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  • Foto do escritorMichele Costa

O Maranhão de Vinaa

Para falar de Vinaa é preciso revisitar o passado. Voltamos a 1500, quando um grupo de europeus chegaram na área que hoje corresponde ao Maranhão. Colonizado por portugueses, o Maranhão é um dos Estados de maior influência política portuguesa. O local de Gonçalves Dias e Humberto de Campos traz uma cultura rica e diversificada, marcada por festas, manifestações folclóricas e festas religiosas. Muitos esquecem a própria história, mas Vinaa não: em uma conversa noturna, ainda realizada pelo Zoom, ele explica que sua história continua dentro dele.


Esse ano, o cantor lançou "Fé de Alimária", seu terceiro disco, que é fruto de uma extensa pesquisa sobre os 120 anos de música maranhenses. Ao lado de Zeca Baleiro e Filipe Façanha, Vinaa deu novas interpretações a músicas clássicas e importantes à população brasileira. Enquanto canta, ele lembra o ouvinte dos heróis que passaram pela sua terra.


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Quando você descobriu que gostaria de seguir a vida artística?

A música entrou na minha vida [quando eu] ainda era muito pequeno. Eu estudei por oito anos em uma escola adventista e tem aquelas coisas quadradas, tradicionais. Eu já vinha de uma experiência de ser muito tímido, com poucos amigos - aquela história. Aí, meus pais encontraram, nesse reduto escolar, um coral infantil, que foi meu primeiro contato com a música. Inclusive, a música, naquele momento, foi importante para me redescobrir. Eu meio que era "obrigado" oficialmente, mas consegui, através da música, me conectar com o mundo. Com o passar dos anos, eu fui me profissionalizando nisso . Eu entendo hoje… Por [ter sido] uma criança que não entendia o seu lugar no mundo, o não me identificar com as [questões] adventistas - tudo isso mexia muito comigo, eu ficava em uma redunda, em uma bolha, que a música era o único lugar que eu conseguia fazer… Respirar e me conectar comigo mesmo.

Perceba que eu saio do coral gospel, mergulho no mundo popular e anos seguintes, é quando eu começo a escrever sobre mim, coisas que eu não conseguia dizer as pessoas (afetivamente, inclusive). Então, eu escrevi muito, foram mais de 60 canções em um ano. Eram canções muito metafóricas, vagas… Não eram canções [com as quais] me reconheço hoje. Aí entrei em uma banda baile - e banda baile é uma bagunça de formatura. Eu pude entender um pouco, direcionar a música para um lado que eu não tava percebendo ainda, que é orientar a música para atender uma expectativa de quem tá te ouvindo do outro lado. A música não era sobre apenas o que tô pensando, era sobre o que as pessoas queriam ouvir - literalmente e comercialmente falando. Comecei a entender que eu podia falar coisas que as pessoas queriam ouvir; aí comecei a canalizar os sentimentos que não eram só meus - comecei a escrever canções que diziam mais sobre as histórias das pessoas do que sobre mim. Olha só a evolução que vai acontecendo ao passar do tempo! Aí aconteceu um marco importante: essa banda baile que eu fazia parte, isso faz dez anos, foi convidada a fazer um especial do Tim Maia, como os produtos sabiam que a gente tinha uma pegada diferente - a banda fazia mó sucesso em São Luís do Maranhão -, deixaram a gente fazer com a nossa pegada. A hora de acontecer o show foi um fracasso, ninguém queria ver esse rolê de reinventar Tim Maia. A casa cabia umas mil pessoas e só dez [apareceram]. Uma pessoa que foi e mudou toda a história… Na cidade, aquele dia, tava um cara que simplesmente produziu um disco inteiro do Tim Maia! Dentre as dez pessoas que estavam lá, tinha esse senhorzinho de oitenta e poucos anos chamado Cury Heluy. Ele assistiu o show inteiro, não fez nenhuma expressão diferente, eu também não sabia quem era ele… A gente entregou o show do jeito que a gente ensaiou e o Cury foi no camarim para falar comigo - eu lembro muito bem dessa cena: ele se aproximando, como [se] ele fosse um ancião do rolê, o mais velhinho dentre todos, ele chegando lentamente querendo falar comigo, e ele falou assim, uma frase muito embargada de emoção: "Se o Tim Maia tivesse vivo, ele teria muito orgulho do que aconteceu essa noite". Aí eu perguntei: "Quem é você?" e ele falou: "Eu sou o Cury Heluy" e perguntou se eu tinha canções, disse que sim, e ele falou "Se quiser, amanhã a gente começa os trabalhos" - e não deu outra. Eu saí da banda baile nessa noite e no dia seguinte, já estava em estúdio, produzindo meu primeiro disco.


Como foi essa passagem pra você?

Deliciosa, posso te dizer com toda a sinceridade. Ao mesmo tempo, cheio de dúvidas, porque não é um ofício fácil, algumas pessoas veem apenas o glamour, veem apenas em cima do palco. Preciso pagar as contas, então, como faz para equilibrar essa balança? Segui convicto de que a música, quando mais precisei, ela não me deixou - ela me ajudou a me reencontrar. Eu meio que me sentia na obrigação de devolver, contribuir com a música, preciso entregar um trabalho bem feito, que eu sei que pode impactar pouco, mas se transformar a vida dessas pessoas, tô cumprindo o papel que a música fez comigo. Veja só, da banda baile até hoje, foram dez anos, em dez anos, foram três discos. Tem sido uma experiência incrivelmente deliciosa!


Você consegue me descrever o que é música pra você? Por que ela é tão importante pra você?

[Breve pausa] Não teria outra expressão que pudesse sintetizar o que é música do que uma conexão com o divino. Um divino que habita dentro da gente - a sensação de você estar feliz, triste, bem humorado, se você tá com raiva… Você tem uma forma de se encontrar através de uma canção. Você diz coisas que não consegue, você manifesta um sentimento, você encontra refúgio, às vezes, de uma vida que você… "Eu não tenho nada, mas amo música", conheço pessoas que são incrivelmente apaixonadas por bandas estrangeiras e que moram no interior do Maranhão, não dominam nada do idioma, mas são incrivelmente apaixonadas. A música quando conecta, não importa a língua, o estilo, não é sobre isso, é muito maior! É essa conexão com o divino, toca na alma da pessoa - e aí não tem explicação. Quando aquilo te toca, é [quando] a música te alcançou. Pra mim, na minha visão mais romântica possível, música é uma força.



O que me chama atenção é que o seu primeiro disco fala de você, o segundo já foi sobre os outros e o terceiro é sobre um Brasil que você quer. Como foi percorrer esses caminhos - do você até chegar no outro, que também é você?

Foi exatamente isso que aconteceu, Michele, mas isso não foi programado. Quando eu pensei sobre uma coisa… As coisas foram acontecendo, porque a gente passou por um processo… Quando você coloca sua mensagem na rua, eu imaginava isso como qualquer manifestação artística - um livro, uma obra de arte… Quando as pessoas interagem com ela, aquilo não é mais seu. Aquilo deixa de pertencer a você. Então, as músicas que escrevi, inclusive do primeiro disco, não são sobre mim, eu me identifico com as histórias das pessoas, elas contando suas histórias. Quando você começa a interagir com o território, fazer a circulação, acho muito importante isso, o brasileiro se reconhecer em seu território - acho que falta muito disso, o Brasil não conhece o Brasil. Se o brasileiro se permitisse conhecer a diversidade que a gente tem, de gente, de história, de cultura… A forma como eu me identifiquei com esses territórios, a vontade que dá é de contar essas histórias, porque são incrivelmente ricas e poderosas. Na hora que eu começo a me identificar com esse território, naturalmente, a gente começa escrever canções de que é mais sobre isso, essa viagem, essas conexões, do que sobre a gente - e tá tudo bem. No meu ponto de vista, é uma evolução natural que vai acontecendo ao nível de composição, inclusive, as coisas vão se refinando e tem também o processo de maturidade que vai acontecendo.


Agora, faço uma provocação: o que é o Maranhão para você?

[Pausa] Uau! [Nova pausa]

Será que dá para descrever?

Maranhão pra mim é um sentimento. Um sentimento que tem cheiro de terra molhada, uma terra molhada que está visivelmente pisoteada por pessoas que não querem sair de lá, porque acreditam muito na força do seu próprio povo. Maranhão, pra mim, é esse sentimento. Esse sentimento que me alimenta, que me deixa vivo. Mesmo eu morando, hoje, em São Paulo, eu sinto o cheiro dessa terra molhada, das pessoas que estão ali, pisando naquele território e que se orgulham tanto daquelas raízes que são muito profundas. Pra mim, o Maranhão é o espelho de uma, apesar de todos os desafios, apesar de todos os problemas sociais, econômicos e de ser um dos Estados mais pobres do país, apesar de ser um dos Estados com o IDH mais pobres do Brasil, o povo maranhense; por isso que digo que é esse sentimento, é sobre as pessoas que estão ali. É muito maior! Não há um maranhense longe de seu território que não tenha um sentimento que mistura orgulho com saudade, a saudade de um lugar que talvez ele nunca tenha vivido. Esse oásis, onde esse sentimento coletivo dessas pessoas que pisam nesse território se orgulham de estar ali - reflete em muitas coisas.


Te perguntei sobre Marinhão, porque o workshop "Vento Norte: Produção Musical, Identidade de Origem e Valorização da Música feita em Maranhão", lançado no ano passado, diz muito sobre. Queria que você falasse um pouquinho mais sobre esse workshop e o que te levou a trabalhar, pesquisar tão a fundo na história do seu local.

Esse workshop é fruto do trabalho de pesquisa do "Fé de Alimária". O "Fé de Alimária" é um disco que é fruto de uma pesquisa musical e é uma pesquisa musical que demorou muitos meses. [A gente procurou] encontrar conexões entre o que havia sido publicado, amplamente divulgado, de canções que o Brasil se identifica, reconhece, ao mesmo tempo, fazer um resgate de simbologias sonoras, rítmicas, de um Estado que tem uma diversidade muito representativa, tanto de tambores como manifestações musicais. Dentro do próprio território, há muitas manifestações culturais que coabitam ali respeitando a presença de um dos outros, de como influencia isso hoje em compositores que atravessaram todas essas gerações que estão hoje produzindo; de como a nova geração da música maranhense é fruto desse símbolo. Então, o "Fé de Alimária", ao mesmo tempo que é esse passeio entre a história, mas tem essa reflexão sobre o que a gente tá produzindo hoje.

É um disco que parece que é complexo, mas não é isso. Ele é muito mais singelo, como aquela imagem impactante, mas ao mesmo tempo, dá vontade de você ir lá conhecer. Esse território que você não faz ideia do que pode encontrar ali de sons, de cores, de pessoas, porque é tão rico que você não conhece defini-lo! Por isso que quando eu falo que esse Maranhão é esse sentimento que é imponente pela própria natureza, apesar de ter as pernas finas, quase que quebrando. Aquela figura da "Fé de Alimária", aquela divindade animalesca, com as pernas finas, frágeis e com fome, ao mesmo tempo como uma grande quimera abrasileirada, com influências do Nordeste e nosso território. Maranhão, pra mim, é isso. O "Fé de Alimária" é a tradução sonora do que pode ser alguma coisa desse território. Confesso a você: daqui alguns anos, eu quero fazer um "Fé de Alimária" 2 e 3, pra trazer outros aspectos, porque há muitas possibilidades.

A gente resolveu convidar esses nomes, como Kastrup [Guilherme Kastrup, produtor], que produziu os dois maiores discos dos últimos 20 anos no Brasil, que são da Elza Soares. Como eu posso traduzir Elza Soares? [Ela] é uma entidade no território, que traz ao povo a simbologia de que Deus é mulher. E o Guilherme Kastrup produziu tudo isso, então, ele conseguiu trazer essa força ancestral da mulher preta no território brasileiro, conectado com uma sonoridade muito moderna, que conquistou o mundo. Luiz Cláudio, o grande host do workshop, é um especialista em tambores e percussões; ele consegue trazer esses ritmos para uma sonoridade que é contemporânea a gente, inclusive, ele faz um trabalho de resgate de grupos tradicionais que nunca tiveram nenhum registro audiovisual - ele leva para o seu estúdio e consegue produzir, gerar discos. O Luiz Cláudio conduz o workshop, Guilherme Kastrup faz uma participação [sobre] a importância de você estar atento à produção musical de hoje. A gente tem também Zeca Baleiro. É um workshop estreladíssimo! A gente fez questão de que ele fosse gratuito, afinal de contas, a gente não tá fazendo música pra gente - todas essas pessoas têm essa percepção. Esse workshop é isso: dar os caminhos para quem quer produzir música, de qualquer lugar do país, com os símbolos que temos.



O que também me chama atenção, é que um dos objetivos de "Fé de Alimária" é manter a tradição de clássicos canções do cancioneiro. Como é possível manter essa tradição em um mundo tão tecnológico?

O que eu penso sobre o mundo que a gente vive: nós não chegamos até aqui sozinhos. Inclusive, as tecnologias que nos trouxeram aqui, não foi só o smartphone, indústria 4.0, biotecnologia - isso é o que existe hoje. O que nos trouxe até aqui, foram tecnologias das ocas, foram tecnologias dos quilombos, foram os maias e os astecas olhando pra cima e analisando os astros. Foram essas tecnologias que construíram a nossa identidade como povo. Essa tecnologia foi deixada de lado, a gente sente isso, que o mundo vai se renovando - e não é uma coisa do Brasil, mas do mundo -, que vai deixando para trás, vai renegando sua história; e pobre do povo que renega sua própria história. Acho que os três discos tem essa vibe, de cancioneiro, de "vamos fazer canções para as pessoas se atentarem mais às letras". Ouso até dizer que se existir dois mundos, eu estou do lado do território, dos povos tradicionais.


Como foi dar voz a letras clássicas, tão profundas e necessárias?

O processo de escolha foi o mais terrível possível [risos]. Eu, em sã consciência, não teria feito isso, porque é cometer uma injustiça com tantos compositores, com tantas canções, com tanta gente incrível. Muita gente ficou de fora. A gente fez uma pesquisa musical com Zeca Baleiro, André Lira, mas na hora de escolher as canções… Eles disseram: "esse B.O. nós não queremos, é todo seu". O que eles me orientaram foi: "Vinaa, siga seus sentimentos". A memória afetiva é um critério importante, canções que me tocaram e que fazem parte da minha história, das pessoas que conviviam comigo - isso destacava algumas canções das outras. Outro critério era: quais as canções que diziam respeito ao existencialismo? Ou seja, elas ainda permanecem vivas, por mais sufocadas que elas sejam. Acho que o terceiro critério foi esse sentimento de divino que a música provoca. Tem canções que eu não tinha nenhuma memória afetiva, mas elas surgiram, me levaram para um estágio de "meu deus, o que é isso?". Esses foram os três critérios que eu adotei e a gente começou a filtrar. [Depois] Passamos pelo processo mais difícil, que é fazer as releituras. Aí você vai brincar com os sentimentos dos outros, não é sobre o que apenas estamos sentindo, porque as pessoas conhecem as canções!

Tem aquele peso também?

Existe um peso de referência que eu não tive em relação ao meu trabalho, as minhas canções. As histórias dos outros não são a minha história - e as pessoas já conheciam as canções. Então, como é que eu me proponho a revisitar essas obras, sem prejudicar essas memórias?


Você já passou por três etapas diferentes. Você consegue ver as diferenças transformações que passou? E no final, quem é Vinaa?

[Pausa] Essa pergunta, talvez seja a mais bonita das perguntas porque, Michele, essa história toda não é sobre alguém que conheci, é sobre um processo que eu vivi na pele. Às vezes com os olhos pesados, de dificuldades, ter que abrir mão de muita coisa, abrir mão de sentimentos meus. Não contar aquilo que eu tava sentindo. O que eu fui perdendo com o passar do tempo, certamente foi o medo de contar a minha história. Fui ganhando um sentimento de pertencimento a um território que eu não me sinto sozinho. Quando eu conto essa história, ela meio que se mistura com a história da minha gente, com a história do meu povo e com a história do Brasil que eu conheço. Quando eu abro mão dessas coisas e me decido conectar com essas coisas, seja lá de onde elas estejam, acontece o que eu pude sentir na pele há poucas semanas em Chapecó, Santa Catarina. Uma cidade que na última eleição bateu 70 ou 80% de votação pró-direita. Eu chego naquele território e sou abraçado de uma forma… As pessoas me contando as histórias… Quando eu chego ali, as pessoas se identificam com esse ar, essa Arca de Noé que chega com cada par de salvação para cada um, é um sentimento de… Eu não sei explicar isso, mas é um misto de ressurreição do território, não é meu, eu tô apenas passando por ali com a minha história. E as pessoas se conectam de uma forma que… Acho que isso eu ganhei, isso eu não tinha. Eu entendi que isso vai acontecer com mais força quanto eu mais me permitir viver a história dessas pessoas, desses territórios que eu não conheço - e eu tô inteiramente disposto.


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