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  • Foto do escritorMichele Costa

As lições de Franz Kafka

A primeira vez que ouvi o nome de Franz Kafka foi na escola, com um professor de filosofia. A aula abordava os cenários do dia a dia, revelando a fragilidade do ser humano no mundo moderno e a desumanização. Talvez tivesse alguma ligação com algum filósofo que estávamos estudando - não me recordo o tema -, mas o que me chamou atenção foi a imagem que o professor descreveu de Gregor Samsa, o protagonista de "A Metamorfose". A apresentação, bem feita e meticulosa, de um indivíduo se tornando um bicho, me fez questionar se nós não nos tornamos no inseto que o escritor descreve no livro. Curiosa, fui atrás da obra. Devorei, como se fosse uma traça - fui picada pela angústia desesperadora de Kafka.


Existem muitos motivos para gostar da literatura de Kafka, eles já foram escritos por críticos e pesquisadores, mas um item precisa ser constantemente falado: seus desesperos continuam presentes na sociedade cansada que estamos vivendo. Quem nunca acordou se sentindo tão pequeno, destruído e distante da família?


Depois de "A Metamorfose", fui para o "O Processo" - e mais uma vez, o enredo foge da literatura, tornando-se realidade. Em "O Diário íntimo de Kafka" (Nova Época Editorial), Kafka escreveu sobre o surgimento da obra: "(...) A estória saiu de mim como um nascimento real, coberta de sujeira e lixo". Levando apenas sete horas, "O Processo" surgiu em uma noite de insônia.


"Meu sentimento quando escrevo alguma coisa errada, poderia ser analisado da seguinte maneira: Diante de dois buracos no chão um homem está esperando que alguma coisa apareça pelo buraco à sua direita. Mas enquanto este buraco permanece coberto por uma tampa quase invisível, uma coisa após a outra sai do buraco da esquerda, procura provocar-lhe a atenção e acaba conseguindo seu intento sem dificuldade devido ao seu enorme tamanho, enchendo cada vez mais e por mais que o homem se esforce para impedi-lo, por fim acaba cobrindo também o buraco da direita. Mas o homem não quer abandonar o lugar, na esperança de que depois das aparências falsas alguma coisa verdadeira acabará por surgir."

Escrever era difícil e necessário para Kafka - talvez tenha sido por isso que me identifiquei com ele, pois as palavras pesam. Escrever sobre suas vivências, sentimentos, traumas e melancolia doem. Não só isso, a existência também era difícil. Definitivamente, a criação dos pais (principalmente, o medo do pai) influenciou em sua vida - "Carta Ao Pai" retrata as diferenças entre pai e filho, as mágoas de Kafka que mesmo se esforçando, não chegou às expectativas do rigoroso Hermann Kafka: "Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim".


Este é o meu livro preferido. Assim como outros escritores (Ana C., Elena Ferrante, Sylvia Plath e Virginia Woolf), Franz Kafka compartilha com o leitor o impacto de seu progenitor em sua alma. O que chama atenção é que mesmo tentando arduamente do monstro que é a figura paterna, o filho não consegue. Aliás, quem consegue se livrar dos pais? Não somos a continuidade daqueles que nos colocaram no mundo? Amamos, odiamos, lutamos, brigamos e nos dedicamos a admirá-los, mesmo com erros e traumas.


"(...) Perdi a confiança nos meus próprios atos. Tornei-me instável, indeciso. Quanto mais velho ficava, tanto maior era o material que tu podias levantar como prova da minha falta de valor, aos poucos passaste a ter, de certa maneira, razão de fato. Mais uma vez, guardo-me de afirmar que só por causa de ti me tornei assim; tu apenas reforçasse o que já existia, mas tu o reforçaste tanto justamente porque diante de mim tu eras muito poderoso e aplicaste nisso todo o teu poder."

Aprendi e continuo aprendendo com o escritor que me impactou e moldou meu caráter (e por que não o pensamento?). Kafka foi um neurótico que lutava para existir. Eu sou uma neurótica que luta para existir. Através dos exorcismos diários, nos metaformamos constantemente para lidar e sobreviver com a angústia. Para isso, escrevo, porque é através das palavras tão pesadas e significativas, que encontro uma pequena paz.


No aniversário de 139 anos do autor, faço as palavras de Heinz Politzer, um dos mais conhecidos comentaristas de Kafka, as minhas: "depois da metamorfose de Gregor Samsa, o mundo onde nos movimentamos tornou-se outro" - ainda bem.

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