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  • Foto do escritorMichele Costa

A dançante nostalgia de Apeles

Atualizado: 13 de ago. de 2021

Água, nostalgia, velocidade, dança, demônios e ruídos - alguns signos que compõem a arte de Apeles. Semelhanças que também são encontradas na escrita de Virginia Woolf, Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar. Enquanto decupo o áudio, faço comparações baratas no caderno de anotações quase cheio: há flechas, metáforas, indagações, frases de livros, muitos rabiscos e palavras ilegíveis. Uma bagunça - tudo e nada. Ao repassar os olhos, percebo que fiz uma ligação (talvez inconscientemente) do clipe "A Alegria dos Dias Dorme no Calor dos Teus Braços" com a destruição da casa família Ramsay, criada por Woolf em um de seus livros ("o tempo altera a estrutura das pessoas e da casa").


Quinta-feira de inverno, 17h30, Zoom.

A conversa se inicia. Agradeço pela atenção e repito (muito mais para mim) que em uma hora e meia é possível abordar algumas questões e reflexões. Início com o básico: Ludovic e Quarto Negro, suas exs-bandas. Ele responde calmamente - percebo que suas palavras escorrem a mesma melancolia de suas letras. "Responde como Apeles ou Eduardo Praça?", me pergunto mentalmente - então, percebo que essa questão não faz sentido: como disse Ana Cristina: os dois andam juntos.


No decorrer da conversa, comento que suas letras me lembram "Ao Farol", livro de Virginia. Ele esboça um pequeno sorriso e diz que não é tão familiarizado com a obra literária da escritora, mas entende o que quis dizer. Suas canções contém a mesma força do rio (simbologia presente em "Rio do Tempo" (Independente, 2017), seu primeiro álbum) que transporta o barco da família Ramsay ao farol. Com o ritmo da água, reconhecemos os demônios, o passado, a escuridão, a nostalgia e os ruídos. Se Virginia escreveu: "(...) se lançaram sobre ela os demônios que frequentemente a levavam à beira das lágrimas e tornavam essa passagem da concepção à obra tão pavorosa quanto a travessia de um corredor escuro para uma criança. Era assim que frequentemente se sentia - lutando contra terríveis adversidades para manter a coragem para dizer: "Mas isso é o que vejo, isso é o que vejo", e, assim, apertar contra o peito algum miserável resquício de sua visão, que mil forças faziam tudo para lhe arrebatar. (...)", Apeles completou na canção "Crux" (música que recebe o mesmo nome de seu segundo álbum): "Eu sou o monstro que vive / dentro de uma jaula, meu bem / Fardo luxuoso e sombrio / encarcerado junto aos teus pés / Eu sou o fantasma que vive de / pequenos de sustos, meu bem / Eu sou ressaca à deriva de um mundo tão hostil / É a luta pra viver / Sonhar, morrer". Ambos são parecidos. Ambos se dialogam.


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Antes de iniciar a carreira solo, você passou por duas bandas. Essas passagens te auxiliaram na construção do Apeles?

Sim. No Ludovic, em específico, minha mãe me levava para ensaiar, sabe? Tipo, eu era tão jovem que ela quis conhecer os meninos antes para ver se eu não tava me metendo em uma roubada. E acho que o Ludovic foi a minha maior escola. Eu tinha bandas de escola antes, sempre toquei, fiz projetinhos… Então, desde os 13 eu tinha bandinhas de cover e tal e quando eu entrei no Ludovic, foi que eu entendi que eu tava indo para um lado profissional da coisa como uma carreira. Os meninos já eram um pouco mais velhos e tal, então eu aprendi infinitamente com eles um milhão de coisas e acho que… Principalmente com o Ludovic, o Quarto Negro já tinha um pouco mais de ideia, do que era meu tipo de expressão e como eu devia me comportar, mas no Ludovic [eu] era muito novo. Tudo que eu via neles era um exemplo quase paterno, sabe?! De entender como as coisas funcionavam, de como me portar como artista… O Ludovic foi uma banda que construiu uma carreira, um legado muito massa, muito respeitável, então é como se eu tivesse ido para a melhor escola que meus pais poderiam me colocar. Então, com certeza elas me moldaram como artista. Eu diria que o Ludovic [me moldou] mais como um artista no sentido de como eu quero me expressar, minhas coisas, como é o jeito que eu me porto, como criador, como compositor. O Quarto Negro foi uma coisa mais de libertação estética, de saber meus potenciais, meus limites, mas com certeza as duas me ajudaram muito


O que te levou a ir para esse ramo da música?

[breve pausa] Eu tive uma criação… Meu pai é muito ligado com música, ele não tem nenhum tipo de relação com a profissão música, mas sempre foi entusiasta de cinema e música. Então, desde cedo eu comecei a ouvir discos e ver filmes. Eu lembro do meu primeiro contato com Beatles - eu devia ter uns seis ou sete anos, sabe?! Sempre foi uma coisa… Tem um primo também que era muito ligado com música, [foi ele] que me apresentou música punk quando eu tinha onze ou doze anos. Então, eu sempre tive muito contato assim, eu acho que não foi bem uma escolha, foi um negócio que você acaba sendo arrastado de um jeito involuntário e um pouco irreversível, sabe?! Eu nunca me vi fazendo uma coisa temporária, como se fosse um hobby - foi uma coisa muito intensa na minha vida. Eu não lembro exatamente o que me fez tornar isso, sabe? Foi uma coisa que aconteceu naturalmente. Eu acho que tá enviesado em quem eu sou.


Como foi sair de duas bandas e ir para a carreira solo? Foi em algum momento doloroso? Eu imagino que você teve que se reconstruir novamente...

Eu não diria doloroso, porque eu tinha vindo de duas bandas - e banda é aquele negócio: família, convivência. Por muita sorte, eu tenho uma convivência excelente com todos os músicos das duas bandas. De alguma forma, sempre tem alguma atividade de reedição, de volta, de shows, então, é tudo muito massa. Eu não diria que foi doloroso e na época foi um momento que foi bom porque eu tava muito tendo o controle de todas as coisas, sabe? Tanto estético, quanto de produção executiva - era um momento que eu queria me testar como líder da coisa todas. Nas outras bandas, você tem o processo mais democrático. Então foi bom para entender. Hoje em dia, eu já penso tipo… Dá até saudade [de estar em uma banda] de dividir umas coisas, de processo criativo, de somar… Hoje em dia, tipo, eu já penso assim: "pô, ia ser massa fazer uma banda de novo", sabe? Vira e mexe, eu falo com uns amigos: "pô, vamos fazer uma banda de novo".

Você voltaria a ter uma banda?

Super voltaria! Mas, além de tudo, o momento que a gente vive tá difícil, mas super voltaria. Inclusive, quando o pessoal for ver [a entrevista no ar], podem me chamar para uma banda, eu tô aceitando.


Falando em bandas e shows, você já consegue imaginar a volta pós-pandemia?

Consigo. Eu acho que [terá] um boom enorme por um tempo de pessoas querendo tocar, de ir para rua, experimentar as coisas novamente. Isso provavelmente vai durar um pouco. Eu tô bem curioso para ver, porque existe um elemento nisso tudo que é a redescoberta das ondas sonoras e do corpo humano, sabe?! Tipo, de você sentir o grave, pulsação… Eu acho que esse tipo de coisas, pelo menos quem não convive com a rotina de estúdio, essas coisas que perderam, ou seja, o público geral, jornalistas e essas coisas… Vai ser uma coisa muito louca [pequeno ruído na gravação], [ver] as pessoas redescobrindo o impacto sonoro da música ao vivo. Tô torcendo para que isso não demore muito, mas acho que vai ser no momento em que todo mundo tiver em segurança, então, tudo pode mudar até lá. Mas acho que vai ser massa, principalmente em São Paulo que tava vindo de uma época tão efervescente, pelo menos essa era a impressão que eu tinha do finalzinho dos tempos normais. É claro que muita gente passou por muita coisa, dificuldade, as casas fechando, o descaso com a cultura enorme… Então, a gente vai ter que se reconstruir, mas boto fé que vai ser bem maluco. Cultura de boteco de novo, show na rua, coisas mais democráticas. Eu tô bem ansioso para isso rolar.


Você me falou uma coisa que me chamou atenção, sobre o descaso com a cultura. Então, por que você continua?

Essa pergunta... Nem faz muito sentido, porque nunca me fez questionar as coisas. Sempre foi um alimento tão grande, definido, que eu nunca cheguei a questionar se eu deveria parar ou coisa do tipo - pelo contrário, o primeiro ano da pandemia, entre altos e baixos gigantescos, de desânimo e tudo mais, acabou sendo bem produtivo. Eu sei que eu tenho uma condição privilegiada de poder ter ficado em casa, me dedicando a música e tudo mais. Então, o que eu poderia ter feito para ajudar e contribuir de alguma forma, era ter sido produtivo e eu tô bem empolgado para o disco novo. Eu acho que nunca foi uma opção desistir. Eu entendo que muita gente ficou desiludida e tem sido bem difícil. Me dói o coração ver muitos músicos ou fechando casa ou vendendo instrumentos, sabe?! Essas coisas são muito difíceis assim, mas eu boto fé que as coisas vão voltar e a cultura, a música e a arte em geral… É impossível de morrer, por mais que eles tentem não é uma coisa que não vai tão fácil. Ainda mais com a tecnologia da informação e o acesso das pessoas às coisas… Isso não me preocupa. Acho que é mais essa questão estrutural de pessoas passando necessidades é complicadíssimo. É complexo.


Falando em complexidade, suas letras também são complexas. Tem muita psicologia, fé, diversos símbolos - talvez uma tentativa de entender o ser humano. O que te levou a buscar isso e você conseguiu achar alguma resposta para as questões que você trouxe em suas músicas?

É engraçado você falar isso, porque tem muito esse estigma das minhas letras de serem, de algum jeito, muito figurativo e complexo, algumas analogias… É uma coisa que eu tenho estudado como abordar as coisas nesse próximo disco de uma maneira diferente. Eu olho elas e vejo… Realmente tem muita coisa de saúde mental. Os dois discos solos do Quarto Negro, foram períodos de muita transição pra mim, desde do que você falou, de sair das bandas, relacionamento, rumo profissional - sempre foi uma certa busca eterna de me entender e sinceramente, eu não sei se me entendi e nem sei se era esse meu propósito final. Algumas coisas faziam muito sentido e eu gosto de brincar, apesar de estar querendo mudar um pouco isso, eu gosto de brincar com a interpretação das pessoas - delas poderem ver como elas bem entendem. Eu sempre recebo mensagens do tipo: "essa música me ajudou a superar um relacionamento" e eu fico pensando: "putz, eu tava falando de outra coisa e é muito massa a sua leitura" - como a linguagem da música pode ser universal. Realmente, tem muita coisa de psicologia, coisa de fé… Eu gosto assim, sabe?! A fé de um cunho não exatamente religioso, mas como poder ímpeto do ser humano pode influenciar as coisas que você acredita e as coisas que você vai até o fundo na sua vida e que podem mudar o curso das coisas. Nem sei se me perdi na pergunta…

Fica à vontade.

Mas tem esse estigma de complexidade e psicologia e coisas que acho massas. Eu tô tentando fazer uma coisa diferente no próximo disco.

E o que é diferente? Ou você não pode dizer?

Posso, posso! É que tá muito superficial, mas eu penso em deixar uma coisa mais direta, algumas analogias mais simples. Não sei se consigo explicar isso agora. Tem uma abordagem diferente, em terceira pessoa também, é um disco, sem dúvida, que não é focado em mim. Dos meus dois últimos discos, esse é, com certeza, o menos focado nas minhas coisas e o jeito que eu vejo o mundo. Tem muita colaboração de outras pessoas e outras temáticas. Eu tô bem curioso para ver como vai sair, mas só em 2022.

Falta pouco, tá logo aí.

É. Eu já tô atrasado, na verdade.


Por conta da pandemia, as pessoas começaram a consumir mais cultura. Você não sentiu aquela pressão para criar novas coisas?

Tipo, como instrumento de salvação?

Sim.

Não, não. Eu não senti e também não acho que as pessoas consumiram tanta cultura na pandemia. A impressão que eu tenho no geral, é que as atenções estavam muito divididas e não tinham cabeça para se dedicar ao um milhão de livros - talvez no começo, mas quando a gente viu que o buraco era mais embaixo e com todos os noticiários do Brasil o tempo inteiro bombardeando com tragédia, número de mortos, governo desastroso, essas coisas todas, eu não acho que as pessoas tinham cabeça para [arte]. Deve ser por isso que as pessoas engajaram tanto com coisas do tipo Big Brother ou as Olimpíadas - as pessoas precisam de um afago, não exatamente uma cultura que a gente vê como cultura de livros e discos. Eu não senti nenhuma pressão, em divulgar… Pelo contrário, eu lancei coisas que foram muito massas e rolaram muito bem. Foram três singles: "Tudo Que Te Move", no ano passado, teve uma música com o Gustavo Bertoni esse ano e "Eu tenho Medo do Silêncio", o último single, e foi muito massa a recepção. Mas eu sentia que talvez não era o momento, eu sentia até uma certa culpa de ficar empurrando pessoas para consumir música, ao mesmo tempo que tem uma galera perdendo pai, mãe e casas, sabe?! É um momento estranho que eu acho que tá passando. Muita gente guardou os discos para o pós-pandemia, outros lançaram e a gente vê que a repercussão, tirando os artistas muito grandes, a coisa vai muito rápido e você não tem como propagar isso de uma forma física, então fica muito estranho. Mas eu não senti nenhuma pressão de pessoas que precisavam da música, até gostaria, se eu tivesse esse feedback do tipo "estamos esperando e isso tem me ajudado", acho que até teria feito mais.


Você tem um processo de criação? Ou se tinha, ele foi alterado?

Não, meu processo de criação é o mesmo. Eu produzo muito em casa, eu tenho os aparelhos mínimos para produzir e tenho facilidade com as interfaces. Produzo muito com isso. Eu mudei um pouco o processo pelas limitações físicas de não poder me reunir com a banda, eu explorei bastante a coisa de samples e colagens que é uma coisa que até me veio coincidentemente da cena de Berlim que estava frequentando. Mas o processo em si sempre foi muito disso: não tem muito a coisa de ir para o estúdio com a banda, que é outra coisa que eu quero mudar também, mas poder compor um disco em estúdio sempre foi um processo meio meu, fazer as minhas coisas em casa… Também não acho que mudou. A parte dessa limitação física, de não poder encontrar os meninos que tocam comigo e fazer essa interação musical, sabe?


Na última parte de "Ao Farol", intitulada "O Farol", a família Ramsay e Lily Briscoe retornam a antiga casa de verão que está velha, transformada com o passar do tempo que se manteve fechada, para irem ao farol; porém, vemos que não é só a casa que está mudada - eles também. Voltam ao passado sem sair do lugar. Nostalgia dos antigos momentos que não se repetirão. Assim como os personagens de Virginia, refaço o caminho para revisitar "Crux", dois anos depois de seu lançamento. Vejo, agora, dois dias depois dessa conversa, que eu precisei passar pela transformação para ouvir novamente, com um novo olhar, outro amadurecimento, o álbum do artista. Lembro novamente do clipe de Apeles, "A Alegria dos Dias Dorme no Calor dos Teus Braços", onde o artista se move pelo local abandonado de Berlim, movendo-se pelo vazio, pela nostalgia que dança dentro de si. "(...) E alguém seria obrigado a dizer-lhe: tudo aconteceu ao contrário do que você queria. São felizes assim: sou feliz assim. A vida mudou completamente. Diante disso, todo o seu ser, e mesmo sua beleza, tornou-se por um momento empoeirado e ultrapassado. (...)", escreveu Virginia. É possível dançar com a nostalgia.



E agora sim, a gente fala dos seus álbuns e das suas músicas. Seu primeiro álbum, "Rio do Tempo" é nostálgico e me parecia que você tinha diversos demônios, não sei nem se é a palavra certa, mas senti que havia uma angústia. Queria saber como foi o processo.

Putz. Foi um disco que eu gravei em Belo Horizonte, então, tinha uma coisa muito forte. Eu acho que isso eu nunca vou conseguir mudar, porque a minha música meio que evoca a coisa da nostalgia. O próximo disco eu acho que é o mais de todos [nostálgico]. Sabe a nostalgia de pertencer a um lugar…

Mas a nostalgia pode ser boa e/ou ruim, certo?

Pode, é maravilhosa. Eu acho que eu vivo pela nostalgia, sabe? Pela coisa de sentar e contar uma história para alguém e ter esse diálogo, coisa que eu amo muito. Esse disco foi gravado em Belo Horizonte, com o Leonardo [Marques, produtor do disco], eu fiquei no processo de criação quase seis meses, indo e voltando de lá e coletando histórias, foi um momento de muita transição pra mim. Foi exatamente quando o Quarto Negro acabou, então tinha aquela ressaca de saber se você tá fazendo a coisa certa ou não, foi um período que eu também acabei um relacionamento e minha vida mudou muito. Eu acho que as coisas do demônio meio que vieram desde o Quarto Negro. Talvez seja uma linguagem que eu uso pra me expor de uma maneira e tirar essas coisas de mim. A coisa da fé… Tem o livro do William Blake, "O Matrimônio Entre o Céu e o Inferno" que é quase uma bíblia pra mim - a gente sempre vive nessa dualidade de anjo e demônio e sempre foi isso. Esse disco, "Rio do Tempo" é um pouco acentuado. Eu acho que "Crux" tem umas coisas mais nostálgicas leves e acho que o próximo é o mais leve de todos, só que mais nostálgico também, tipo, "ele pertence a outro tempo, a outro espaço de tempo". Acho que é isso. Era essa a pergunta original?

Eu tenho a impressão de que suas músicas, melodias, harmonias e tal, não sei se foi feito consciente ou inconscientemente , lembra muito de Ana Cristina Cesar e me lembra muito de "Ao Farol" da Virginia Woolf, sabe?

Sei, sei. Eu não conheço a obra exatamente, mas sei qual que é.

Eu sinto essa nostalgia, essa tentativa de relembrar os momentos, como acontece agora com a pandemia - “Vou revisitar tal obra para relembrar os bons momentos”. Nunca pensei que Blake fosse uma das suas inspirações...

Ana Cristina Cesar é total. Quando eu fiz o "Crux" eu tava imerso na obra dela, tipo, deve ter até uns plágios inconscientes, porque ela e Adélia Prado eram duas [poetas] que eu tava viciado na época do "Crux". Gosto muito da obra dela, bem visceral e intensa, né.

Tem muitas coisas dela que me lembram Sylvia Plath com os poemas, inclusive os próprios poemas que Ana traduziu dela. Então, quando chegamos em "Crux", dá a impressão que você exorcizou aqueles demônios anteriores, mas ainda fazem um "zum, zum, zum"... Me chamou atenção em algumas entrevistas que você disse que deu tudo de si para esse disco. O que é "tudo de si"? É passar do limite?

Eu acho que sim, para eu viabilizar ele, do jeito que ele foi feito, foi muito difícil. Foi um período de muita incerteza profissional e financeira, sabe? De problemas com insegurança, com a minha carreira, fazendo do deus e o diabo para botar o disco de pé… Foi até um processo meio longo - acho que foi tipo um ano e meio ou dois anos que eu fiquei produzindo ele, foi um período difícil. Ser um artista solo, bancar tudo sozinho… Foi uma época que eu tava muito fechado para outras pessoas além do projeto, então eu acabei produzindo e fazendo tudo sozinho… Foi um negócio que consumiu muito, como pessoa e como artista. Acho que o sentido de "dar tudo de si" foi muito isso: um processo - até o nome "Crux" vem um pouco disso, um negócio tão centrado dentro de mim, do que eu era na essência, o que eu podia fazer… Ele acabou sendo isso. Quando eu terminei e comecei a divulgar, formar uma banda para tocar, dialogar com o público, foi um certo alívio. Ele ["Crux"] foi muito intenso na minha cabeça, desde a criação, a execução, financiamento, estratégia, divulgação… A Balaclava só entrou no fim do processo, quando eu terminei o disco e mostrei para eles, foi um negócio muito meu! Acho que faz todo sentido se eu falei ["dei tudo de mim"] na época, em alguma entrevista.

Quando você mostrou o final ao público, o limite continuava?

Acho que a gente tava… Você chegou a ir a algum show?

Não, não. Uma fase conturbada da vida, com término de relacionamento, meio difícil [risos]

Total, eu imagino. Eu acho que no show tinha uma descontraída, era uma certa celebração, uma coisa mais upbeat, não era essa coisa intensa do disco e etérea… Era uma coisa mais pra cima, mais otimista. Um show de Inferninho, não era um show de teatro e tudo mais… Acho que a coisa foi mais leve quando foi para o plano físico, que foi muito massa. A gente tava numa crescente muito boa de continuar fazendo shows, mas aí veio a pandemia… Eu já nem sei como vai ser o outro disco, outro mood, mas eu espero continuar isso. A minha intenção é continuar com os shows, com a turnê, que as pessoas se divirtam mais do que se emocionem e que seja catártico, sabe? Eu quero as pessoas sorrindo, dançando e se conhecendo e etc…

Então essa é a sua "missão"?

Eu acho que sim. Acho que a celebração da vida vai ser uma coisa muito importante, quando a gente retornar tudo e eu quero muito fazer parte desse jeito. Eu não quero que seja uma coisa pesada, maçante. Eu acho que vai ser o ambiente perfeito para a galera se perder na boemia e nas noitadas… Eu tô ansioso por isso e sentindo falta desse momento. Se eu pudesse imaginar, eu acho que seria… Um show seria um after, sabe? Não um show. Eu consigo imaginar aqueles shows - não sei se você é da minha época -, que tinha shows na Augusta as duas da manhã - eu consigo muito imaginar essa cultura de coisas de volta, de boemia intenses, a celebração da vida e perdições, acho que seria massa e eu quero fazer parte disso.

Então, a gente já pode contar com você em um futuro?

Ah, com certeza! Vou tá lá, com todo mundo vacinado e com as regras de segurança e tudo mais, eu estarei lá.



Esse ano, você lançou "Eu Tenho Medo do Silêncio", alias um ótimo título para uma música, que traz uma falsa esperança compartilhada. A pergunta inicial que eu faço para você é: você tem medo do silêncio? E o que o silêncio representa para você?

É muito louco a gente fazer essa entrevista agora, tantos meses depois, porque na época, você tem aquele discurso preparado de release, sabe? [Aquele] que você já sabe os motivos… E fazer uma entrevista agora, falar dela, é uma coisa curiosa. Em um passado não tão distante, eu acho que era muito dessa coisa que eu tava, uma certa angústia de lançar música ou não, pessoas estavam a fim de consumir isso ou não, como as coisas iam acontecer… E esse medo do silêncio era isso, do medo do meu próprio silêncio - "será que eu devo parar de lançar músicas agora e guardar isso? eu devo me dedicar a isso?". Foi massa ter feito essa reflexão na época e ter lançado essa música e foi a minha última música nessa fase pandêmica, provavelmente que eu lance, então foi um retrato curioso da época. E olhando agora em retrospecto, faz mais sentido do que na época.

E como foi fazer uma música sozinho, sem poder contar com uma pessoa ao lado? Talvez, doloroso?

Eu não sei se a solidão é a palavra certa; o que dá na verdade é uma segurança em uma intensidade maior, porque você não tem aquela outra pessoa dando uma certa validação para a sua música. Você faz o processo inteiro de produção sozinho é uma coisa muito… Que mexe com o seu ego de alguma forma, suas inseguranças, suas incertezas. Eu não diria solidão, porque eu gosto do processo solitário, eu lido bem com a solidão, no geral; mas é um processo de insegurança.


Esse ano também, você lançou, junto com Gustavo Bertoni, "Ricochet", uma bela música. Vocês se encontram e fazem a música deu esperança para "daqui a pouco vou encontrar todo mundo"?

Pois é, foi massa. Eu e o Gustavo nos conhecemos no Primavera Sound em 2016, meio por acaso, mas a gente nunca evoluiu nossos papos [até] recentemente, no começo da pandemia, a gente começou a se falar, trocar umas referências e foi uma amizade muito massa que surgiu. A gente começou a escrever música e ele mora bem perto de mim em São Paulo. A gente começou a conviver, a escrever coisas juntos e saiu "Ricochet", foi um processo bem massa de envolver mais pessoas, teve um produtor, teve mais músicos, a gente foi para o estúdio gravar. Foi de fato uma esperança - "será que isso vai voltar? e como tudo vai funcionar?". E depois eu produzi uma track dele, que saiu agora pouco, a gente tá fazendo umas surpresinhas novas também juntos. Foi bem massa, foi bem isso que você falou - um gesto de esperança, embora bem reduzido.


Agora que você tá fazendo o seu terceiro álbum, você está imerso em alguma coisa?

Putz! Tem bastante coisa. Eu não diria poeticamente, mas visualmente e esteticamente. Eu não sei se posso revelar muitas coisas, mas o disco se passa em outra época. Não é uma coisa dos tempos atuais, é um plano diferente, atemporal e quase temático. Eu tenho visitado muita coisa italiana, de disco music, de jazz… Eu acho que vai ser um disco mais de pistas e de dança, de coisas menos densas do que "Crux" e "Rio do Tempo". Eu diria, muito superficialmente, que a coisa da música italiana tá muito presente nas minhas últimas pesquisas para esse disco novo.

Por que Itália?

Eu tenho uma relação com países, papo de muito paulistano, mas minha família é de lá. Eu tenho descendência, cidadania de lá e sempre tô revisitando algumas coisas da música de lá. Eles tiveram um movimento que eles chamam de italo disco [gênero musical da euro disco] que foi muito próprio deles, muito massa, que tudo beira ao cafona, mas é cult e tinha o movimento do disco de esquerda - coisas bem diferentes do que estava acontecendo no mundo. Eu gosto muito da atmosfera de pensar um clube na Itália, nos anos 70, como era, sabe?! Muitas pessoas associam com o Estúdio 64 de Nova York e essas coisas… Na minha cabeça ficou como era um disco clube na Sardenha. Não tem um motivo muito específico, porque a Itália, que eu também comecei a estudar o idioma recentemente, acabou indo, mas nada muito específico.

Eu tive a impressão de que talvez, você queira reviver esse momento que você não viveu. Talvez também seja essa sua "missão"? Você vai atrás de outros mundos, de outros prazeres e junta aquilo que você crê e vira música?

Acho que sim. Nesse caso, nesse disco, tem bem pesado a questão da utopia - da noite perfeita, do clique perfeito, dessa paralisação de sangue por um momento na noite, quase como uma droga, não exatamente relacionado, mas quase como um coma momentâneo. Talvez os outros discos, não sei se eu pensava nisso exatamente como uma coisa atemporal, um lugar físico ou um momento, era mais um estado de espírito. Esse disco novo tem muita coisa do momento, do lugar e do flash dessa noite. Mais do que os outros discos, é [corte na gravação] um estado de espírito grande.


Além do próximo disco, a gente pode esperar outras coisas de você?

Tem algumas coisas que a gente tá fazendo. O Ludovic e o Quarto Negro fazem aniversário de disco e a gente tá pensando em algumas coisas pra não passar batido e para celebrar isso. Ainda não temos nada próximo para divulgar, mas deve rolar algumas coisas no segundo semestre.

Eu quero muito voltar com esse show solo que eu ia fazer na Europa. Eu quero fazer aqui no Brasil quando as coisas começarem a melhorar, de pequenos teatrinhos, a cafés e livrarias - eu quero começar a fazer umas coisas mais simples, não com a estrutura de banda completa e tudo mais. Eu também quero isso, mas quero muito experimentar o show solo e também tô trabalhando num filme novo.


No poema "Olmo", Sylvia Plath, em uma estrofe, escreveu: "Dentro de mim mora um grito. / De noite ele sai com suas garras, à caça / De algo para amar. / Sou torturada por essa coisa negra / Que dorme em mim; / O dia inteiro sinto seu roçar leve e macio, sua maldade" - penso que Eduardo e Apeles (o criador e a criatura) carregam esse grito, que quando sai, dança e celebra a nostalgia, seja em suas músicas, no cinema ou com outros músicos. Desse modo, o artista recarrega as energias para criar novas obras, ansioso para sentir novamente o calor do público em suas apresentações.


Ouça as músicas de Apeles em todas as plataformas de streaming de músicas.

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