Conheci DA CRUZ no ano passado, quando ainda havia aquela incógnita sobre o futuro do país, isto é, o fascista ainda estaria no poder? O último disco, "Baladas da Luta" (2022), aborda os problemas raciais, sociais e políticos do Brasil, fazendo com que o ouvinte reflita sobre os temas e seja politizado pela banda.
"O mundo já não comporta essa divisão de classes", me conta Mariana Da Cruz, cantora paulista que está radicada na Suíça há mais de uma década. Mesmo longe de sua pátria, Mariana não esquece suas raízes e nem o idioma - que inclusive é utilizado em suas músicas. "Nos meus shows, a maioria [do público] são os suíços, europeus e ingleses, eles falam: "mas a gente não entende o teu português". Espere! Quando eu começo [o show], eu já vou falando o que eu vou cantar, aí explico o que é a liberdade, já politizando. "Agora, vocês vão cantar comigo pelo menos o refrão que é lindo e vocês vão conseguir" - já trago eles para participar também, mas já dizendo, mesmo cantando em português, em inglês, o que significa a canção. Aí eles vêm pra perto porque se identificam", complementa.
Com mais de cinco discos e uma bagagem musical grande, DA CRUZ não se rotula apenas um gênero musical, pelo contrário, incorpora diversos sons, como o samba, MPB, afro-beat, blues, soul e tantos outros; pois, no final, "quero lembrar que estamos vivos", me explica quando pergunto sobre os ritmos utilizados no álbum.
"Gostava muito de ouvir MPB, gostava muito de ouvir Elis Regina, Elza Soares, que era a minha paixão. Cartola era a paixão do meu pai. Então, eram coisas assim. E o samba, é claro. Aquele samba raiz bom, a gente ouvia muito em casa e falava sobre a história, a resistência. Então, automaticamente foi nascendo dentro de mim essa coisa de fazer a música, mas também levar uma mensagem para as pessoas, tipo, politicamente, sabe? Levar essa mensagem, abrir a cabeça, abrir um pouco os olhos das pessoas. Então isso para mim foi me engajando nesse mundo, nesse caminho. E eu acho que é um caminho que atua até hoje. Então as músicas que eu falo, que a gente faz, as nossas músicas DA CRUZ, é bem política, é uma mensagem para ficar, para poder pensar, para poder discutir."
Me chamou muita atenção que no release você não consegue classificar o seu trabalho. Pegando o seu primeiro álbum e até o último você passou por muitas camadas de gêneros musicais, né? E no final, você quer fazer tudo, você não tem medo também de se arriscar, certo? Não tenho. É verdade. Mas sabe por quê também? Porque como eu moro fora, então essas influências, eu não fico tão apegada só ao Brasil. Claro, eu vejo muito pra dentro do Brasil. Mas aqui fora eu tenho essa influência ao meu redor, que é o jazz. Eu moro na Suíça e na Suíça tem um festival que é jazz, é festival de Montreux, que é fantástico, trabalhei lá e já toquei lá também. Então há muitas influências, né? Então essa influência é bacana. Eu acho muito bacana você abranger, conhecer e participar disso. Porque o meu processo, quando eu saí do Brasil, também, porque eu sou uma afrodescendente, então essa minha história de saber sobre os meus ancestrais foi apagada, né? Então é difícil para você saber de onde você é, quem eram os meus avós, os meus bisavós. Então eu acho que quando eu saí do Brasil também, quando eu fui para Portugal, eu fui em busca de uma identidade. Porque lá é uma terra onde... Eu saí em 99 e não tinha muito brasileiro, então eu deixei um pouco a nossa comunidade brasileira pra tentar entender aquele povo todo que tava ali, que era da ex colônia de Portugal. Foi muito bacana que eu pude conhecer um pouquinho de cada gênero. É a música de Angola, é a música de Cabo Verde. E os meninos assim, do gueto mesmo, sabe? Aqueles meninos que tinham ideias maravilhosas. Como a favela do Brasil, e aqueles meninos que viviam no gueto, na parte mais afastada de Lisboa, faziam um som fantástico, com sons, uma batida que eu falei "Meu Deus, que maravilha é essa?" Era o desfile dos imigrantes que lá moravam. Eu ficava fascinada com tudo aquilo. Então, isso foi me absorvendo, eu fui conhecendo, fui conversando timidamente com eles também, tipo assim, humildemente entrando na comunidade deles, para tentar entender um pouco mais de gênero musical, que é fantástico. E aí eu me descobri, quando eu estava em Lisboa, conheci o produtor que é o Ane Hebeisen, ele tinha uma banda que era a Swamp Terrorist, que era uma banda de rock, que fez muito sucesso aí no Brasil e no mundo, ele tocou horrores assim pelo mundo, e ele vinha do eletrônico. E eu, quando a gente se conheceu, eu cantava no Irish Pub em Lisboa. Então, você imagina, uma brasileira cantando em um Irish Pub. A gente começou numa quarta-feira bem morninha, tocando bossa nova, mpb, levando o bom da música, sabe? Depois eles gostaram tanto que fomos fazer isso numa sexta-feira, em um Irish Pub! Foi aí que eu descobri… A gente se conheceu lá, em Lisboa, a gente começou a conversar no momento e a fazer um experimento do primeiro cd: música brasileira com eletrônico; e eu fazendo as letras. Foi tudo um experimento que a gente foi amadurecendo, juntando também os estilos - tanto que a batida que você ouve na minha música, acho difícil eu me classificar porque é muita coisa bacana que eu ouvi, absorvi e que eu gosto de fazer.
Como é viver em outro país, mas ser brasileira, e viver longe do seu país?
Ser brasileira é comer feijão e arroz dentro de casa. Mas também é necessário estar em outro país e aprender sua cultura - que é o que eu fiz. Quando eu resolvi sair do Brasil, não era para enriquecer, ir atrás de dinheiro ou material, eu queria aprender. Viver fora faz com que você amadureça muito rápido.
Me chama atenção a questão da ancestralidade em suas músicas. Agora que você sabe quem é, já que saiu do Brasil e foi para outros lugares, quem você pretende ser futuramente? Complicado essa pergunta, né? Depois da pandemia, o plano é pra já. O que eu quero ser e o que eu gosto de fazer… Gosto muito de estar no palco, tocar com músicos diferentes, ter convidados que tocam comigo - gosto dessa operação. Mas também gosto muito de levar essa mensagem de um Brasil progressivo, um Brasil que quer respirar, um Brasil que pode ter outras coisas. A minha onda é descobrir uma coisa nova, sabe? A gente tentar, juntos, fazer uma coisa nova. Eu gosto de construir pontes: bandas do Brasil vem pra cá, a gente ajuda a colocar nos clubes legais, dar a visibilidade; e quando a gente vai ao Brasil… É uma troca.
Em 2008, você lançou o seu primeiro álbum. São quinze anos realmente no mercado musical, mas tantos outros anos cantando. O que mudou de lá pra cá? Acho que o que mudou, é que o DA CRUZ, eu me vejo como uma colisão. A colisão é que eu não comecei sozinha no trabalho, eu sou a cantora, aquela que dá a voz, a mulher que tá ali na frente, mas atrás de mim, junto comigo, tem o produtor, tem o guitarrista e um baterista, e somos uma colisão. A gente já tá junto há quinze ou dezesseis anos, então, a gente tá amadurecendo. Começamos como uma banda experimental e depois fomos amadurecendo o som mesmo. Então, acho que o que foi mudando… Passei pelo experimental e a gente vai amadurecendo um pouquinho mais. A gente vai analisando as histórias - de onde venho, o que quero colocar na música e o que quero passar para o público de agora. Pode até ter sido um erro, mas foi o que eu vivi, mas eu fiz muita coisa do que canalizar só para um estilo só. O barulho DA CRUZ é o mesmo, mas fomos mastigando as histórias, a alegria é a mesma… Essa ânsia de viver, de trazer alegria e essa energia que eles me passam, pego e levo pra casa. Então, essa troca é muito boa.
No final, esse é objetivo de vocês: passar uma alegria, mas também politizar o público? Exatamente. Eu gosto dessa provocação, saber o que você pensa, o que você espera, mesmo eu estando longe do meu país. É uma forma de eu contribuir para o meu país, sabe?
Qual é o papel do artista? Como dizia o poeta: "o artista vai, onde o povo está". Acho que a música por si só já é uma comunicação muito direta: quando você ouve aquela música, ela marca a tua vida. Acho que hoje, o artista tá escrevendo sobre o que tá sentindo hoje, o nosso olhar para o mundo. Acho que a gente tem que fazer as pessoas pensarem mais. Eu tento colocar [nas minhas músicas] essa coisa dançante, mas ao dançarem, pensam na letra politicamente para acordar.
"Baladas da Luta" é um álbum potente, do início ao fim. Mariana é realista, mas também esperançosa: acredita e torce por um Brasil melhor (e desde o resultado das eleições para presidente em novembro, muitas coisas começaram a melhorar). O poder existe e com ele, um novo mundo surgirá.
"Então, pra mim, eu tinha que abrir uma janela, uma porta pra poder falar, mostrar para o mundo que nós brasileiros somos. Temos muita gente boa lá dentro, progressista, que quer fazer coisas e que fazem coisas, transformam coisas. Então, acho que pra mim foi um caminho escolhido para esse caminho mesmo, pra ela. Não ficar apegada muito ao clichê, sabe? Tipo, o clichê de ser brasileira, de tocar só o que [existe] o Brasil, o que eles conhecem. Então eu resolvi fazer um outro caminho, que é o caminho de formiguinha, que eu tenho paciência, que vai sempre se descobrindo."
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