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  • Foto do escritorMichele Costa

Os ruídos sonoros da Cambaia

A palavra cambaia possui diversos significados: ela corresponde a cidade do distrito de Anand, no estado indiano de Guzerate; desabamento de muros e, por fim, o duo de Paraná. Formada em 2015 por Ricardo Farias e Francisco Alves, a Cambaia expressa seus sentimentos, indignações e visões do mundo com synth-pop, lo-fi e ruídos. 


Em quase uma década de existência, o projeto passou por mudanças: o duo se tornou uma banda, depois um trio, até, este ano, retornar a formação original. Durante esse tempo, a Cambaia lançou álbuns, EPs e diversos singles. Inclusive, "Bossinha", último single lançado, traz uma nova versão do duo que não tem medo de misturar diversos gêneros musicais e criar novos sons, sem perder a identidade. 


Entre músicas instrumentais, com sintetizadores, guitarras, letras e ruídos, a dupla de amigos segue firme ao retratar a insanidade do mundo contemporâneo. Em conversa via Zoom, Ricardo refletiu sobre os anos de estrada e como as canções reafirmaram a identidade sinestésica da Cambaia. 


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Vocês surgiram em 2015 e são quase dez anos de trajetória. Como é pensar nessa possibilidade de completar uma década? 

Olha, é um pouco confuso porque é bom… O tempo te traz muita coisa, né? Te traz segurança e sem contar o conhecimento, a vivência que uma banda pode proporcionar, né. Graças a música - não só a Cambaia, mas no geral - conheci muitas pessoas, conheci muitos lugares também. Só que ao mesmo tempo, você fica "pô, como sair desse nível?" porque somos muito underground. É como se fosse um jogo, como passar essa fase e chegar na próxima. Mas é uma coisa muito boa saber que tamo aí há todo esse tempo e ainda mais agora que a formação voltou a ser original, eu e o Francisco, isso tem me feito relembrar muitas coisas, da época do começo, sabe? 

Você pensou que a Cambaia ia durar tanto tempo? 

Olha, confesso que eu pensava sim, viu? Porque é assim, eu e o Francisco… Francisco é minha alma gêmea de música, sabe? Acho que nunca consegui fazer música com ninguém igual as que eu faço com ele e eu sei o quanto ele gosta da parada, sabe? Francisco teve um tempo que ele se ausentou da banda e tal por problemas internos da banda com outro integrante e eu vi o quanto o cara ficou mal, tá ligado? De ver a gente fazendo show e viajando… O cara saiu da banda e ele já voltou rapidão falando "me bota de volta aí" [risos]. Por isso que eu acreditava que ia durar, porque eu sei o quanto eu gosto de música e imagino o quanto ele gosta. 


Hoje em dia, a Cambaia, em sua formação original, é uma banda que vocês idealizaram desde o começo? 

No começo da banda, quando a gente falava em ter a banda, nós idealizamos mais integrantes… Mas música é muito difícil, é como se fosse um relacionamento, sabe? Tem aquele negócio, cada pessoa se atrai por uma coisa, mas no convívio não bate, né.. Na música a gente tem que bater os gostos musicais, de propósito também, porque dentro da música existe uma galera que toca muito bem, mas não quer levar aquilo como uma profissão, igual eu sempre idealizei e como o Francisco sempre idealizou. Meu sonho é sair do meu emprego e ir trabalhar só com música, tá ligado? Esse é o meu objetivo de vida e se eu fizer isso um dia na minha vida, por um mês ou um ano e morrer, eu vou morrer feliz. Por isso é difícil colocar outras pessoas dentro do projeto, sabe? Assim como é um relacionamento, tem as fases boas, ruins, ter que sentar e trocar ideia e ver o que tá dando certo e o que não tá. Pô, você se relacionar com uma pessoa já é difícil, imagina com uma banda de dois, três ou quatro integrantes?! Mas quando tiver show contratado, a ideia é contratar outros músicos de apoio. 


Ser músico independente é complicado, né? Vocês nunca pensaram em desistir? 

Eu nem sei o que te responder, o que é mais complicado, se é ser independente hoje ou antigamente. Acho que antigamente era mais difícil porque não era todo mundo que tinha acesso a uma gravação de qualidade, mas tinha empresário e dinheiro movimentando as rádios para tocarem suas músicas. Agora, hoje em dia, como você tem muito acesso, fica muito vago esse lance. Nunca pensei em desistir, de verdade. Tem vezes que dá raiva, outras você fica pensando o que fazer - no caso, todo dia -, mas desistir não dá porque isso faz parte do que a gente é, tá ligado? Tem um produtor que eu adoro, mas eu nunca produzi nada com ele, é o Lisciel e, uma vez na pandemia, ele fez um vídeo que ele falava sobre exatamente isso, sobre quando você é músico é o pior e a melhor coisa que pode acontecer na sua vida, porque você não consegue mais fugir disso. Ele falava: "você pode se formar em medicina, ter um bom emprego, ter uma carreira estável, mas o máximo que você vai conseguir na sua vida é ser um músico tentando ser médico". Acho que eu sou um músico tentando fazer qualquer outra coisa, mas não deixando de fazer música também. 

É literalmente a frase: você pode ir contra, mas ela sempre vai te alcançar. Não tem pra onde fugir. 

Ela te persegue, sabe? Tipo assim, a música tá em todo lugar, ainda mais aqui que a cidade não é grande. Se eu saio, vai ter algum amigo meu tocando em um bar e aí alguém vai me chamar pra fazer uma canja e tal… Acho que pra sair da música, eu teria que me mudar, eu teria que ir para um lugar em que eu fosse totalmente anônimo, que ninguém me conhecesse por isso…

Mas em algum momento, alguém vai te perguntar sobre algo relacionado a música e isso sempre vai voltar. 

É, se alguém me perguntar sobre alguma banda - e tem umas bandas muito específicas de se gostar [risos] e uma hora sempre alcança, como você falou.  


Me chama atenção que as letras conversam muito bem com a sonoridade e é uma sonoridade que mistura ruídos e diversas linguagens. Assim, somos transportados para o mundo da Cambaia. Queria saber como é ter essa liberdade pra brincar com as diversas linguagens, apresentar o trabalho de vocês e ainda fazer com que a gente sinta alguma coisa. 

Sobre a questão sonora é o resultado de muitas coisas que a gente ouve, né. Não tem como você fazer nada que você não consuma. Eu e o Francisco ouvimos de tudo, mesmo! E gostamos de muitas coisas brasileiras, de samba, de choro, de bossa nova e até coisa erudita porque a gente se formou em música e tal. O que mais me pega de som é a sonoridade da década de 80 e 90 que é o começo das machines, né. A questão do lo-fi e do ruído me pegam muito também, da textura, de fazer isso proposital e isso não me pega só no som, mas também na imagem. O clipe que eu mais gosto da Cambaia é de uma música chamada "Sobre Voltas", que o Francisco gravou com uma ex-namorada da época que é com uma VHS daquelas grandonas, sabe? Ali tem o valor do tempo, você vê os ruídos na imagem, vê você lá… Sei lá, dá um quente no coração - e eu acho que com o som é essa mesma coisa, por isso que eu gosto bastante dessas coisas lo-fi. 


"Eu tenho um carinho muito grande pela Cambaia porque, pô, foi a primeira banda que eu tive, de viver de ser músico. A gente teve uma aceitação muito grande na nossa cidade, que na verdade nem eu entendi na época. A gente começou a lançar as músicas e quando foi ver tinha uma galera que colava no show a cantava as músicas, sabe? Sempre tentamos fazer uma música diferente, atualizar as coisas e esse é o nosso principal objetivo: fazer música e alcançar as pessoas." 

Outra coisa que me chamou atenção é que dá para ver uma mudança drástica desde o primeiro lançamento até o último. Não é somente uma mudança sonora, mas também vocal, mais crítica…

Total! É exercício. Escrever e cantar você vai melhorando. E outra, você vai ouvindo outras coisas, você vê que coisas que achava legal de fazer antes, hoje em dia não é mais massa, sabe? Acho que a principal mudança ali do começo, do primeiro EP, de 2015, acho que é a questão de como a gente gravava, que a gente tava começando a aprender como gravar - a gente grava tudo em casa, sabe? Agora tem muito mais noção, principalmente o Francisco, ele manda muito! 


A Cambaia também soa como um registro de vocês mesmo, né. Desse crescimento e das diversas memórias que vocês estão criando desde 2015. 

Parece que é uma grande linha evolutiva, né. Eu acho isso muito massa, eu já parei pra pensar nisso… Muito raramente eu ouço minha banda, sabe? Tipo, sozinho e colocar num fone, sabe? Não ouço porque… Sei lá, você passa tanto tempo fazendo, gravando, erra e volta, grava e repete…Quando a música sai, você tá enjoado dela, mas as pessoas não. Tanto que quando a gente lança uma música, eu já tô pensando na outra; pra mim já era. Depois que você grava, produz e lança, tem o lance de você ensaiar essa música  - que exige tocar várias vezes - pra tocar ao vivo. Mas nos raros momentos que eu ouvi, já notei isso: eu tenho uma banda legal. Esse lance da mudança que a gente tava conversando, já percebi muito isso também. As músicas que a gente lançou esse ano, ano passado ou até no ano retrasado, eu mostro pra qualquer produtor sem ter nenhuma vergonha, sabe? Agora, as antigas, eu já falo "nessa época a gente não gravava direito". 


A Cambaia tem músicas instrumentais e também com letras. Quais são as diferenças entre as duas e como criar uma narrativa para que essas duas canções estejam em um álbum? 

Eu particularmente adoro música instrumental! Só que tem muitas pessoas - principalmente que não são músicos - que perguntam a letra. Eu gosto de escrever e de cantar também, só que tem o lance de como a música é feita, sabe? Normalmente eu escrevo e já vou escrevendo com o teclado ou o violão, fazendo harmonia, assim já vai ter uma base, pra depois passar para o sintetizador e tal. Mas, às vezes, a gente muda a ordem das coisas. Já teve vezes que o Francisco fez e mostrou um beat e [a partir disso] escrevi algo em cima. Minha cabeça é complicada, é complicado escrever em cima de algo que já foi feito, sabe? São raras as vezes que dá certo - um desses casos que deu certo foi "Eu Estou" de 2015 que não tem letra e eu gostei muito desse beat. 



“V” foi lançado em 2021 e tem um toque de pop com guitarras, o que determinou para outras músicas que vieram depois. O álbum é um projeto que reafirmou a identidade da banda, certo? 

Olha, eu amo muito esse EP, porque eu gosto muito dessa novidade. Todas as músicas gosto pra caramba! O Lucas Kid produziu, ele tava com a gente fazendo a sampler e tal e ele é bem desse ramo, ele me mostrou muita coisa de ruído, de equipamentos e de possibilidades - e já era uma coisa que eu já tava flertando na época, porque eu tava ouvindo muito Crystal Castles. Nesse EP a gente também explorou uma faixa instrumental que chama "Tomaremos" que foi eu que gravei tudo nela, e é uma música que eu gosto muito - eu tento fugir dela porque ela é muito triste, mas as pessoas pedem pra tocar - é "Passei", que é uma música só com baixo e voz. Eu lembro que ouvi um disco do Red Hot Chilli Peppers uma vez e queria fazer algo parecido com aquilo, mas uma parada minha. Acho que as pessoas gostaram porque se sentiram mais próximas e também pelo contexto da letra, porque eu lembro que no dia que eu escrevi essa música, o Samuel [outro integrante que tocava na Cambaia] após ver a música no nosso grupo, me mandou mensagem no privado perguntando se eu tava bem, porque a música foi uma coisa mais triste que eu já ouvi. Lembro que nessa época, eu tinha uma mágoa muito grande de uma ex, fugia sempre dela e, por muito tempo, não conseguia ver nada dela. Anos depois, em um backup do WhatsApp, achei uma pasta no e-mail com um monte de fotos dela e foi ali, depois de muito tempo, que consegui olhar sem ter mágoa, sabe? Passou. E foi por isso que eu escrevi “Passei”. 

Você acha que “V” deu a guinada para vocês continuarem produzindo? 

Foi uma época importante pra gente porque exploramos outras sonoridades, outras estéticas sonoras, por levar isso para o ao vivo também, de dar uma sujada… Além do mais, ouvir coisas diferentes também. Nessa época, o que me pegou bastante foi a fase shoegaze - e até hoje é uma coisa que eu amo. Foi muito legal, porque foi um aprendizado, sabe? Acho o máximo porque quando gravo EP, single nem tem tanto isso, eu tenho muita cabeça memória, sabe? Eu tenho muito essa memória com Casa Cambaia. Esse é o EP que eu mais gosto da Cambaia, porque a gente viveu muito junto. Todos os dias estávamos juntos! A gente estudava juntos, fazia faculdade juntos, almoçava juntos e quando não tinha aula de tarde, a gente tava tocando ou ouvindo música juntos, sabe? A banda deu uma unida muito grande por conta disso. 


Em “Golias” tem uma frase que me chamou atenção: “Basta acreditar, tudo será como antes”. Vocês acreditam que tudo será como antes? 

Bem, quem escreveu essa música foi o Francisco. Eu, particularmente… Nada vai ser como antes, a gente sabe disso. Algumas coisas podem ser parecidas, mas iguais não serão. 


A letra de “Macaquinho internado :/” é uma brincadeira com o meme, mas também traz o receio das redes sociais. Vocês se sentem alienados e como um macaquinho internado?

O Chico ria muito com essa figurinha no WhatsApp e aí ele falou que faria uma música com isso. E essa é a sacada: usar a própria ferramenta pra criticar a ferramenta. Olha, esse ano, eu me senti assim, só que com o tempo vem os aprendizados, né? Pra você ter uma ideia, a Cambaia é tão importante pra mim que quando teve a briga do Danilo [ex-integrante da banda] e do Chico, que eu não sabia quem ia sair e quem ia ficar, eu falei pra eles: "se resolvem aí, eu não briguei com ninguém". Aí o Chico preferiu sair e lembro que nesse dia eu não dormi, tá ligado? Não dormi de desespero porque a gente tinha show marcado e eu falei “o que a gente vai fazer?”. Depois deu tudo certo, entrou o Samuel no lugar do Chico, ficou eu, Danilo e Samuel, depois de um tempo saiu Danilo e ficou só eu e o Samuel… Só que dessa vez, eu já tava mais cascudo, sabe? Já aconteceu isso duas vezes, conseguimos seguir, fazer show… Esse ano aconteceu do Samuel sair, porque tava focado em outros trampos, e eu me senti de novo assim, sabe? Como fazer som agora? Chamei o Francisco, conversei com ele e ele falou: “vamos nós, vamos tocar, tô com gás”, mas deu uma respirada por aparelhos sim. O que mais me detona mesmo é quando eu não tô fazendo nada, sabe? Agora lançamos “Bossinha” e agora eu tô tentando compor, mas nada sai do jeito que eu quero… E tem essas fases que é normal. Mas dá um desespero, mas é saber se respeitar e entender o seu tempo. Com o Chico tá dando super certo, então, sobre a questão da formação, eu não tô respirando por aparelhos [risos]

 

“Bossinha” foi o último single lançado. Ele é diferente das canções que já foram lançadas. Como foi fazer algo diferente, mas ainda com a pegada de vocês? 

"Bossinha" foi o seguinte: estávamos em São Paulo, eu e o Samuel, produzindo "Campo Mourão". A gente tava voltando do estúdio, ficamos gravando o dia inteiro e um amigo que é produtor falou pra gente ir pra casa dele, tomar umas brejas e conversar. Falei que ia, mas pedi para deixar o computador ligado pra gente gravar alguma coisa e o cara levou a sério e o Filipe Oliveira, que escreveu a letra, é redator, e sempre ficou "se um dia eu escrever uma música, você canta?" Ele já tinha escrito “Bossinha”, acho que a gente mudou pouquíssimas coisas da letra, e lembro que o Samuel fez a harmonia no violão e eu no teclado e o cara deu REC e a gente foi gravando, foi bem espontâneo. 

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