Cada um carrega um rio dentro de si. Ele transcorre a vida, fazendo com que a água nunca cesse. Em Segunda Navegação, Chico Torres interpreta poemas escritos por poetas alagoanos, fazendo com que o seu próprio rio o leve para diversas direções, sem o deixar afundar. Já dizia Riobaldo em Grande Sertão Veredas: "O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia."
O nome do trabalho é uma explicação sucinta e muito eficaz sobre a proposta que o próprio disco carrega consigo: "na Filosofia o termo 'segunda navegação' explica aquela vida que há além da vida cotidiana. A primeira navegação você bota o barco para se movimentar, é o dia a dia que a gente faz acontecer. Já a 'segunda navegação' traz esse lado da vida enquanto possibilidade da reflexão, do pensamento, do que é mais subjetivo”, emenda Chico, que também é filósofo formado. "De alguma forma penso que o disco é uma 'segunda navegação' desses poemas. Que nasceram no papel, como poemas, para serem lidos. E agora ganham um novo campo de expansão, que são as melodias, as canções em si", ele conclui.
O processo de feitura de Segunda Navegação remonta o período pandêmico, onde Chico fez algumas colaborações à distância. "Vi um primeiro poema e tive o ímpeto de musicá-lo. Fiz isso com uns dois poemas e comecei a propor aquelas gravações em 'modo pandemia': tela dividida, trocas de ideias e tudo mais… Fui compondo, mas sem pretensão de ser um disco", ele relembra.
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São 10 poemas por dez timbres femininos diferentes. Como foi feita a escolha dos poemas e das intérpretes?
No começo foi tudo muito espontâneo. A ideia de musicar poemas e chamar convidados para cantar surgiu no início da pandemia, momento em que, particularmente, o enclausuramento me trouxe um grande ímpeto criativo. Achei que musicar poemas alagoanos seria um desafio interessante, poemas que viessem dos meus amigos “da literatura”, de pessoas que estavam criando naquele momento tão difícil. No meio do processo, resolvi produzir alguns vídeos e fazer convites para que intérpretes cantassem essas músicas. A princípio, eu apenas postava os vídeos naquele formato de tela dividida, tão comum na pandemia, mas ao longo do processo entendi que nascia um projeto maior ali. Continuei musicando poemas alagoanos e, em 2021, com a oportunidade de gravar um disco, firmei as parcerias anteriores e fiz novos convites para outras intérpretes. Acho que procurei fazer um contraste entre a unidade dos poemas alagoanos e a pluralidade de vozes de vários timbres e sotaques, com intérpretes de várias regiões do país.
A vontade de musicar poemas surgiu em 2020, durante a pandemia. A sua visão arte foi alterada durante os anos de isolamento?
Não exatamente minha visão artística, mas com certeza alterou o meu modo de me ver como artista. Na verdade, pouco antes da pandemia eu havia decidido me firmar como compositor, já que há muitos anos eu vinha guardando na gaveta inúmeras canções. Então, durante o período de isolamento, esse processo continuou e eu passei a produzir mais. Com a chegada dos editais emergenciais da cultura, eu pude concretizar com mais tranquilidade meus projetos musicais.
A segunda navegação é aquela que mostra que existe vida além do cotidiano. Em sua visão, existe um motivo que explique o nosso “esquecimento”, visto que estamos sempre preocupados e apressados?
As razões são muito complexas, mas acho que a questão mais flagrante é o modo como estamos usando a tecnologia. Um uso excessivamente escapista e, ao mesmo tempo, um lugar que serve para construir uma autoimagem que precisa ser renovada constantemente. Tudo isso acaba sendo reflexo dessa preocupação e aceleração da nossa vida cotidiana, já que o próprio cotidiano também vem sendo mediado pela velocidade das redes e pela pulverização das relações. A segunda navegação é uma forma de encontrar um outro caminho, de navegar por águas pouco exploradas e que proporcionem essa desaceleração em detrimento a esse desejo de mudança constante.
Segunda Navegação leva para outra direção, mas sem uma estrada específica. Para onde você acha que os ouvintes irão?
A segunda navegação possui um percurso impreciso porque o disco se sustenta na poesia. A poesia não tem o desejo de comunicar, como geralmente as letras de música fazem. Eu entendi que estava trabalhando com imagens oníricas e com obras abertas, capazes de serem interpretadas de múltiplas formas. Meu desejo é que o ouvinte se perca um pouco, que se deixe levar pelo simples prazer de vagar, ou que se detenha nas músicas como quem olha para uma paisagem.
O violão é a alma do trabalho. O que ele representa para você?
Acho que representa, sobretudo, a minha conexão com a música brasileira. Minha formação musical é muito baseada no cancioneiro popular do Brasil e, consequentemente, o violão acaba se tornando um elemento essencial na construção da minha música. No disco, foi através do violão que quase tudo surgiu: ritmos, convenções e arranjos. Eu entendo o violão também como a minha voz que se faz presente no álbum. Mais do que minha presença como músico, é a presença mais evidente da minha autoralidade.
A navegação fica mais fácil com arte? Aliás, é possível confiar nas ondas?
Não sei se mais fácil, mas certamente mais autêntica. E confiar na onda é, de algum modo, confiar naquilo que o destino traz. É confiar que, apesar de todo o impacto e do baque que pode nos oprimir, é preciso encontrar algum sentido na vertigem para, depois, se levantar e seguir até o encontro da próxima onda.
É necessário ter coragem para nadar, afinal, cada dia que passa as águas ganham forças. Por isso, façamos igual Chico Torres: entremos na água para sentir e completar a segunda navegação.
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