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  • Foto do escritorMichele Costa

Impressões: Nem Sinal de Asas

Febre: estado patológico caracterizado por aumento de temperatura no sangue, geralmente acima de 37 graus; aceleração do pulso e inapetência. É através da pirexia que o primeiro romance de Marcela Dantés, "Nem Sinal de Asas" (Patuá, 2020) se inicia. A obra narra a história-corpo de Anja Santiago que é encontrada cinco anos após sua morte, em seu apartamento.


Perceba que o nome da protagonista é o feminino de anjo - mas a mulher não é uma mensageira de Deus e nem possui asas; Anja foi um ser humano que preferiu cuidar dos outros para se preservar. Carregando a mãe Dulce, racista e narcisista dentro de si, passou pela vida sem viver, com uma "imensa vontade de ser invisível" como escreve a autora - consequência (será?) das bolhas que a mãe causou em sua pele ou a partida repentina do pai. Então, quando a morte invade lentamente, com aquele caroço que deixava sua garganta com gosto amargo, a moradora do apartamento 902 do Edifício Hotel Lucas, percebemos que a moça continua invisível: ninguém deu por sua falta.


O limão que a mãe pingava em sua pele negra com o objetivo de clareá-la continuou presente na vida: no decorrer das páginas, a autora descreve as feridas que a protagonista carrega que vão além do corpo.


"(...) Porque sair de casa significava deixar sem proteção a única coisa que ela tinha de valor, ela precisava aprender a dizer não, o que doía como limão na pele (só que muito menos que limão na pele). E embora desconfiasse que aquela Dulce soubesse muito bem se virar sozinha no mundo, sobretudo no apartamento que lhes cabia, às duas, preferia não ter que descobrir a resposta. (...)"

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Narrado por duas vozes, do narrador, em terceira pessoa, que acompanha a vida de Anja e sua família, e do porteiro machista e infeliz Ramiro, em primeira pessoa, que descreve seus dias protegendo o prédio e as opiniões que tem de Anja, a mulher que ele tenta violá-la no elevador. É curioso analisar a narrativa do porteiro que altera em alguns momentos: ele comenta sobre o corpo da mulher, sua vida entediada e a dó que sente ao saber que Anja morreu sozinha, em seu lar. Será que ele estaria procurando alguma redenção ao mudar sua fala?


Anja que se apresenta como Ângela, porque odeia o nome, busca saídas para continuar vivendo. Após perder o pai Francisco, a protagonista não consegue se abrir para outras pessoas, por isso, ela se fechava após qualquer contato. No entanto, quando Rinoceronte, um gato machucado, em sua vida, ela retorna com o brilho. Anja tem um motivo para continuar existindo.


"Já na própria iminente morte, Anja não se importa com nada disso. Ela simplesmente vai deixar de ser Anja Santiago, uma mulher um tanto calada que odeia o próprio nome. Fora Dulce que o escolhera, antes mesmo de ela nascer. Na verdade, tinha acontecido antes que se soubesse grávida: ela sempre desejara uma filha, uma menina que chamaria Anja. Dizia, orgulhosa da sua sagacidade e certa da inveja alheia, que era o feminino de anjo, uma história tão espalhafatosa quanto ridícula, todo mundo sabe que anjos não têm sexo. E é justamente por isso, porque odeia o seu nome e suas razões, que nas raras ocasiões em que alguém lhe pergunta, Anja diz que se chama Ângela."

"Nem Sinal de Asas" é um livro incômodo, afinal, a solidão tortura. Marcela não tem dó do leitor - em "Sobre Pessoas Normais" (Patuá, 2016), seu primeiro livro, a escritora traz contos realistas que estão cheios de sofrimentos, afeto e violência, como a vida é. Ela aproveita para nos relembrar que é preciso seguir após uma perda. Anja Santiago está morta, mas nós não, é necessário continuar e ir contra o cheio da morte.


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