Camaleônica: a pista de dança encontra o terreiro
- Michele Costa

- 17 de jul.
- 6 min de leitura
Iaiá — entidade da umbanda associada à proteção, ao amor e à intuição, carinhosamente conhecida como Mamãe — atravessa Eletrotropical (2025), álbum de estreia do duo Camaleônica, como um fio invisível que costura referências culturais e espirituais com intensidade e reverência. Sua presença sutil, mas poderosa, embala a narrativa vibrante do disco que mistura o tradicional e o contemporâneo da música afro-brasileira, transitando pelo samba, bossa nova, rock e hip hop.
Formado pelos amigos de infância Felipe Dantas e Fernando Reis, a Camaleônica se propõe a ser mutável, como o próprio nome indica, e encontra na espiritualidade afro-brasileira um ponto de ancoragem. Resultado de uma extensa pesquisa sonora e após vivências pessoais intensas, o disco mergulha nas raízes brasileiras sob a ótica do subúrbio, origem dos integrantes, e entrelaça essas influências com a contemporaneidade.
As letras de Eletrotropical transitam entre a delicadeza e a força explosiva, propondo reflexões importantes sobre os dilemas do mundo atual, enquanto celebram a diversidade e a riqueza da cultura brasileira. Como define Fernando Reis, "é manifesto e celebração. O Brasil que a gente viveu entre o glitter e o paraFAL".
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O início da Camaleônica
Fernando e Felipe se conheceram na Baixada Fluminense (RJ) - desde o primeiro contato se deram bem, tornando-se grandes amigos. Anos mais tarde, em Barcelona, criaram o duo Camaleônica, apresentando um discurso poético e político que resgata a beleza da simplicidade. O encontro ganhou potência com a chegada de Amanda Bortolo no final de 2023, responsável pela direção artística, performance e produtora executiva do projeto. "A partir daí, o que se vê é uma força de criação e realização.", explica Fernando.
"Uma curiosidade é que nos shows, na hora de nos apresentar a gente faz uma piada de que a Camaleônica é um duo tocando, mas só 66% da Camaleônica está no palco, os outros 66% são a Amanda, que está nos bastidores da criação junto com a gente. Na matemática não dá certo, mas a gente jura que essa conta fecha.", conclui Felipe.

Vocês são amigos de infância. A vontade de ter um projeto musical já vinha desde essa época?
Fernando: A gente se conheceu na infância, no subúrbio do subúrbio do Rio, a Baixada Fluminense, e a nossa amizade começou com a música. Quando o Felipe tinha 14 anos, ele chegou lá em casa com um violão na mão e me pediu para ensinar ele a tocar. Eu mal tinha acabado de aprender meus primeiros dois acordes, e a gente foi aprendendo juntos. Nesse momento não existia a ideia que a gente ia ter um projeto musical juntos, mas é bonito lembrar que a amizade começou com a música.
O álbum mescla urbano com ancestral. Como vocês chegaram nessa proposta e como equilibrar essas duas vertentes no disco?
Felipe: A gente se deu conta que a maioria das coisas que a gente estava compondo falava de ancestralidade, e na hora de produzir as músicas, foi só ficar atento ao que a própria música pedia, se era um silêncio, se era uma explosão… Nesse momento da produção a gente percebeu que as misturas que são comuns no hip hop poderiam ser um norte para algumas das músicas. E assim a gente foi misturando rock com samba, coco com trip hop, ijexá com drive de guitarra.
Fernando: Se tem uma coisa que é muito natural nos bairros de subúrbio, é a multiculturalidade. Como o subúrbio é habitado por gente que migrou de outros estados, esse contexto favorece um convívio de muitas formas diferentes de viver, de pensar e de ver a vida. Eu, por exemplo, sou filho de uma mineira com um alagoano; a família do Felipe é meio do Rio, meio da Bahia, e isso é uma parte fundamental na Camaleônica: brincar com as misturas e fundir fontes diversas sem perder a essência.
A ancestralidade aparece de forma potente no disco. Como foi incorporar essas raízes na estética e na sonoridade de Eletrotropical?
Felipe: Essas raízes vieram muito por conta da saudade que sentimos do Brasil. Então, o que a gente já amava, ganhou ainda mais força dentro de nós.
Fernando: Morando em Barcelona há 9 anos, e tendo contato com outras culturas e outras raízes, foi ficando ainda mais claro pra mim que a música brasileira é a coisa mais bonita que já foi inventada. Inclusive diria que o fenômeno cultural que o Brasil vive há tantas décadas, com tanta diversidade e inventividade é uma exceção nesse mundo.
Vocês sentem que existe uma certa responsabilidade em manter viva a memória ancestral por meio da música?
Felipe: Acreditamos que é importante as novas gerações sempre encararem isso como um certo dever, de lembrar que as coisas que nos tocam hoje vem de muito tempo atrás. Não pra se engessar e continuar fazendo a mesma coisa sempre, mas reverenciar e levar adiante a memória ancestral que marca nossa cultura. Aliás, boa parte da música brasileira se reinventa com referências ancestrais, mesmo as músicas mais contemporâneas, um exemplo disso é o uso de atabaques e congas no funk, com toques que trazem ritmos da matriz africana.
Camaleônica carrega uma força política e identitária. Como é usar a arte como ferramenta de expressão e resistência?
Fernando: O disco é bastante político e marca um posicionamento claro, em "Língua e Revolta", por exemplo, o personagem provoca o ouvinte com a pergunta: "quem é você pra me dizer aqui que eu não sou ninguém?", seguido por um coro onde mais vozes se juntam repetindo o mesmo verso. Existe uma força e um grito por visibilidade, além de uma referência clara à luta contra o crescimento da extrema direita em "desmontando mito, voa mané".
Felipe: O próprio fenômeno do crescimento da extrema-direita na população é algo que não tem uma explicação baseada na razão e na lógica, parece que as pessoas estão evocando sentimentos muito irracionais e profundos, e a arte é uma ferramenta que acessa essa mesma raiz profunda, então acredito que seja essencial no combate a esses discursos de ódio.
O disco é resultado de uma extensa pesquisa sonora e vivências pessoais intensas. Como elas impactaram vocês e consequentemente na construção do disco?
Fernando: A pesquisa pro disco foi a parte mais fácil, porque foi natural e construído no nosso dia a dia ao longo da vida. É um recopilatório de memórias e afetos, das coisas que a gente sempre amou. Tá tudo lá: Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, toda a cozinha do Cacique de Ramos, Racionais Mcs, Radiohead, Pearl Jam e Marcelo D2 com seu novo samba tradicional. Como se todos eles estivessem fazendo música no quintal da avó do Felipe, num domingo de churrasco e cerveja.
Em "Capoeira" o coro canta: "a vovó me deu a ginga / me deu a mandinga e muito axé pra incomodar" O que mais ela trouxe para vocês? Visto que sua imagem está no disco.
Felipe: O quintal dos meus avós, onde também moravam alguns dos meus tios, foi o centro formador do meu caráter. Acho que naquela convivência eu aprendi a importância de compartilhar, de ter jogo de cintura na vida, a diplomacia que o convívio humano exige. Mas tem outra coisa que esse quintal da avó trouxe muito fortemente pro disco: a sonoridade. Nesse quintal onde a música experimental comia solta, os experimentos vinham da precariedade: na falta de um tantan meu tio usava um balde, uma caneca de metal virava agogô e assim por diante. A gente acabou incorporando isso no nosso set de percussão.
"Geral" é um retrato sensível da luta diária de personagens marginalizados no subúrbio urbano. Porém, vocês cantam que batucam alto para o futuro ouvir. O que esperam dele?
Felipe: A música "Geral" exalta a resiliência do povo brasileiro e celebra a cultura desse povo, acreditando de verdade na força que vem daí como parte fundamental na solução dos problemas que esse povo enfrenta.
Fernando: A gente espera um futuro de menos luta, o nosso povo merece um descansinho também. Chega de matar um leão por dia, chega de trabalhar 3 vezes mais pra conseguir só metade do que seria o básico. E colher frutos melhores desse chão que a gente tanto ama.
Em um tempo de retomada das espiritualidades marginalizadas e de valorização das raízes ancestrais, a Camaleônica apresenta um disco que é, ao mesmo tempo, celebração e proteção. Eletrotropical não apenas convida à dança: convida à escuta de mundos que foram silenciados e que agora, finalmente, voltam a vibrar.




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