O volume máximo da can sad
- Michele Costa
- há 55 minutos
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Em A Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015), Byung-Chul Han mostra os efeitos provocados na mente dos indivíduos pelas mudanças sociais, culturais e econômicas. O filósofo explica que uma das principais causas para o esgotamento da saúde mental das pessoas é o excesso de positividade, já que ela traz estímulos de informações e de impulsos. Lutando contra essa realidade - e denunciando - , can sad explora, através de peças instrumentais complexas e hipnotizantes, temáticas contemporâneas como a alienação e a exaustão física e mental causadas pelo capitalismo.
Formada por Henrique Agahdez (baixo) e Luis Feitosa (bateria), o nome da banda faz uma brincadeira com a palavra cansado, termo que Byung-Chul Han aborda em suas obras. Faz sentido quando olhamos para a exaustão dos brasileiros: segundo dados do Ministério da Previdência Social, em 2024, foram quase meio milhão de afastamentos de trabalhadores por problemas de saúde mental.
Ao trabalhar a realidade em músicas explosivas, can sad toca em feridas dos ouvintes, ecoando os dizeres do filósofo: "(...) O hipercapitalismo atual dissolve totalmente a existência humana numa rede de relações comerciais. (...) Ele arranca a dignidade do ser humano, substituindo-a completamente pelo valor do mercado." Agora sim é hora de agir.
O início da can sad
Henrique e Luis se conheceram no trabalho. A amizade surgiu rapidamente e, em pouco tempo, descobriram que eram fãs dos mesmos artistas. Foi o start para se juntarem para fazerem jams sem compromisso, no entanto, o desejo de iniciar uma banda foi maior. "Em um show no Shiva [bar de Goiânia], tocou Urumbeta do Espaço, que é uma banda instrumental daqui, eles abriram para o Macaco Bong. O Agahdez não tava nesse show, eu mandei mensagem: "vamos ser instrumental, vamos ser só nós dois, porque existe um movimento"", explica Luis.
Após a criação do duo, começaram a se apresentar nas principais casas de Goiânia até alcançarem o espaço pelo Brasil. can sad fechou com a Monstro Discos, gravadora e produtora de bandas alternativas de Goiás e Goiânia. Em 2024, lançaram Escatologia, primeiro álbum, que aborda a saúde mental no fim dos tempos. Agora, a banda se prepara para tocar no Festival Casarão Instrumental, no FFFront, com Tronxo (AM), Ultimato (RO) e Red Roof (RR) como banda convidada.
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No momento em que vocês estão no palco, a raiva da sociedade do cansaço diminui ou ela dá um gás para ser resistência?
Dá um gás, com certeza. Como é o nosso momento de extravasar - eu geralmente toco muito alto, eu me empolgo, o Agahdez também frita muito… Não somos o instrumental que as pessoas pensam, é uma performance de rock. Batemos cabeça juntos, fazemos barulhos juntos e aí a gente extravasa e é aí que dá esperança, porque toda vez que a gente faz um show e tem uma pessoa nova que não conhece a gente, eu tô plenamente realizado porque eu fiz muitos amigos nesse tempo, sabe? A cada show vale a pena; vale a pena fazer e falar disso aqui. A gente não tá fazendo um trabalho de militância, de política, mas…
Não, estão fazendo sim!
[breve sorriso] Eu não me sinto Rage Against the Machine no palco, mas, talvez, um pouco de System of a Down. Toda vez que eu conheço uma pessoa que tem uma visão próxima da minha, eu vejo que não tô sozinho, saca? Tava vendo o Rodrigo Suricato [cantor] falar sobre o show da Lady Gaga - “não existe arte mais potencializadora de uniões e comunidades como a música” - e quando tem essa união, essa troca, a gente fica com mais vontade [de fazer], dá esperança. Embora quase todos os dias o capitalismo diga para não termos esperança, para seguirmos na rédea, ter esperança é a nossa arma. A cada show que a gente faz, eu penso que quero fazer outro. Cada música que a gente acaba de fazer, tenho ideias para outras e um próximo álbum.

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han, diz que TDAH, transtorno de personalidade (TPL) e o burnout são as patologias do século XXI, provocadas pelo excesso de positividade. Já que vocês abordam esses temas nas canções, gostaria de saber se você consegue enxergar uma saída para a exaustão do capitalismo tardio e, consequentemente, o seu fim.
Não consigo, eu sei que não vai mudar, mas existe a esperança de melhorar. Eu tenho um filho de 12 anos e outro de 5 e o meu pensamento é: se eu conseguir trazer consciência de classe para eles, pode ser melhor. Sem essa positividade tóxica que trabalha a ideia do coach. Pensando que existem duas vias, manter ou mudar, estamos trabalhando para mudar, mas eu acho muito pueril acreditar que eu, de alguma forma, só estou fazendo música e produzindo alguma arte que espanta, de alguma forma, essas ideias e reflexões vai chegar em um… Eu fui um personagem nessa revolução, nessa mudança - acredito que não, mas - aí é uma coisa individual - eu não acredito, mas também tenho a minha esperança de que se todo mundo fazer algo diferente, rejeitar a positividade tóxica, ficar com raiva e procurar saber mais, pode melhorar. Tem que tá puto mesmo, acredito que é com a energia da raiva que causa alguma mudança.
Escatologia aborda a saúde mental de maneira profunda e inquietante, a partir da doutrina sobre o fim dos tempos. Como vocês enxergam o fim do mundo? É possível que Cristo ressurja para tomar conta de todos ou estamos sozinhos?
O Agahdez tinha que tá aqui porque ele é o crente da banda, eu não tenho religião não, ele tem e é bem religioso. Escatologia é uma matéria da teologia que estuda, antropologicamente, como a sociedade que existiram e existem pensam sobre o fim do mundo. A conversa sobre escatologia, papo de boteco, é que a gente tá no fim do mundo e a gente deixa - vai acabar mesmo, foda-se; ou dá pra cancelar esse fim do mundo? Em Ideias Para Adiar o Mundo (Companhia das Letras, 2019), Ailton Krenak traz essa ideia de que o capitalismo quer que acreditemos nessa ideia. A gente pode até tá vivendo o fim do mundo, mas ele vai durar mais um tempo - pra mim, ele já começou. Eu costumo falar que o fim do mundo começou com o início do 4G, sabe? [risos] Acho que a internet é um meio para o fim do mundo, falando sobre cansaço e controle. O Agahdez fala que o demônio chama celular [dá ênfase na palavra e ri].
Escatologia é se perguntar: vamos viver melhor o fim do mundo? Agahdez escreveu um poema, que não sabemos como vamos usar, que tem o título “Presa x presa”, onde todo mundo é presa e todo mundo, individualmente, lutando contra todo mundo, não existe um caçador, não existe um predador, todo mundo é presa.
Krenak prega muito a ideia da imaginação para sair da realidade, para dar forças para fazermos algo. Te pergunto: como seria a sociedade se escutássemos a palavra dele?
Mata os bilionários…
Lindo! Apoio isso!
[risos] Coloca todo o dinheiro deles em um local só e se constrói uma comuna, um órgão, que tenha todos os caras do Nobel e o Byung-Chul Han que passa esse conselho para as coisas mudarem. Essa seria uma belíssima história [risos]. Ter consciência que o agro não é pop; manter os olhos abertos para os pequenos assuntos e não só para os grandes. Falo tudo isso, mas não sei a resposta.
Sentimos a política da can sad no fone, mas imagino que no show isso seja algo muito mais explícito. Qual é a mensagem que vocês querem passar para o ouvinte?
Acho que a principal mensagem, aqui falo muito mais como músico do que político, a gente só tá aqui porque a nossa vida não é só trabalhar, sabe? A gente só tá aqui porque, mesmo cansados e trabalhando todos os dias, a gente tá preocupado com o amanhã e nos vimos resistentes em estar aqui hoje, no palco, com muita luta. Várias vezes escrevemos nos créditos: sangue, suor e dívidas por Luis Feitosa e Henrique Agahdez, mas também falamos que é possível viver além do trabalho. Eu quero muito que os meus filhos lembrem de mim como um baterista do que um designer que fez a identidade visual de uma loja, sabe? Acho que a mensagem principal - talvez eu esteja falando muito mais por mim do que pelo Agahdez - é: faça o que você quer, preserve tempo para você, porque você não deve somente trabalhar e consumir o que colocaram goela abaixo.
Novos singles
Após Escatologia, o duo entrou novamente em estúdio para registrar ao vivo 6 singles, carregando o desafio de em cada um narrar uma história diferente, utilizando somente baixo, bateria e sintetizadores. "Kr0n1k" é o quarto lançamento dessa fase.
O texto base para a criação foi escrito por Luis Feitoza e Thiago Victório, e narra uma história com temática Solarpunk sobre uma inteligência artificial chamada K que lidera uma transformação global, resetando a civilização em aldeias, mantendo apenas os povos que sabem habitar a terra - fazendo referência ao Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022) proposto pelo líder indígena e filósofo Ailton Krenak. O texto completo está disponível no site da can sad.
A música funciona como um mantra dividido em três momentos, partindo de um clima espacial e etéreo guiado por um riff de baixo, que conduz a tensão que resulta em conflito, quando a bateria explode entre camadas de efeitos. Com ritmos sincopados e influência tribal, ao fim a esperança surge entre os escombros, junto dessa nova sociedade proposta na música.
Próximos passos
Em breve, a can sad lançará um novo single. A dupla segue trabalhando arduamente na criação de novos arranjos que explorem a narrativa ensurdecedora que criaram. Acompanhe-os no Instagram.
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