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Foto do escritorMichele Costa

Impressões: Quem Matou Meu Pai

Quando eu era criança, minha mãe contava as histórias de seus pais: a solidão de ter abandonado um lugar para recomeçar em outro, as perdas, a pobreza e as dificuldades que meu avô teve para sustentar sete filhos; assim como os medos, manias e castigos que minha avó aplicava nos filhos. Em um determinado momento - talvez na adolescência -, a narrativa foi alterada, ou seja, minha mãe começou a contar sobre como foi difícil e maravilhoso romper com algumas crenças de seus pais para criar os seus filhos. 


Entretanto, é possível ver as repetições. Me pergunto se todos passam por isso durante a trajetória. Diferente do escritor francês Édouard Louis, que não tem medo da repetição, eu tenho. Suas obras - O Fim de Eddy (Tusquets, 2018), História da Violência (Tusquets, 2020) e Lutas e Metamorfoses de uma Mulher (Todavia, 2023) - são marcadas pela autobiografia e a política da época. Essas características também estão presentes em Quem Matou Meu Pai (Todavia, 2023). Nele, Louis narra o reencontro com o pai violento e homofóbico e suas lembranças ao lado da família que viveu no interior da França. 


A ilustração da capa já anuncia os temas que serão retratados na obra. Explico melhor: em uma parte da toalha verde é possível ver a marca do copo - aqui, imaginamos as diversas possibilidades do líquido que estava no utensílio, seria um café forte para manter vivo o pai ou uma bebida alcoólica para esquecer as dores e suportar a vida? Água para continuar gritando? O sangue, que não é vermelho, está acompanhado de uma vida que foi encerrada pela violência. Os cacos estão espalhados na superfície. Desse modo, percebemos que o título do livro não precisa de um ponto de interrogação: o escritor sabe quem matou o seu pai. 


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Dividido em três partes, Quem Matou Meu Pai é um relato doloroso sobre o reencontro de pai e filho. No prefácio, Édouard desenvolve a cena de dois familiares que viveram juntos por anos, mas nunca se conheceram. No passado, apenas o pai falava; mas no encontro, é o filho que fala/escreve o que ficou guardado por anos. Com a troca de poderes, o genitor que está menor, inválido e sem forças não narra sua história, fazendo com que Louis preencha as lacunas sozinho a partir da observação e de memórias.  


Na primeira parte de Quem Matou Meu Pai, o escritor contextualiza o relacionamento dos dois, conectando as decisões do pai com o contexto político e traumas causados pelos seus próprios pais. Dessa maneira, ele ilustra como a homofobia, violência e racismo moldaram a vida do mais velho. Não é necessário ir longe para enxergar que o próprio pai é dessa maneira por conta da fúria de gerações passadas que foram comandadas por governos que não se importavam com os invisíveis. Somente mais tarde que o opressor percebe que era oprimido: "(...) Você tem pouco mais de cinquenta anos. Você pertence àquela categoria de seres humanos para quem a política reserva uma morte precoce."


"(...) Será que não é preciso repetir até que nos ouçam? Para forçá-los a nos ouvir? Será que não é preciso gritar? 
Não tenho medo de me repetir, porque o que escrevo, o que eu digo, não atende às exigências da literatura, mas às da necessidade e da urgência, às do fogo."

Durante as páginas de Quem Matou Meu Pai, vemos um escritor que, após anos, compreendeu que seus pais, assim como seus avós, foram moldados por frustrações e trabalhos pesados. Em decorrência deste comportamento, seu pai não conseguia mostrar o amor que sentia pelos filhos e pela mulher. Ao se separarem, cada membro da família torna-se um estranho. 


"Ser homem - não se comportar como mulherzinha, não ser viado - significava sair da escola o mais rápido possível para provar sua força aos outros, o mais rápido possível para mostrar sua insubordinação. (...) A masculinidade o condenou à pobreza, à falta de dinheiro. Ódio da homossexualidade = pobreza."

Na segunda parte, Édouard volta para as memórias, compartilhando as brigas dentro de casa: o dia em que seu meio-irmão quase matou seu pai por conta de dinheiro, a mãe relembrando o passado e questionando Édouard por ser tão "feminina" e os gritos que machucavam os ouvidos. 


Já o terceiro capítulo traz a conclusão da observação do filho. Assim, Louis diz os nomes dos culpados pelo acidente de trabalho do pai, suas dores, pobreza e depressão: "(...) Hollande, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do seu sofrimento tem nomes. A história da sua vida é a história dessas pessoas que se sucederam para abatê-lo. A história do seu corpo é a história desses nomes que se sucederam para destruí-lo. A história do seu corpo acusa a história política." 


"Esses nomes que mencionei há pouco, talvez aqueles que vão me ler ou me ouvir não conheçam, talvez já os tenham esquecido ou nunca os tenham ouvido, mas é justamente por isso que desejo mencioná-los, porque há assassinos que nunca são denunciados pelos assassinatos que cometeram, há assassinos que escapam da vergonha graças ao anonimato ou graças ao esquecimento, tenho medo porque sei que o mundo age nas sombras e na noite. Eu me recuso a deixar que eles sejam esquecidos."

Volto a pensar no passado. Me pergunto como foi a vida de mães, pais, avós, companheiros e tantas outras pessoas que passaram por dificuldades durante a ditadura civil-militar. Não esqueço dos individuos que perderam filhos, colegas, amigos e netos nas sessões de torturas comandadas por militares. Lembro do ódio que minha família sente quando ouve o nome Collor. Penso nos suicídios daqueles que perderam tudo ao terem seus dinheiros confiscados. Lembro das 700 mil mortes causadas pelo Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19, os crimes ambientais, o genocídio indígena e a corrupção. A violência tem nome e sobrenome e precisamos fazer o trabalho de dizer os nomes em busca de justiça. Assim como Édouard Louis, eu me recuso a deixar que eles sejam esquecidos.

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