali dentro do algoritmo, não descobrindo as coisas por si e isso fica mais gritante dependendo do recorte em que você está, né? Mas eu acho que o simples fato de fazer e ir contra isso já é uma resposta. É a única coisa que eu sei no momento, sabe? Pegar isso que não está formatado para estar dentro do que é o hype e colocar no mundo e bancar isso, sabe? Com a ajuda de muita gente que também curte a ideia ou quem ajudou também, sabe? Fazer em várias mãos também é uma das maiores respostas a isso dentro do momento em que tudo é o chat GPT; o foco é a pergunta e a gente se acomoda com a resposta, porque a resposta é sempre fácil, sabe?
Quando você escolhe também se abrir nessas canções, falar um pouco mais de si, não é um pouco assustador pensar que o ouvinte vai te conhecer muito?
É assustador mais para mim ter que lidar com as minhas próprias questões e tal. Eu acho que não para o outro, porque eu acho que viver e estar em comunidade é justamente isso, é a gente se apresentar como a gente é, né? Artisticamente falando, lidando com a verdade de que, sei lá, o trabalho também não vai ser entendido por muita gente - e tomara que também essa muita gente exista mesmo, sabe? Tomara que ele não seja entendido por muita gente, porque pelo menos muita gente vai ter acesso, o que quer dizer que muita gente vai entender também. E essa parte é a que menos me assusta, apesar de não ser o meu nome completo que está ali, sou eu que estou ali, o meu apelido que está ali.
É o seu rosto, é você, de um jeito ou de outro, né?
Sou eu sem máscara mesmo. Talvez num próximo disco eu crie uma máscara, mas esse eu fiz questão de não ter a máscara, justamente para lidar com a questão de que "somos pessoas, somos afetados todos os dias pelas questões humanas." E é importante que as questões humanas continuem existindo acima de qualquer outra coisa, para que a gente não se torne realmente pessoas indiferentes, entendeu? Então é uma briga contra a indiferença, o fato de colocar no mundo questões que é muito mais fácil, às vezes, a gente querer esconder. O fato de me colocar com a cara limpa para a oportunidade de outras pessoas com muito privilégio da minha parte terem acesso a esse trabalho, na verdade, talvez seja o conceito de resistência que existe no álbum, sabe? Pra a gente se manter falando de coisas, de pessoas, por muito tempo ainda, se depender de mim. E não só sobre, sei lá, coisas tão mais fáceis de falar, que não precisam passar pelo confessional, sabe? E que não tenham a ver com o amor convencional das canções dos últimos dez anos, porque isso já tem um monte de gente maravilhosa fazendo e eu não vou competir com eles, sabe?
Por que é importante para você falar sobre as pessoas e com as pessoas? Aliás, você acha que é possível, em um futuro breve, mudarmos e pararmos de banalizar as coisas?
Olha, dependendo do dia que você me perguntar, eu vou dizer que sim. [risos] Dependendo do dia, vou dizer que não. Tem um comentário da Nina Simone falando sobre ser artista: "O dever de um artista, a meu ver, é refletir sobre seu próprio tempo." Eu chuto essa pedra sem a menor ideia se a gente vai se tornar um grupo de seres humanos completamente emancipados e equalizados diante de todas as questões que ainda existem em 2025 e refletem, sei lá, trezentos anos de sociedade passados, sabe? Mas o meu dever com certeza é fazer com que a gente, cada vez mais, possa minimamente visualizar isso acontecendo. Falar de presença no momento em que o reboot da globalização fez a gente se tornar indivíduos distraídos... É um dos principais papéis da música, da arte em si, falar "a gente precisa cravar uma bandeira pra não se esquecer disso aqui. É importante nunca esquecer isso aqui." Ao longo do tempo, da indústria, da arte, da humanidade, a gente cravou várias bandeiras nos movimentos - artísticos ou políticos - com brigas para a gente evoluir... A gente cravou diversas bandeiras aqui para não esquecer de chegar ali. Eu não sou uma pessoa de levantar bandeira de uma coisa, de outra coisa e de outra coisa, mas pelo menos nessa parte da música é o meu papel, enquanto artista desse tempo, tentar contribuir para que a gente possa se ver um pouco menos distraído para as questões que estão passando batidas.
Ao levantar essa bandeira é uma maneira para você não esquecer?
Sim. Isso serviu, como eu te falei, foi um diário que se tornou um disco, em que eu fazia questão de anotar todos os dias, nas brechas dos meus trabalhos, na correria de exercer um papel de cidadão social, eu fazia questão de [escrever] “eu não posso esquecer que cheguei aqui e esse ano de 2023 tá sendo difícil por isso, por isso e por isso” - o disco tem muito disso, sabe? Tem muito desse lembrar do que não repetir. Mas eu esqueço várias vezes, todo dia eu esqueço um pouco.
O disco foi registrado em casa, durante as madrugadas paulistanas. Durante esse tempo, que soa mais calma, foi necessário para auxiliar na compreensão do olhar, em enxergar de novo?
Foi o único momento que eu tava possibilitando prestar atenção nas coisas, a âncora principal da coisa, estar presente. Não porque eu não quisesse [estar presente] nos outros momentos, mas era o único momento que eu tinha, tanto que o restante do disco - não todo, porque eu fui para o estúdio várias vezes - se deu, gravando e escrevendo, dentro de casa de madrugada, porque era o único momento que eu conseguia estar presente; visualizar as coisas de uma maneira mais serena… Tem uma parada romantizada do artista que é ele criando a música dele num quartinho de madrugada e tal, mas não era porque eu queria, era o único tempo que eu tinha - não tava passando o metrô na frente do meu apartamento, sacou? [risos] Era o momento que eu tinha de acessar aquela portinha e encontrar as coisas um pouco mais quietas para que eu pudesse tirar dali e botar pra fora, no sentido pessoal e físico também, foi bem simbólico.
Essa simbologia também está presente em "Deus e o Diabo na Praça da Sé", que conta com São Paulo como personagem…
Essa música tem várias coisas que passam por São Paulo: as pessoas passeando pelo Minhocão, os moradores debaixo, as frases de esperança estampadas nas paredes dos prédios e também tem todo o movimento de isolação. Tem todo um deboche com essa questão da fé em relação a segregação, sabe?
E você leva esses pontos, os opostos, a sério na música. A gente esbarra com essas pessoas em São Paulo o tempo todo. Como você vê a relação dessas duas personas que você canta? Você acha que tendo apenas uma, que seja um lado positivo para todos, não seria melhor viver?
O que eu vou te dizer? Estar em São Paulo me faz lidar todos os dias com essa realidade bruta, né. O fato de também escolher estar ali… O que eu for fazer e contribuir que passe por um filtro de realidade todo dia para eu entender e lembrar onde eu tô - o lance da bandeira que a gente falou. Eu acho que faz parte do ser humano ter os dois lados obviamente, mas eu também acho que faz parte do ser humano esquecer muito facilmente de como tudo isso veio - esquecer das dificuldades, chegar aqui como chegamos e se acomodar de um outro lado. Pra mim, Matheus, sempre foi muito importante estar em contato com as duas coisas e não fugir delas. Eu acho muito difícil que a gente consiga lidar com as coisas de uma maneira ampla sem visualizar as duas coisas ao mesmo tempo. O que eu acho que a gente tem que brigar de fato é para que a parte ruim da coisa, os extremos do caso, seja diminuído de fato. Eu acho que a gente tem que lutar cada vez mais - e digo lutar com a [própria] ferramenta - para que o mundo seja um pouco mais mundo, mas eu acho difícil a gente ser humano, de fato, sem que as duas coisas existam. O que a gente tem que tirar é o poder do que é ruim, que insiste em tá acontecendo o tempo todo, insiste em se repetir anos e anos no Brasil - o que eu tô resumindo é consciência de classe.
Em "Como ser Mais Forte que o Medo" você compartilha seus medos, diz que tem medo do futuro e das três da manhã, além de dialogar com Belchior sobre essas questões. É interessante porque muitas pessoas têm dificuldade de falar sobre suas inseguranças e terrores. Ao cantar, após dar nome às coisas, diminui os seus medos?
Vai ser com medo mesmo. [risos] Eu tive muito medo na minha vida, me mudei muitas vezes, já recomecei muitas vezes… Eu sempre senti muito medo de tá sozinho, medo de perder, medo da solidão… Eu percebi que foi uma coisa que me pautou durante muito tempo e pauta a gente, ser humano, a gente deixa de amar, por exemplo, uma pessoa pra ideia que a gente cria para o futuro de como a pessoa vai lidar com a gente ou como teremos que lidar com o fim de alguma coisa. Acho que o medo é meio inerente, né? O meio é meio que uma coisa ligada na gente que nunca desliga e que tem um radar pra se mapear no mundo, na vida, né? Os últimos tempos trouxeram uma ideia de que eu tinha mal entendido que esse radar vai continuar ligado, os buracos vão continuar ali, eu vou continuar caindo nos buracos veio agora pouco. Eu tenho me permitido criar um sistema de afeto com a minha rede, por exemplo, para entender que o medo é uma situação inerente, não tem jeito. A gente tem que aprender, como indivíduo, a não perder de vista a oportunidade de tentar por conta de todos esses dispositivos que vem aí com a gente biológicos e culturais, né? Vamos ir com medo mesmo.




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