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  • Foto do escritorMichele Costa

O cantinho de João Marcos Bargas

Quando eu era pequena, minha avó dizia que não era preciso ter muitas coisas para se sentir bem, já que a vida pode terminar rapidamente. Ela dizia que era preciso construir uma casa dentro de si, ou seja, encontrar maneiras para sobrevivermos aos diversos golpes da vida. "Faça um cantinho só seu e quando estiver preparada, convide o outro para entrar", dizia.


"Cantinho" (Rockambole, 2021), primeiro EP do multiartista João Marcos Bargas me relembrou os ensinamentos que recebi na infância. Aliás, na segunda canção de seu álbum, "Meu Canto", João canta com sua voz doce - dando ênfase no ensinamento de minha avó: "Sem querer, eu fui me conhecer / No outro eu, alguém que se esqueceu de si / E agora quer partir". Construir o seu próprio templo não é fácil, longe disso (!), é necessário ter paciência, carinho e atenção. A trajetória pode ser longa e dolorosa, mas o final… Vale a pena. Como canta João, algumas vezes, é preciso se perder para se reencontrar de novo, remodelando o cantinho para, mais tarde, convidar outras pessoas para visitá-lo.


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São cinco da tarde, numa segunda-feira quente. A câmera do computador está aberta, esperando João solicitar entrada na sala do Zoom. Do meu lado é possível ver pôsteres e quadros na parede, além dos livros e da pequena luminária azul. João "bate" na porta virtual e aceito-o. Do seu lado, sua imagem aparece, seu microfone fica mudo por alguns segundos. Sua parede também contém colagens. Os nossos cantinhos são parecidos, mostrando que a arte está presente em nossas casas [dentro e fora]. Começamos a conversar e logo damos risadas. Carnaval, calor, coronavírus e pandemia são alguns dos primeiros temas. Após um breve suspiro duplo, iniciamos nossa conversa sobre "Cantinho".


Antes de falarmos sobre "Cantinho", queria saber quando e como você descobriu que era um artista.

Nunca [risos]. Eu acho que ainda tô em um processo de construção nesse entendimento da palavra artista.

Jura?

Juro! Eu trabalho com arte desde os 6 anos de idade, mas claro, como qualquer disfarce de trabalho infantil, é tudo levado na brincadeira. Quando eu comecei, eu não era uma criança tímida, mas me tornei um adulto mais tímido. A irmã da minha professora do prézinho era cover da Madonna e participava muito de concursos de dublagem, que eram pessoas que se vestiam de artistas, e ela tava precisando de um menino, porque ela tinha uma menina pequena e, na época, lembro muito que era meio Sandy & Junior, ela queria colocar crianças para outras coisas e eu comecei a fazer Jail e Joel, que faziam "Amigos Para Sempre" - horrível! Mas eu queria pela vibe de estar no palco, né? A minha família é de circenses, foram de circenses, mas tem uma parte, primos de terceiro grau, que ainda trabalham no circo.... Mas meu ciclo familiar, minha mãe, minha avó, meus tios, todos trabalhavam no Circo Garcia que faliu nos anos 90, eles trabalharam por muitos anos lá - a minha avó era cantora, depois ela virou cozinheira do circo quando ficou idosa - tem esse processo todo dentro do circo. Quando eu nasci, eles já estavam na parte de fora. Como o circo entrou em falência, acho que rolou uma pequena frustração enquanto artista, sabe? Então, minha avó virou cozinheira, minha mãe costureira, esse passado do circo não era nem uma conversa de casa. Como eu entro nesse grupo de fazer dublagem, já vem aquelas coisas do: "quando você crescer, você não vai querer fazer isso, né?" "Você tá fazendo isso agora porque é uma brincadeirinha, ganhar uns prêmios, fazer umas patacoadas."

Aos 12 anos, quando mudo para Guarulhos, cidade que moro agora, entro na escola, conheço meus professores de arte, que são meus amigos até hoje, que me apresentam o teatro. Em um exercício de teatro no pátio da escola, tinha um garoto que tinha ido vender um espetáculo para escola que era de uma companhia de teatro, ele me viu no exercício da escola, conversou com o meu professor e queria que eu entrasse na companhia e estamos juntos vinte anos [risos]. É uma história de casamento, né? Nesses vinte anos de teatro, tudo que eu faço de arte hoje em dia, sou maquiador, sou coreógrafo, trabalho com figurino, eu canto [risos], tudo isso veio por conta da necessidade de melhorar o meu trabalho dentro de uma companhia independente. É dessa forma que a arte é a minha vida. Acho que não tem uma separação de como eu comecei a trabalhar com a arte, sabe? Parece muito poesia, mas…

É o que você é.

Sim! É!

É engraçado que eu te perguntei sobre ser um artista e você não se vê como um. Como a gente pode agregar isso?

Ah, de frescura, amiga! [risos] Eu sou muito fã dos meus amigos artistas, sabe? Eu vejo muita coisa boa - e não tô falando que eu vou para outro país e vejo uma coisa muito foda, de um artista muito grande; é tipo meus parças, daqui a da cidade, sabe? Galera que tá aqui tomando um café… Eu tava até brincando com o [Novíssimo] Edgar, diretor do meu clipe, eu o conheço desde a adolescência dele… É muito doido falar, sabe? O cara tava aqui tomando café comigo e tá indo para o Rock in Rio, no palco, não na plateia. É muito doido ver os meus amigos! Então, quando eu começo a olhar para o meu trabalho, eu fico "tá, legal, eu faço uma coisinha ou outra", mas também é o lance de não tá… De ser muito bom, mas não 100% pronto, sabe? Quando você chega nessa conclusão; tipo, "agora eu estou pleno", aí perdeu a graça, entende? Eu tô sempre em construção.

Me parece que você também não quer ficar somente em um lugar, parado.

Exatamente. Eu sou aquariano - é só uma desculpa, não é nem porque eu acredito muito em astrologia, é uma desculpa para a vida mesmo. Dentre as pessoas que estudam e gostam de astrologia, dizem que os signos de ar, eu tenho dois, aquário e gêmeos, eles são realmente muito fluidos, é um lance que não para quieto - basicamente, um balão de gás hélio, quer voar o máximo possível, quer fazer o máximo de coisas possíveis. Eu nunca trabalhei com carteira registrada, já começa por aí, me dava uma agonia pensar em ir para o mesmo lugar todos os dias, ver as mesmas pessoas, fazer as mesmas coisas e tal. Então, eu sempre me cerquei de atividades que eu pudesse ter dinâmica.


Em "Cantinho", percebi que você não fica somente na música. Você exala sentimentos, dança com a harmonia da música. Como foi essa construção para dizer, explicar, sobre o que você é hoje?

Caraca [risos]. O "Cantinho"... Eu sinto bastante que ele é um resumo real da minha vida. Desde pequeno, eu trabalho com interpretação. Quando eu comecei a fazer dublagem, era a música de alguém, quando comecei no teatro, interpretava personagens. Quando eu comecei a cantar foi fazendo cover em barzinho; a música autoral veio depois de um tempo. Eu sempre fui muito fã de música instrumental e sempre achei que quando você vai colocar palavras, quando você vai falar alguma coisa na música, tem que fazer muito sentido. Eu sou muito fã de grandes intérpretes que nunca escreveram uma canção - Cássia Eller, Elis Regina - e hoje em dia, quando você ouve uma música da Elis, você não fala: "ah, a Elis cantando Chico Buarque", aquela música é da Elis! Por mais que elas não tenham escrito [a música], a interpretação é tão densa, tão inteira, que parece que é delas. E aí, vem "Cantinho". Não é um personagem. "Cantinho" é, basicamente, abrir o meu diário pra galera - é o meu cantinho, literalmente. É dividir isso porque alguém ouviu, no caso a galera do Rockambole [gravadora], e achou que as pessoas também iam se identificar com o meu cantinho, e que esse cantinho era nosso. Tem mais pessoas que querem discutir esse assunto e se desnudar, se abrir e não sentir vergonha de ser vulnerável. Somos múltiplos.

Lembro que no dia do lançamento, eu fiquei bem tenso. Eu gravei um story falando "ah, agora o meu "Cantinho" é nosso, tá no mundo" - e quando eu terminei de postar, eu falei "caralho, agora o "Cantinho" é nosso!". As pessoas vão me ver da forma mais vulnerável possível.


Como foi esse processo? Escrever um diário já é doloroso, mas cantar, se expressar, imagino que seja muito mais difícil. Como foi essa construção?

Olha, a princípio, foi bem difícil, porque eu vinha de uma banda de cover. No final da banda, a gente ficou cinco ou seis anos juntos, a gente começou a fazer música autoral, só que era uma coisa em conjunto, eram letras mais do Cláudio, o "chefe da banda", digamos assim, e aí ele pegou uma folha de caderno, porque eu não mostrava as coisas que eu escrevia, e veio com duas músicas prontas e me mostrou. Achei legal e ele falou "a letra é sua!" - eu nem me lembrava! Foi estranho, mas como passou para a banda, ficou uma música da banda. Quando a banda acaba, o Leandro Pacheco [amigo e músico] me disse: "não acha que tá na hora de parar de cantar as músicas dos outros e cantar suas músicas?". Aí eu volto para aquele assunto; nunca me vi como cantor, eu me via como vocalista de uma banda. Essa ideia de seguir como vocalista veio junto com a ideia do Lê. Quando a gente começa a ensaiar as músicas que gostamos, vem o nome "Cantinho", porque é um negócio mais intimista, tocar em roda de amigos, teatro e saraus. Aí eu comecei a me sentir confortável para colocar, uma coisa ou outra, que eu escrevia. Até chegar a tocar para uma plateia com desconhecidos, foi muito intenso! Eu não tinha mais uma máscara, não tinha mais um personagem por trás, era o cantinho do João Marcos Bargas; eu não tinha mais uma banda com nome geral, era o meu nome… Foi um processo estranho, mas gostoso. Foi um processo de auto-desconstruição também, sabe? Entender que eu também poderia dividir aquilo com as pessoas e que poderia ser bacana também e se não fosse, também tava tudo bem.


Uma das coisas que também me chamou atenção foi uma frase que achei linda e que mostra "Cantinho": "Eu fui me conhecer em outro eu, alguém que se esqueceu de si e agora quer partir". Eu fiquei me perguntando e agora que a gente tá conversando, te pergunto: você precisou se perder para se encontrar para compartilhar o seu cantinho com a gente?

De-mais! Esse trecho é do "Meu Canto" que é do Pedro Martins [vocalista da banda O Grilo] - antes de explicar esse trecho, preciso dizer como ela foi feita. O Pedro é companheiro de selo e quando eu falei que eu não queria lançar apenas as minhas músicas [que escrevi], porque ia me sentir muito, muito, muito, muito mais vulnerável do que o necessário, surgiu a ideia de ter uma música no álbum composta pelo Pedro. Aí o Pedro falou: "eu queria escrever uma música, mas eu preciso conversar com você antes" e a gente fez uma call, que foi no tempo da pandemia, e eu contei para ele o porquê do [nome] cantinho. Basicamente, ele fez uma entrevista comigo e quando chegou a letra, eu lembro de ligar para Luiza Gonçalves [produtora] e falar: "que porra é essa? Parece muito que fui eu que fiz", ele me traduziu de uma maneira muito intensa [risos]. Esse período, eu interpreto muito com umas fases da minha vida. Eu precisei, em alguns momentos, me desconstruir para me reencontrar, muitas vezes porque eu achei necessário - esses processos são importantes até hoje! Então, eu precisei me perder muitas vezes para me encontrar… Hoje em dia, eu consigo até me perder conscientemente, sabe?



Agora que o seu "Cantinho" tá no ar e que virou o nosso cantinho, como você está se sentindo?

É estranho, vou te confessar que é estranho, porque quando eu fazia teatro, por exemplo, alguém vinha comentar sobre a peça, a gente discutia sobre leitura… Em vinte anos de carreira como ator, eu fiz pouquíssimas peças teatrais minhas, então, quando você vai conversar com o público, você tá numa visão de ator, conversando com uma pessoa de público e que tem o autor que fez a peça, então, você tá discutindo pontos de vista. Quando eu lancei "Cantinho", as pessoas chegavam, diretamente, para falar, não só do meu trabalho, mas sobre mim! Claro que com a visão sobre a música - "essa música fala sobre mim e não sei o que…" [e eu fico] "ééééé´" [levanta as sobrancelhas]. Também é mágico a forma de que a pessoa dá leitura para aquilo. Em relação a "Me Deixa", foi o primeiro single, o que eu recebi de inbox de pessoas amigas e de pessoas muito desconhecidas, o que é muito louco [de ver] como a arte acessa [outras pessoas], porque não é só aquele momento vivido e acabou. A gente lançou "Me Deixa" no meio do ano e agora, em dezembro, eu continuo recebendo feedback de pessoas que acabaram de ter contato com a música - e acho que isso vai acontecer por mais um tempo. "Me Deixa" é sobre uma conversa comigo mesmo, do momento da desconstrução, o você da música sou eu mesmo. É uma conversa com o espelho. É sobre o meu processo de entender que eu também podia ser vulnerável, eu também posso querer conversar sobre assuntos mais densos, porque eu, literalmente, para os meus amigos, eu era a pessoa que não levava a vida a sério, mas na verdade era só uma válvula de escape. Veja o lado bom da vulnerabilidade, a gente precisa conversar sobre saúde mental, como é legal se dar o direito de, às vezes, não tá o tempo todo no up.


Além da vulnerabilidade, o seu álbum fala muito também sobre amor, perda, tem um certo deboche quando fala de geminiano, o que é engraçado. Como foi montar esse equilíbrio? Já foi pensado ou foi no meio do processo que surgiu?

Não, a gente pensou. Quando a gente pensou em gravar, a gente só ia gravar "Me Deixa" como single, aí depois surgiu a oportunidade de fazer um EP, já que passamos na Lei Aldir Blanc de Guarulhos. A princípio, o show "Cantinho" que eu fazia e que a gente falou mais cedo, ele conta uma história, tem um começo, meio e fim, tem um roteiro entre as canções - autorais e covers. No EP, a gente também pensou em um roteirinho, mas que fosse um pouco mais sucinto, então não tem a história de "aqui começamos a falar de amor, aqui a gente fala de ódio…" - a gente começa com uma canção que no show eu fazia uma capela, que é "Cantinho", apresentando mesmo esse espaço quase que físico - "sejam bem vindos ao meu cantinho" -, essa viagem a minha pessoa. E aí a gente vai com as músicas na sequência, mostrando também essa vulnerabilidade, essa inconstância, que tem momento que eu sofro e tem momentos que eu quero que você se foda - é real. Tudo isso, eu sinto de verdade! [risos] Então, em seis canções, a gente não consegue contar muito bem essa história, mas a gente consegue sustentar esses momentos, sabe?


"Cantinho" contou com os arranjos de PLUMA e de Pedro Henrique Robes. O EP foi produzido por Felipe Martins e Robes, gravado em Artsy Club, mixado e masterizado por Hugo Silva.


Muita gente bacana trabalhou com você em "Cantinho". Como foi aprender e ensinar?

Foi muito doido, porque, eu demorei 33 anos pra lançar uma música minha. É um processo de aprendizado. Então, quando a gente decidiu colocar isso em registro… Não é nem preferi, eu precisei, me cercar de lugares seguros. Eu tenho uma grande honra de ser fã dos meus amigos. Eu tenho grandes amigos pessoais que são artistas fodas, então eu tive que me cercar dessa segurança. Ter feito esse processo com o selo Rockambole já é o começo disso, porque são pessoas que - tudo bem, eles ainda não saíram dos 22 anos ainda -, mas eu os conheço desde muito jovens e tem uma ligação muito pessoal também; então, eu começo a me sentir mais interessado e muito mais seguro nessa relação. A única [banda] que eu não conhecia pessoalmente era o pessoal da Uma Pluma que são colegas de selo e era um trabalho que tava surgindo e que eu já tava pirando, sabe? Quando a Luiza veio com a ideia do "acho que a PLUMA podia gravar com você"... A Pluma vem para dirigir o arranjo, para rearranjar as músicas, pra gravar junto com o Leandro… Começa um outro processo, mas tudo dentro de um lugar seguro.


O cantinho de João é seguro e doce. As seis canções do EP te abraçam rapidamente, assim como a voz doce e a risada contagiante. Assim como todo espetáculo, a conversa pelo zoom também tem que se encerrar. Uma hora e dezessete minutos de conversa, alguns bordões e risadas, as cortinas começam a se fechar. A porta do cantinho se abre, nossa visita terminou, mas não pense que é o fim, o templo de João está no mundo e podemos acessá-lo em qualquer canto.

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