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Foto do escritorMichele Costa

A divina comédia de Nick Cave

Em "A Divina Comédia", Dante Alighieri narra a sua trajetória no submundo que conta com três reinos: Inferno, Purgatório e Paraíso. De um vale doloroso, passando por uma reparação (palavra empregada no sentido de consertar algo que foi quebrado) até chegar em um bem-estar (modo encontrado para conviver com a reparação). Três caminhos diferentes com dores e felicidades. De um jeito desalinhado, ou seja, sem seguir a ordem de Dante, Nick Cave fez o trajeto do escritor italiano: de seus escritos poéticos ao sucesso, desencadeando vícios em drogas que foram exorcizadas com a pureza de seus filhos. Inferno, Purgatório e Paraíso.


Para Dante, o paraíso (empregado agora em letras minúsculas, já que ele é o coadjuvante desse texto) era retratado como um "conjunto de esferas concêntricas que cercam a terra" - um lugar extremamente bonito, onde era possível viver com o grande amor de sua vida, Beatrice. Dizem que o "paraíso" (usado entre aspas para provocar o leitor) não tem uma forma concreta, ele é criado de acordo com gostos, tradições, sentimentos e ideologias. Escrevo sobre isso para ressaltar que Cave ainda não encontrou e nem possui o paraíso; pelo contrário, ele continua buscando algo (não sabemos o que é, as interpretações são livres), mas no meio do caminho, fez de suas dores e perdas uma maneira de continuar seguindo em frente.


Explico melhor: Ao lado da The Bad Seeds, Nick Cave conta, canta e recita belas histórias, com uma pontada de nostalgia (presente em todas suas obras) em "Push The Sky Away"(Bad Seed Ltd, 2013). Misturando guitarras com um coro infantil, o artista mergulha em um mar profundo que contém escuridão e seres mitológicos, como é o caso da sereia ("Mermaids") - também presente em "Ulysses" de James Joyce e "Odisseia" de Homero. Um paralelo entre o real e o imaginário.


Os sentimentos obscuros e a morte sempre rondaram (continuam rondando) o artista. Inclusive, esses temas estão em "Skeleton Tree" (2016), sucessor de "Push The Sky Away". Durante a produção do disco, o filho de 15 anos de Nick morreu após cair de um penhasco. Mesmo com as músicas já finalizadas, a perda do filho impactou a obra: Cave volta ao Inferno para lidar com a morte e o luto. A atmosfera de suas apresentações demonstraram muito bem esse sentimento. Inclusive, uma equipe de filmagem acompanhou a produção do álbum quando aconteceu a tragédia. Cave deu continuidade às filmagens, como forma de não fechar o seu mundo, de se aproximar com o bem-estar (tentativa de lidar com o vazio) - o resultado está em "One More Time With Feeling" (Andrew Dominik, 2016).


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Dante e Odisseu viajaram por muito tempo até encontrarem seus próprios paraísos. Nick continua seguindo o seu caminho, vagando em alguns momentos pelo Purgatório, afinal, demônios e pesadelos continuam com ele. "Não tenha pressa, meu amigo", sussurro para ele. A vida é assim: precisamos do nosso próprio tempo para aceitar e compreender a dor. No entanto, foi através da arte que o músico encontrou para falar (e passar) pelas fases do luto - que também não seguem uma ordem específica. Vagando pelos três reinos e nadando contra a correnteza do mar obscuro, surge "Ghosteen" (2019), o 17° registro de Nick Cave and The Bad Seeds.


O álbum reflete sobre a morte prematura do filho. Morte, perda, luto, existencialismo, otimismo, amor e fé são encontrados durante as onze músicas que são divididas em duas partes. Cave explicou que encontrou uma maneira de escrever além do trauma em sua casa, em Brighton, Inglaterra: "Tratar de todos os tipos de assunto, mas sem voltar as coisas ao tema da morte do meu filho. Tentei ir além do pessoal e chegar a um estado de contemplação: fazendo isso, as cores voltaram às coisas com uma nova intensidade, e o mundo pareceu novo, claro e brilhante". No entanto, o disco também abraça o ouvinte que tenha passado por uma perda.


Quando mergulhamos em "Ghosteen", algumas músicas caem como uma luva para as três "estações" em que o artista passou. "Galleon Ship", por exemplo, pode ser o Inferno: "If I could sail a galleon ship / Long lonely rider cross the sky / Seek out mysteries while you sleep / And treasures money cannot buy". O Purgatório soa como "Spinning Song", após a dor, uma saída será encontrada e com ela o amor intensificará - "And I love you / Peace will come / Peace will come / Peace will come in time". O formato do Paraíso de Cave começa na capa do álbum: um ambiente místico, colorido, com cavalos e fantasia - um mundo onde é possível ser o que quiser e estar ao lado de seu filho. "Bright Horses" complementa essa ideia: "And everyone is hiding and no one makes a sound / And I’m by your side and I’m holding your hand / Bright horses of wonder springing from your burning hand". Ouvindo o apito, Nick encontra-se, novamente, com o seu bebê.



"Ghosteen" é a parte final da trilogia que conta com "Skeleton Tree" e "Push The Sky Away", assim como o mundo escrito por Dante. Inferno, Purgatório e Paraíso - a vida como ela é.


Nick Cave fez de sua divina comédia em uma obra-prima que além de continuar guiando-o, auxilia e emociona quem ouve. Depois da morte, o mundo não acaba, pelo contrário, ele continua e não vai parar só por conta do vazio. Inferno, Purgatório e Paraíso. Como Nick fez, é preciso encontrar um meio para continuar, porque existe mais, sempre mais.

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