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  • Foto do escritorMichele Costa

A versão definitiva de João Castellani

Atualizado: 29 de jun. de 2023

Escrever sobre João Castellani não é fácil, assim como suas músicas. Explico melhor: em três anos, o jovem lançou os EPs "QUIPU” (2020), "Dos Meus Sonhos" (2022) e "Primeiramente" (2023), além dos singles "Passagem” e "Via Estreita", em 2022. Assim como suas canções, o músico está em constante mudança, apresentando suas diversas facetas entre ondas sonoras - portanto, para conhecê-lo, é necessário ouvir e reouvir seus projetos. Não que isso seja algo negativo, pelo contrário, a sonoridade de João leva o ouvinte para outros caminhos, criando-se uma paisagem a partir de guitarras, baixo, bateria, sintetizadores, pedais e tantos outros instrumentos.


Apontado como um prodígio na cena independente local, suas influências, que passam pelo jazz, rock e funk setentista, estão presentes em "Primeiramente", lançado na semana passada, fechando o ciclo instrumental. O álbum é consequência dos lançamentos anteriores e suas inspirações, que evocam Jimi Hendrix, Azymuth e Led Zeppelin. João está amadurecido, além de buscar detalhes delicados em um mundo apressado.


Aliás, o significado da palavra detalhe descreve perfeitamente João Castellani, que ao compartilhar sua candura e sensações vai além da realidade, deixando seu som livre para diversas interpretações e brincadeiras com o imaginário.


Me chamou atenção no release: "Trabalho mais notável e que melhor traduz João". Quais são as diferenças dos outros trabalhos para esse? O ouvinte já te conhece dos seus outros trabalhos, mas aqui ele percebe uma nova camada?

Eu acredito que é principalmente o momento da vida que faz a diferença. O "QUIPE" foi muito experimental, uma coisa que eu achei que fazia sentido na época e eu queria envolver as pessoas, promover meio que um Clube da Esquina, aproveitando que ele era gravado na casa dos meus amigos, aproveitando aquele clima. Nunca era uma gravação contando o horário certinho ou só gravar e ir embora, sempre tinha o cafezinho, um papo antes ou depois; envolvia toda uma tarde de ficar juntos, de dedicar tempo, amor e carinho à coisa, que eu acho que esse é o trabalho mais diferente. "Passagem" e "Via Estreita" foi quando eu comecei a entender que gravar em casa não era um bicho de sete cabeças - fui testando algumas coisas, posicionamento de microfone, usar um cabo ou pedal diferente… "Dos Meus Sonhos" já é um passo que vai um pouquinho além: ele é melhor de som e de produção. "Primeiramente", pra mim, fecha esse ciclo do funk, da exploração estritamente instrumental, porque as coisas que tô gravando agora, passei a gravar, na verdade, desde que "Primeiramente" tá pronto - desde março - às coisas que tô fazendo agora não tem mais muito a ver com as coisas que eu já fiz. Se esses lançamentos, principalmente do "Passagem" e "Via Estreita" até o "Primeiramente" conversam muito bem entre si, dentro desse universo, então, o próximo passo vai ser distante. Então, pra mim, "Primeiramente" é esse momento de passagem muito perfeito.


É um álbum composto metricamente intuitivo. Como foi esse processo? Eu já tinha, de certa forma, a métrica e a estrutura das músicas na cabeça. Ia gravando sozinho, testando as coisas, tocava uma base… Tem muita coisa que não entrou no álbum, de experimentações, violões, sopro… Ia ficar muita doidera [risos], aí fui tirando, secando… O processo com os músicos é o seguinte: como a gente já toca muito juntos, mesmo se for cover ou versão, a gente se entende muito bem - pra cada som, eu estendi convites muito cirúrgicos, pela forma que eu sei que eles se expressam, eu já a imaginava a linha que eles iam fazer e como aquilo poderia somar com o som. Eu deixei que fosse uma forma intuitiva, espontânea, mas a música e a estrutura já tava ali, sabe?


Você pensou em "Primeiramente" enquanto finalizava "Dos Meus Sonhos". O seu processo é esse: você finaliza um e já tá pensando em outro?

Exatamente. Geralmente, quando eu tô gravando o que falta de um, já tô começando alguma coisa. Sempre sobram algumas coisinhas… Tem uma música no “Primeiramente” que se chama “A Máscara da Morte Vermelha”, essa música em especial teve um certo problema, minha interface deu pau bem no finalzinho do processo. Quando eu tava gravando os últimos baixos e guitarras, eu já tava começando esse novo projeto que tô prevendo que é essa questão que tem mais vozes e explora outras referências, outras influências minhas. Então, geralmente, [o meu processo] é assim.

Não é caótico? Você tá terminando um e já pensando em outro…

Geralmente eu tenho que deixar certo na cabeça, porque se eu vou seguindo o fluxo natural - toda vez que tenho tempo na rotina, começo a gravar -, acaba ficando muita coisa pra cabeça, porque eu gosto de muitas coisas, então, às vezes, eu tenho que amarrar a ideia. Eu tô gravando uma coisa que é mais do rock e depois vou gravar uma coisa que é super valsinha portuguesa com bandolim… Eu tenho que centralizar o processo, centralizar as referências; geralmente faço uma playlist para ficar ouvindo, esperando [que a minha música] soe daquele jeito. Daí eu estabeleço esse foco pra realmente não ficar caótico e não perder o rumo das coisas.


Como você estrutura a ideia, criando uma narrativa que passe tudo que você está sentindo?

Geralmente eu sigo a estrutura estabelecida no jazz, que é um AABA, e às vezes acontece ter uma sessão C e D, que diferencia. Eu acabo compondo por partes, tenho várias partes soltas; às vezes gravo no microfone do celular mesmo ou só cantarolo uma ideia e, em algum momento, pra minha cabeça, essas coisas começam a fazer sentido juntas e tem algumas partes que ficam. Por exemplo: “Kiluanba” [presente em “Dos Meus Sonhos”] é uma ideia que eu tinha desde muito antes gravar “QUIPU”, mas quando eu fui gravar “QUIPU”, eu não senti que eu tinha alguma outra parte ou de alguma outra coisa que pudesse transformar nela em uma narrativa e em uma música que fizesse sentido emocionalmente. Até que passou “Passagem”, “Via Estreita” e vários meses - na verdade, quase um ano - até eu chegar no ponto de compor ela e passar para o baterista [Mateus Alabi], que em todo ensaio pedia para puxar aquele riff até chegar no ponto em que ela fizesse sentido pra mim… Foi muito tempo. Eu não tenho nada sistematizado, sabe, é mais um processo de entender o que faz sentido com o que.



Como chamar atenção de outros ouvintes, ainda mais despertar uma curiosidade em quem não conhece tanto música instrumental? É um desafio?

Eu acho que é porque a gente não tem como prever a arte ou como qualquer coisa que a gente produz vai tocar outra pessoa ou qual efeito que vai chegar no ouvinte. É sempre uma pergunta que eu me faço, principalmente quando amigos e conhecidos que eu sei que gostam de milhares de outras coisas, mas não são tão chegados a música instrumental, vem me dizer: “olha, adorei” e eu sempre pergunto o que exatamente a pessoa gostou. Percebo que na comunidade dos músicos, aqui em Maringá tem muita banda de hardcore, a galera é super integrada, não tem diferença de cena… O que chamam atenção para eles são as camadas, composição e os arranjos. Agora, para o público geral, uma pessoa que não manja de teoria - eu mesmo não sei nada de teoria - é difícil. É um mega desafio. É algo que, talvez, daqui vinte anos possa ter uma noção melhor, mas por enquanto, não sei dizer.

Também é um desafio entrar numa playlist do Spotify ou fazer com que os algoritmos entregue para outras pessoas…

Com certeza.

Como você consegue driblar?

Meu, é muito difícil. Era uma coisa que eu tava pensando essa semana: seria muito mais fácil fazer um som que fosse fácil de classificar. Tem vários artistas que passam por isso, eu tenho a sorte de ter os meninos [Jow e Guilherme, do No Corre, assessoria de imprensa] que entendem [sobre o som]. Pra falar a verdade, em relação ao algoritmo, eu sou muito, muito perdido. Preciso sentar, estudar, fazer uma planilha e planejar, porque não é algo que eu tenho afinidade.


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"Primeiramente" me chamou atenção porque ele é uma consequência dos seus projetos anteriores. O que mudou para você, dentro de você e nos processos? Acho que uma coisa que mudou pra caramba foi a compreensão em relação a como as coisas funcionam, no quesito, tanto na indústria musical, como o fazer artístico em si. Eu tinha a ilusão, durante a produção do “QUIPU” que eu faria aquilo, que eu colocaria tudo aquilo pra fora e eu me daria por satisfeito – “provavelmente eu nunca mais terei que lançar algo”. Mas a partir dele, me deu uma vontade dobrada de fazer mais coisas. Fiz “Paisagem" e "Via Estreita”... Pra eu compreender que isso é uma constância, foi muito importante, porque até “Dos Meus Sonhos”, eu tinha essa esperança de alcançar um resultado de tranquilidade – “já disse tudo que eu tinha para dizer”. Como o álbum e o registro fonográfico são diários, e eles são diários dos momentos que a gente vive, eu nunca vou ter dito tudo que tenho para dizer. É sempre uma constante. Esse aprendizado proporcionado pelo convívio com os meus amigos mais velhos que estão inseridos na música e que sempre tiveram o cuidado de me passar algumas dicas, assim como, o estudo de outras trajetórias, que é uma coisa que eu sempre gostei de fazer desde molequinho: sempre que gostava de uma banda, eu ia atrás. Coletar todas essas informações me ajudou pra caramba no sentido de amadurecer criativamente e entender melhor o que eu quero com o meu trabalho, o que dispenso completamente e onde quero chegar – e acho que isso reflete muito na produção.


É mais fácil falar ou demonstrar o que está sentindo ao fazer uma canção? Sem dúvidas escrever uma canção [risos]. É bizarramente mais fácil e às vezes, a gente fica até na dúvida se vai passar aquilo mesmo, se as pessoas têm essa impressão... Mas acho que dá pra passar, é um desafio que eu adoro. Tem uma música em “Dos Meus Sonhos” que se chama “Sendo Sincero”, ela veio de uma situação não muito boa, um sentimento meio de raiva e tal... E eu fiquei meio não sei se consegui passar isso, mas várias pessoas que ouviram me trouxeram essa reflexão.

O que você espera despertar em quem te ouve? Nossa, essa é uma pergunta muito difícil. [breve pausa] O que eu prezo é proporcionar uma experiência agradável, em primeiro lugar. Eu acho que com a música instrumental isso é muito possível, porque, não necessariamente, tem uma mensagem explícita, uma mensagem em palavras, que vai confrontar aquilo que alguém acredita... Isso é algo que eu quero muito explorar futuramente, mas com os lançamentos prévios. Com o “Primeiramente”, eu gostaria que fosse uma trilha sonora para todo momento – tenho isso pra mim quando produzo: pra saber se o álbum tá legal, ouço de bicicleta, indo para faculdade, voltando da faculdade, quando acordo, quando vou dormir... Se aquilo couber em todos os momentos e se somar naquela parte da minha rotina, tá preparado para sair. Eu quero que isso gere nas outras pessoas. As músicas que eu mais gosto são assim pra mim, vai tirar um sorrisão do rosto.


Você procura sons em todos os lugares. Como é brincar com as diversas possibilidades? Eu gosto muito de fazer isso – pra mim, fora a composição e gravar em si é a parte mais prazerosa – durante o processo. Brincar com os sons, agora remetendo a uma pergunta passada, também é uma forma de chamar atenção, sabe? Vamos super, uma música que não gosta muito de música instrumental e ouve aquele sintetizador, na verdade não é um passarinho real, é de um sintetizador, ele tem uma parte que imita vários bichos... Fui enganada... Parece, não parece? Aí eu fiquei “vai ser mó fofo colocar esse passarinho exatamente no PPM", sabe? É esse tipo de cuidado que eu gosto de ter com os detalhes. Uma coisa que eu vejo como vitória na composição, na música, é conseguir expressar a delicadeza, ser o mais sensível possível. Quando eu sinto que eu fiz uma música que não leva em consideração esse fator, geralmente, ela tá muito próxima de ser descartada. Mesmo que “Líquido” tenha aquele começo, aquele começo tem uma mensagem e ele quer dizer alguma coisa – é super livre para interpretação -, mas eu queria começar daquele jeito pra enganar o ouvinte, sabe? É o primeiro som, os primeiros segundos... “Talvez esse registro seja um pouco mais porrada” e não, não, não é [risos]. E “Voce” que é a música que fecha, acho que é a música mais sentimental, mais pessoal que tem. Tem diversos momentos mega pessoais, sensíveis e delicados... Eu gosto muito de brincar e brincar com a impressão... Hoje em dia as pessoas tem o senso de imediatismo muito forte, elas querem ouvir o single, ver o clipe, mas só pela metade, TikTok... Então, eu gosto muito de causar isso, porque uma pessoa que vai ouvir as três primeiras músicas não vai ter ouvido o álbum completo e ela provavelmente pode acabar vendo alguma coisa no stories ou um show ao vivo e ela vai ficar “caramba, eu achei que tinha entendido algo, mas eu não dei atenção correta”, sabe?

Você toca muito na delicadeza. Faço aqui uma reflexão barata e você me diz se eu tô certa ou não: durante essas delicadezas, você quer parar o ouvinte para que ele perceba as coisas ao seu redor… Eu não gosto de entregar as coisas muito fáceis. Hoje em dia, em um top 10 do Spotify, tudo que tem que acontecer na música, acontece nos primeiros quarenta segundos... Que tempo de apreciação é esse? E isso é engraçado, porque as pessoas sabem apreciar as coisas. Ela sabe apreciar um vinho, uma boa refeição e um momento com os amigos... Por que não o som do outro? Por que não a arte do colega? Não gosto de entregar nada fácil, vai ter muita repetição, muita coisa, tem que sentar, ouvir e prestar atenção, sabe?

Como é fazer música em uma geração – vamos dizer assim – em que a canção precisa ter dois minutos para emplacar no TikTok? Você sente alguma pressão ou se sente incomodado? Eu acho que eu até deveria sentir essa pressão, por uma questão de arte e mercadológica, mas eu não sinto. Eu cresci ouvindo Fugazi, Black Flag e Sonic Youth e Fugazi era uma banda que tinha uma filosofia muito forte, né? Eles não deixavam o show passar de quinze dólares, eles não gostavam de ter segurança, porque faziam o próprio combinado com a plateia, não tinham merchandising; tinham essa filosofia muito forte e foram interpretados como chatos na época, mas por outro lado, isso é muito louvável e mesmo sem tentar, isso é muito verdadeiro pra mim. Acaba que essas “obrigações” midiáticas não me afetam. Eu faço o meu rolê, solto no ar, quem curtiu, curtiu, quem não curtiu, espera o próximo [risos].


Durante a conversa, pergunto sobre a capa do EP. O músico interpreta a imagem como alguém que procura algo na vastidão do mundo. Pergunto se ele estava procurando algo, seja em "Primeiramente" ou no planeta. Sua resposta é completa e delicada: "Acho que tô procurando alguma coisa no mundo [risos]. Eu vejo como uma procura da vida". Assim como a colagem e João Castellani, mergulharemos nesse riacho de diversas interpretações para continuar vivendo.

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