A história começa na capa. Em sépia, as pernas e pés estão fincados na areia, fazendo com que os grãos se espalhem por conta do peso. Não existe um rosto - você escolhe de quem é esse corpo, ele pode ser meu, seu, de um amor ou de um desconhecido. É assim, faltando algumas partes que o cantor e compositor português Valter Lobo apresenta " Primeira Parte de Um Assalto ". Os vazios (tão cheios) do cantor se derramam durante as nove canções. O artista viaja por sociedades cinzentas e automatizadas em busca de esperança. Pra quê? Para viver a realidade, transformada pela pandemia, redes sociais e tantas outras mutações que o mundo passou nesses últimos anos. Valter também compartilha seu(s) amor(es) nostálgico com o público, mostrando o grande poeta que é. Aliás, não é difícil fazer parte do mundo de Valter, pelo contrário, o ouvinte consegue se enxergar em qualquer canção (quem nunca sofreu por amor? Quem nunca sentiu frio em um inverno? Quem nunca procurou algo para se completar?) - talvez, seja esse o motivo para suas músicas fazerem sucesso nos ouvidos brasileiros. Em uma breve viagem à América do Sul, passando pelo Brasil e Argentina, o ex-advogado e agora cantor, conta (e canta) sobre sua trajetória, " Mediterrâneo ", seu segundo álbum, o primeiro EP intitulado " Inverno ", a troca de carreira, o tempo e muito mais. Leia também: A leveza de Duna Duo A poesia de Pedro Cassel A névoa e imagens de Lucas Gonçalves Você é formado em Direito e chegou a ter uma breve carreira na advocacia. O que te despertou para mudá-la para a música? Sim, é verdade. Sou licenciado em Direito, fiz a Ordem dos Advogados e trabalhei pouco tempo como advogado. É a minha formação acadêmica e que me deu uma bagagem muito importante, contudo, acho que nunca tive o sonho de ter uma carreira nesse mundo. Não me realizava ou apaixonava. Um dia desisti, decidi começar a gravar as minhas canções e ver como poderiam funcionar, de forma despretensiosa, apenas para me cumprir, sentir que estava a criar e a expressar-me de uma maneira identitária. As coisas foram evoluindo e fui conquistando um espaço na imensidão que é a criação musical. Nunca pensei estar a tocar para pessoas que me ouvem no Brasil e outros países. Analisando agora, acho que foi uma boa escolha. Em 2013, você lançou o seu primeiro álbum, "Inverno". Em nove anos, outros dois discos surgiram. Quais foram as mudanças que você e o seu processo criativo passaram durante esse tempo? Considero que os trabalhos que editei são registros pessoais de um determinado tempo. Cada um teve o seu momento particular e estes são retratados nas letras e sonoridades. O "Inverno" foi numa fase mais confusa e conturbada, com algumas dificuldades e confusão nas prioridades, daí o frio e algum isolamento. O "Mediterrâneo" já retrata uma fase de deslocação para um clima mais ameno, uma vontade de me ligar às pessoas, e uma forma descomprometida de seguir os caminhos normais. Queria apaixonar-me todos os dias por algo novo. Já o "Primeira Parte de Um Assalto", é uma construção de um pensamento mais maduro, de reflexão sobre esperança, vontades platônicas, paixões e desencantos com o mundo atual. Como disse, o processo criativo vem de dentro, do que sinto e como me coloco perante a realidade. "A Primeira Parte de Um Assalto" é o seu último lançamento. O nome é curioso, já que a palavra assalto nos remete a violência, mas o disco traz um ataque repentino aos sentimentos. A pandemia te influenciou a trazer e despertar esses sentimentos que estavam adormecidos? O assalto a que me refiro é algo planeado, feito de forma limpa e ordenada a algo instituído. Nada a ver com violência física, apenas na forma como somos por vezes assoberbados por uma série de sentimentos ou emoções. É uma organização das prioridades do sentir. Do ser e do estar. Do refletirmos sobre o bem e mal que nos rodeiam mas também com mensagens de esperança. De alguma forma a situação pandêmica influenciou-me pois tivemos mais tempo para meditar sobre tudo isto mas já trago comigo estes pensamentos há muito tempo. Em "O que o sol guardou", você canta: "enquanto houver uma luz / não deixo que mate o meu sonho". Questiono: como manter o sonho vivo? Tudo depende daquilo com que sonhamos. Mas diria que a arte e a cultura em geral são as peças fundamentais para esse objetivo. É preciso muita força física e psicológica para nos mantermos firmes e alcançarmos um patamar superior na nossa vida, referindo-me também aqui ao panorama social mundial. A arte através das suas variantes de comunicação, educação e entretenimento pode ajudar a veicular as mensagens certas e a suportar o caminho que às vezes parece longo. A canção "O governo não sabe nada sobre o amor" está no seu álbum "Mediterrâneo", lançado em 2016. Algumas questões políticas foram alteradas, outras nem tanto. Hoje, o governo já está preparado para ouvir sobre o amor? Atravessamos tempos conturbados e acho que a maior parte dos governos não está preparada para cultivar esse amor. Falta sensibilidade, abertura, bom senso e uma ética superior. Contudo, enquanto houver uma luz não deixaremos que matem o sonho. É a sua primeira vinda ao Brasil, o que podemos esperar dos seus shows? Sim, é a minha primeira vinda e só posso sentir uma ansiedade boa por partilhar as minhas canções e a minha presença com o público brasileiro. Cada concerto é único e considero-os encontros onde haverá música, poesia mas também uma ligação intensa entre quem está no palco e a audiência. Vai haver romance. Amanhã, 20 de agosto, Valter Lobo se apresenta no Teatro Solar de Botafogo, no Rio de Janeiro. Compre o seu ingresso aqui e viaje ao lado do cantor poeta.