Segundo o filósofo Henri Bergson, o termo elã vital designa a um desejo de criação, um impulso produtivo. Dessa maneira, todos os organismos vivos conseguem se adaptar às situações diárias a partir de sua consciência. A partir deste conceito, Reiner lança luz às expressões artísticas de sua região com guitarras e sintetizadores com distorção que se unem a outros ritmos, como carimbó, funk e congo de ouro.
O elã vital sempre esteve com Reiner, isto é, desde Filho da Nuvem, seu primeiro EP. Em Breu, lançado durante a pandemia, a força do músico e compositor cresce, fazendo com que ele mergulhe em questões pessoais e sociais. O grito de Reiner segue ecoando em "Elã" e "Cor", duas primeiras músicas lançadas, que estarão presentes em seu novo disco.
A partir de observações, questionamentos e vivências, Reiner reflete sobre o Brasil, trazendo a sua cultura. "Cor", por exemplo, aborda sua vivência como um pardo amazônida. "A palavra pardo é polêmica, mas dividir a discussão racial no Brasil em preto e branco é invisibilizar os povos indígenas, caboclos e ribeirinhos amazônidas que também são seres racializados, que têm espaços negados e são ligados a outro tipo de cultura além da cultura negra", explica.
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Sua carreira é composta por uma fusão de música tradicional e influências globais, combinando elementos da música negra brasileira. Como surgiu esse estilo? Desde o começo você sabia o que gostaria ou ele foi mudando conforme os anos?
Eu amo Beatles, amo música pop, tipo Britney Spears, mas também gosto… Eu vejo um caminho no lance de tentar experimentar e tentar encontrar o meu próprio som, saca? Tipo, de ter a minha própria personalidade - sempre foi meu sonho conseguir ter uma impressão digital, saca? Alguém escutar uma música e falar: "pô, essa música tem influência do Reiner" ou "Essa música é do Reiner". Desde o início, e eu comecei em 2015, 2016, sempre persegui isso pra caramba, saca? Meu primeiro trabalho, que é o Filho da Nuvem, é uma amálgama de coisas juntas e muita música estranha. Eu passei todos esses anos indo atrás da minha personalidade como músico, saca? Eu nunca gostei do "ah, eu quero fazer uma música igual O Terno" - eu sempre quis ir atrás do som que fosse eu! E aí, esses anos todos foram uma perseguição pra isso também. É muito doido porque, em 2021, eu lancei um trabalho chamado Breu, que foi uma parada no meio da pandemia, e que já era uma coisa que eu queria fazer há muito tempo e eu não tinha grana… Conseguir gravar esse EP foi um divisor de águas pra mim, sabe? Porque antes, teve um momento ali em 2018 ou 2019, que eu quis, tipo, fazer um som pra me encaixar em um determinado nicho, essa onda que é o indie rock e tal; e aqui na minha cidade, do Brasil inteiro, por incrível que pareça, o indie rock é uma ironia, né? O indie é dominado por pessoas brancas, pessoas de classe média alta e eu ficava meio "eu tô fazendo tudo o que é necessário para estar em tal festival e tocando em alguns lugares que as pessoas brancas estão ocupando". Eu não tinha esse discernimento racial, esse letramento racial sobre o assunto. O Breu vem no rolê da descoberta de ser negro, saca? Nessa descoberta que eu sou daqui de Belém do Pará, uma cidade que respira cultura e música - por onde tu vai, tá rolando música de todos os tipos. Então, eu acho que tava na hora de eu me olhar no espelho e ver o que eu sou, saca? Tipo, eu tenho olho claro, mas também eu tenho nariz de preto, meu cabelo, minha boca… Então, é [sobre] entender ali… Eu sempre senti que eu era muito branco para estar no meio dos pretos e muito preto para estar no meio dos brancos, saca? Então, eu comecei a tentar entender o que eu era no meio de cada espaço. Breu nasce disso, dessa descoberta racial, de tentar tirar todo o ódio que eu também tava sentindo sobre o governo Bolsonaro em 2021.
Esse EP é um marco pra mim porque a partir do momento que eu comecei a fazer isso, parecia que eu era uma criança, saca? Que tava com violão assim [grita na conversa], gritando, e aí, uma hora eu fiz alguma coisa legal e as pessoas olharam, tipo, “ele não tá só gritando”, sabe? Depois de Breu eu toquei nos três principais festivais daqui de música independente, meu trabalho saiu na Rolling Stone, eu peguei playlist oficial do Spotify - eu consegui coisas que eu sempre quis, fazendo o som que eu sempre quis fazer. Eu já tava estudando há muito também esse negócio do trip hop, de música preta brasileira e tal… O Elã, esse disco novo, segue nessa linha, ele é como se fosse primo do Breu. Eu vejo uma evolução do trabalho, eu me considero hoje em dia uma pessoa muito mais madura pra falar sobre determinados assuntos e eu percebi também que a minha música é muito propícia também para abordar todo tipo de assunto, de amor até política; eu tô imprimindo o que eu sou, entendeu? Eu tendo a falar sobre política porque tem tudo a ver com a minha personalidade, do jeito que eu sou e acho que o meu trabalho não seria assim se eu morasse em outro lugar do Brasil, até do mundo, eu acho com certeza o meu trabalho seria completamente diferente, porque a minha cidade tem coisas que não tem como explicar, saca? Tipo, só vindo aqui pra sacar, sabe? [risos]
Filho da Nuvem é um disco mais “relax”, enquanto Breu é uma porrada, um disco político. “Elã” e “Cor”, singles lançados, seguem a questão política que é uma característica sua. Eu queria saber como foi esse momento em sair do “normal” para dar esse pulo. Como você se sentiu ao fazer essa mudança? Como você se sentiu ao descobrir que você era e o que você queria comunicar ao outro?
O Breu nasce do rolê da pesquisa sobre trip hop e teve um lance de que, na época, eu sou formado em engenharia elétrica, e fui, em 2019, trabalhar na Vale e fiquei trabalhando na Vale durante um bom tempo…
Nossa!
E foi um negócio absurdo! Na realidade, o primeiro ano do governo Bolsonaro foi muito, muito bizarro… O que eu experienciei lá… Eu sempre fui de esquerda, sempre me considerei um marxista, comunista radical e tal, só que eu não podia deixar aquela oportunidade e foi pior do que eu imaginava. [risos] Eu vi o que é ser um proletário, igual que Marx escreveu, tá ligado? Acordar às cinco da manhã e voltar às seis da tarde pra casa, não conseguir fazer mais nada. Eu consegui compreender várias coisas: porque a linha de frente - a galera que faz o trabalho braçal -, a maioria deles, são alcoólatras… Foi um negócio de enfrentamento em relação à realidade que eu vivia numa bolha esquerdista de Belém para o proletariado de Parauapebas, que é tipo o Texas do Pará. Foi um absurdo! Então, a partir desse momento, eu comecei a querer fazer um trabalho sobre política, sem metáforas e direto ao ponto.
Comecei a construir a ideia do disco, que era essa onda de misturar trip hop com gêneros daqui de Belém, gêneros de música preta e brasileira. A mentalidade de que eu tinha na cabeça era: “ninguém me ouve mesmo, foda-se. Eu vou fazer isso porque eu quero fazer mesmo.” No estúdio, eu e o Chermont [Léo, produtor do disco] - inclusive, eu conheci o Chermont nesse processo de produção do Breu. Foi muito doido porque eu nunca tinha trabalhado com ele, a gente já tinha se visto por aí na noite e tal, só que eu nunca tinha parado pra tocar com ele e, tipo assim, parecia que a gente se conhecia há muito tempo, foi um negócio muito bizarro. Ele entendeu tudo que eu queria e falou “vamos nessa, vamos cair pra cima nesse trabalho” e a gente foi. A gente não esperava nada, a gente só tava afim de fazer música mesmo, da melhor forma possível. Tipo, assim, tem tudo a ver com também com isso que eu te falei anteriormente, que é essa coisa de me descobrir uma pessoa negra e tal. Uma pessoa, na verdade, que tem traços de pessoas brancas, mas também tem traços de pessoas negras e tal e tentar mesclar esses dois mundos. Eu vejo que o meu som é muito isso, assim, eu tentando encontrar um caminho do meio ali entre o preto e o branco, assim, e tentar, tipo assim, saca? Tipo, fazer uma costura ali, sei lá, meio torta das coisas, saca?
É interessante você falar isso, ainda bem que o Twitter acabou, porque eu lembro que houve uma discussão ali entre pessoas sobre definir o que são as outras pessoas. Eu lembro que tava tendo uma discussão sobre o D2, sobre ser negro ou branco. E isso é uma violência muito grande, porque uma pessoa que nunca te viu vai determinar o que você é?! Ao se descobrir e ver o dia a dia do proletariado, como foi para você escrever, gravar e cantar as músicas de Breu? O ódio diminuiu?
Não, acho que a raiva só aumentou, saca? [risos] É muito doido isso, porque toda vez que eu canto - eu tenho uma relação muito íntima com as músicas, saca? Tipo, toda vez que eu canto, eu lembro do que eu tava passando quando escrevi tal coisa. E Breu é uma situação muito engraçada: a música “Breu”, eu tava fazendo no meio da pandemia, em um rolê de compor junto com o público do Instagram, [a partir de] umas lives. E eu começava a fazer do jeito que eu faço música, assim, começava a fazer as coisas e tal, beats e produzir, tentando compor e tal. E aí, tipo assim, duas pessoas entraram e no final das lives eu disponibilizava as coisas que eu tinha feito e propunha. “Olha, se vocês quiserem botar voz, fazer alguma coisa por cima, podem fazer e tal.” E aí duas pessoas compuseram “Breu” junto comigo nesse rolê, saca? “Breu” é um sentimento de três pessoas e tal, saca? Tipo, teve muita coisa ali envolvida. E aí, toda vez que eu toco, eu lembro desse tipo de coisa, sabe? Tudo isso passa na minha cabeça… “Porra, eu escrevi essa música com com duas pessoas e tal”. Tipo assim, no momento da pandemia, sempre vem todas essas coisas assim, sabe? Então, isso sempre vai alimentando, a minha raiva, a minha felicidade, assim... Já viu aquele filme Efeito Borboleta? É como se eu estivesse lendo o diário e fosse teletransportado ali para o... É uma porta aberta para aquele momento ali que eu estava passando. E eu sempre volto, saca? E Elã, vem muito também desse ódio, assim, saca? Tipo, o disco vem muito calcado nesse ódio, mas é um ódio direcionado para outro... Tipo assim, o Breu, eu acho que ele é muito direcionado ali para o fascismo, na figura do Bolsonaro e tal, meio que também é uma incompreensão ali do Brasil que a gente estava vivendo, em 2021, né. Por que as pessoas escolheram um cara fascista e notoriamente racista, homofóbico, para estar no maior lado da política do país? Agora o ódio, foi meio que condensado para outro [lado]... Para um sistema, que eu acho que é muito maior do que Bolsonaro, muito maior que a esquerda, muito maior que direita. Eu vejo que a gente, que é daqui, a gente é muito visto ainda como se a gente estivesse num zoológico, assim, saca? Tipo, a música que a gente faz aqui, nosso jeito de viver, saca? O que a gente come e tal, ainda é muito esse rolê, saca? Isso não é culpa dos sudestinos, é culpa de um sistema que sempre, desde o início, desde que o Brasil é Brasil, o Brasil olha para a Amazônia com os piores olhos possíveis, sabe? É uma coisa que a gente pensou muito [quando estávamos] fazendo o disco, era trazer as coisas nossas… Acho que no Breu tem muita música preta e tal e aqui tem muita música nossa, indígena, carimbó, coisas que só achamos aqui… Eu parto do princípio que quanto mais a gente bota os pés na terra, mais alto a gente consegue olhar para infinitos lugares, tá ligado? A gente consegue chegar em diversos lugares. O ódio me alimentou de outra forma e também Elã, o disco, é muito doido, porque esse ódio mesmo que ele me deixa com raiva, ele também me deixa triste. “Cor” é uma música que fala muito sobre isso, do quanto eu me sinto vulnerável por ter a cor que eu tenho… Hoje em dia tem muito essa discussão sobre pardo, quem é negro e quem não é… Então, só eu que tô aqui sei o que é isso, sabe? É muito doido essas discussões, porque elas são muito recentes - e eu já tava escrevendo essas músicas há um tempo, sei lá, há três anos, desde que terminei Breu - tá tudo pipocando de uma forma absurda. A revista Cult fez aquele dossiê dos pardos e é muito doido ver as pessoas - trago isso no disco - discutindo isso, não é pauta de twitter, mas do mundo real.
"Acho que a única coisa que me alimenta a fazer música mesmo é o ódio. Eu costumo falar que eu odeio música porque a música me afastou da minha família, afasta da minha esposa, é como se fosse uma maldição: todas as vezes que eu tentei me livrar dessa porra, ela foi atrás de mim e falou "não, tu não vai". E é aí que tá: ódio também é amor - é a força oposta. Acho que o ódio, na verdade, é meu catalisador total pra conseguir fazer as coisas, sabe?"
Breu e Elã traz todas as suas questões. Você acha que em um futuro a sociedade vai melhorar?
Não, acho que não. É muito doido tu ter me perguntado isso porque veio uma reflexão muito engraçada na minha cabeça: o Elã, eu pensei no conceito do disco muito antes de fazer as músicas. Na época que eu pensei no conceito - peguei o elã do Henri Bergson - que fala sobre o impulso, uma força que rege a sociedade e eu pensei muito no tambor, saca? O tambor é essa força que nos conecta com o ancestral… Quando a gente foi fazer a parte visual, a gente pensou o Elã como se fosse algo extraterrestre, saca? Algo fora da realidade. Tu me perguntando isso eu vejo que se essa força realmente existisse as coisas estariam muito mais diferentes agora, saca? A gente tá passando agora por queimada, Manaus só tá fumaça… Não vejo esperança no futuro. Eu sou artista e tal, e tenho essa licença poética em falar sobre o que eu queira para o mundo, mas acho que nada vai mudar o nosso destino. Apesar de Elã achar que as coisas não vão mudar, acho que é um grito necessário pra gente conseguir entender o que tá rolando.
É curioso falarmos sobre este tema, porque no seu primeiro disco, tem a música “Tudo que quiseres”, onde você canta: “me diz o que eu faço para viver”. Você cantou isso em 2016 e agora estamos em 2024 - e seguimos procurando jeitos para continuar vivendo. Mesmo você não vendo esperança, você encontrou uma maneira para viver?
É difícil. No Breu eu também falo que eu quero viver, mas é muito difícil. Quanto mais o tempo passa… Acho que a luta contra o capital - falando das coisas daqui -, uma coisa que eu não posso ignorar é que eu sou de Belém do Pará; conhecer a minha cidade, conhecer a história do meu povo, saber de onde vim, é a melhor forma de combater o capital. Botar um tambor daqui em uma música é uma forma de combater o capital, de fazer com que o nosso som, o som daqui, seja ouvido, saca? Ela fala muito mais [sobre] qualquer coisa que eu falar aqui, sabe? É muito difícil acreditar em algo hoje em dia.
Tenho a impressão de que você vai além da necessidade de saber da sua história, você também quer contar a história do Brasil para o ouvinte. No final das contas, qual é o seu objetivo?
Acho que tem de tudo um pouco, saca? Muitos discos me inspiraram a fazer esse disco, como o Roots do Sepultura, Da Lama ao Caos do Chico Science e Nação Zumbi, Zulusa de Patrícia Bastos - ela até participou do disco. Basicamente, esses discos são muito iguais no sentido de “vamos olhar para o que é nosso”, mas o que é nosso também é universal. A mensagem é bem universal. Parto do princípio de se eu estou sentindo essa coisa tão intensa, outras pessoas também vão sentir, saca? Eu quero mesmo instigar as pessoas, mas ao mesmo tempo, quero que as pessoas me conheçam, quero me apresentar para as pessoas - esse sou, é o Reiner e ele fala sobre a Amazônia e tudo isso, mas ele não fala da forma que você quer escutar. Vejo que esse trabalho é muito para incomodar, sabe? Não tô afim de agradar ninguém.
O que podemos esperar de Elã?
Elã é uma viagem: o disco é baseado na minha cultura, mas ele também fala muito sobre questões que são universais. A sonoridade do disco vem muito carregada e está dividida em lado A e lado B, onde um é lado terra e o outro é água - o lado terra vem cheio de guitarra distorcida e ódio - “Elã” faz parte desse lado A -, enquanto “Cor” vai para o lado água. São duas canções que são chave desses lados. Um [lado] é mais sensível, outro é mais rock’n’roll e o disco vem para exaltar as coisas daqui. A minha intenção, se a gente for pensar em mercado ou alguma coisa assim, é fincar uma bandeira para dizer “eu sou daqui”. O disco vem cheio de questões políticas, políticas amazônicas, mas são discussões universais.
"Essa cidade tem um negócio muito mágico: a gente tem contato com o passado o tempo todo. A gente vive em um portal. Pisamos nos mesmos lugares que meu avô e o avô do meu avô passaram. A Amazônia tem um lance de encantaria, o rio e a mata te abraçam. Acho que é fundamental a gente falar sobre isso, o que eu sinto por Belém, pela minha cidade, é uma paixão - e cada vez que o tempo passa, fico cada vez mais encantado por essa cidade."
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