O piano é um instrumento poderoso: além de libertar quem o toca, ele amplia os horizontes de quem o ouve. Inclusive, foi este instrumento que auxiliou Gustavo Bertoni a criar I Got My Eyes Fixed , seu último álbum lançado no ano passado. Como o título já diz, o disco faz uma reflexão e provocação sobre como seria o mundo a partir de uma visão autoral, diminuindo, assim, a manipulação de narrativas externas. Compondo boa parte do disco em um piano japonês dos anos 40, encontrado abandonado do depósito de um apartamento durante a pandemia, Bertoni cria uma narrativa silenciosa, porém densa. Diferente de seus álbuns anteriores - The Pilgrim (2015), Where Light Pours In (2018) e The Fine Line Between Loneliness and Solitude (2020) -, I Got My Eyes Fixed evoca uma viagem profunda no autoconhecimento, colocando em cheque a necessidade do ser humano (principalmente o músico) estar o tempo todo no protagonismo. Este debate ganhou proporção após o lançamento do docudrama PHOROPTER . O nome faz referência ao tradicional aparelho usado por oftalmologistas para testar a visão de seus pacientes. (Aliás, foi a partir de uma consulta que o músico desenvolveu o conceito do álbum.) Ao colocar os olhos no aparelho, enxergamos com facilidade (e muito melhor!) o que está em nossa frente - indo além das pequenas letras, ou seja, a cada pergunta do profissional (“Essa ou essa? Qual ficou melhor?”) torna-se um pilar do pensamento. “Brinco com a ideia da busca por enxergar a vida claramente, com os próprios olhos, com o seu grau, angulações e etc que só você é capaz de fabricar. Imagina cada um dos “tubos” que giramos no exame até ver claramente sendo pilares do pensamento: filosofia, crenças, política, autopercepção e por aí vai”, explica Gustavo. Leia também: O hiperdrama de Dani Bessa Impressões: O Perigo de Estar Lúcida Impressões: Amelia I Got My Eyes Fixed é diferente dos demais álbuns que você já lançou. Quando você percebeu que era necessário fazer essa mudança? Não usaria a palavra necessário . Foi por pura curiosidade e encantamento pelo piano, mesmo. Saudável nos permitir que em alguns discos da discografia a gente explore outros caminhos. Acho que um tempo, curto até, menos grudado no violão e no folk, foi interessante. Voltei a compor nesse campo com mais frescor. O mercado, cada vez mais, pela forma que se estruturou o consumo de música com ênfase em playlists e singles e artistas inclinados ao raciocínio publicitário de “branding”, acaba gerando um certo receio em artistas quando se trata de permear diferentes gêneros e sonoridades. Mas isso é das coisas que mais me encanta na vida como compositor e em artistas que sempre admirei. O piano e as experimentações com outros elementos resultaram em I Got My Eyes Fixed”, um disco poético e reflexivo. Durante o processo, você conseguiu compreender-se e saber onde quer chegar? Ah, acredito que a gente nunca chegue em conclusões finais. São certezas temporárias que nos servem de moldura até as próximas dúvidas e necessidades de reelaboração. Mas sim, foi numa fase em que estava muito bem, com a terapia e leitura muito em dia, em um relacionamento saudável… então creio que cheguei em percepções bacanas haha mas acho que o único concerto real-duradouro foi abrir mão da ideia de que haverá algum conserto duradouro. Tudo maré, como a primeira música fala. Vai e vem. E a gente vai aprendendo a boiar sem se afogar quando não sabe direito pra onde nadar. Novos caminhos aparecem. Em PHOROPTER você explora a dualidade entre protagonismo e não-protagonismo na música. Inclusive, as cenas apresentadas mostram essa ideia. Após anos de exposições, como você se sente indo na contramão da autopromoção dos dias de hoje? Ah cara, vou te falar que a preservação da minha integridade, saúde mental e tesão como artista se tornou cada vez mais irrevogável… Jogar um pouco do jogo é necessário e há mil formas de fazer isso sem se perder. Acho que a experiência e a idade trouxeram isso. Certamente estaria me beneficiando de “produzir conteúdo” em formatos mais atuais e de vez em quando o faço se eu tiver afim e tiver realmente algo a mostrar ou algum assunto pra compartilhar. Mas isso é um privilégio de um artista mais estabelecido. Molecada começando e tendo que se virar e se encarar como “content maker”, focando em ganchos pra pegar sua atenção, como burlar algoritmos e etc tanto quanto no próprio desenvolvimento como artista é um sintoma alarmante da era dos dados, dopamina barata e da desumanização gerada pelas mídias e do capitalismo tardio. Nossos cérebros estão muito viciados e mal acostumados. Eu tento me preservar mas direto me pego nesse fluxo frenético. Acho que acaba virando um ciclo duplo de: tempo mais off pra se perceber, compor, viver, sentir, etc… Aí tu fecha um produto e fica um pouco mais online na divulgação e shows e produção de mídia e seja lá o que for. Repete. Com tudo isso dito, tem várias coisas interessantes e democráticas também em como a coisa se estruturou on-line, é o que é e não sou a pessoa ideal pra fazer essas grandes análises, na real. Cada vez mais em paz em ser um pessimista esperançoso. O tempo-presente auxilia no tom das canções de Gustavo Bertoni: ao olhar para dentro de si com “novos olhos”, o artista respeita seus ideais e compreende seus sentimentos, sensações e visões para adicionar novas artes no mundo. Recentemente, o músico lançou "Picasso Blue", canção que apresenta traços do indie folk, a partir de um arranjo de atmosfera orgânica, composto por piano, baixo, sintetizador, kalimba, flauta e samples. “Essa música é uma volta ao folk depois de um disco mais experimental no piano. Confesso que é uma canção sobre uma obsessão pós-término. Precisei fazer uma música singela que acolhesse um sentimento relativamente patético”, revela o compositor. “No fim das contas foi gostoso abrir mão do orgulho e lembrar que como compositor nem sempre a gente precisa expressar o que há de mais maduro ou belo em nós. Essa era a verdade que eu tinha pra entregar no momento e o aprendizado é que, paradoxalmente, foi o mais nobre a se fazer”, ele comenta. A canção ganhou clipe, onde Gustavo é retratado de maneira solitária, vagando pelo mundo numa paisagem bucólica preenchida de muita natureza e cenas contemplativas, revelando-o só, porém em movimento. Agenda de Gustavo Bertoni Na próxima sexta-feira, 11 , Gustavo Bertoni estará em Belo Horizonte - MG para cantar (e celebrar) o folk com Jay Horsth. Ingressos disponíveis no site da Sympla . No dia 19, o músico estará no Filomena Studios, localizado em São Bernardo do Campo (SP). Já no dia 7 de dezembro, Bertoni levará suas canções para Londrina (PR). Para mais informações, acompanhe Gustavo no Instagram.