"Esse disco não é só sobre mim", me diz Gabriel Franco ao falar sobre Metrô Hi-Fi , seu terceiro álbum. Assinando como Abril Belga, o músico carioca desenvolveu um disco de indie rock com letras bem-humoradas sobre a crise dos 30 anos, mas sem se levar tão a sério. Com sua guitarra, aborda temas como influência digital, monogamia, a decadente classe média e a digitalização da vida. "Não tentei fazer nada muito conceitual, acima de tudo quis me divertir no processo de compor e ter algo simples e honesto - a intenção era fazer uma coisa divertida, com foco na ironia das letras", conta. Após a compreensão do conceito "eu" em 99 (2018), Abril Belga iniciou o processo de trabalhar com outras pessoas, fazendo com que o "eu" torna-se "nós" - se em 99 ele fez todos os processos sozinhos, em Sol de Mel (2022) o artista se juntou com o trompetista português João Sousa e o designer estadunidense Glenn Robinson para abordar as ações do cotidiano. No último projeto recém-lançado, o carioca está rodeado de amigos, compartilhando as oscilações da vida. Leia também: O silêncio ruidoso de Meu Nome Não É Portugas Impressões: Pavements Impressões: Assombrações Você está há muito tempo se apresentando como Abril Belga. Nesse quesito, conseguimos conhecer um pouco do Gabriel a partir do seu projeto ou são duas pessoas totalmente diferentes? Depende, eu acho… Como é que posso explicar? Por exemplo, nesse álbum de agora nem tudo é autobiográfico, aliás, a maioria das coisas não são autobiográficas. Então, talvez dê pra separar sim, um pouco, mas se você for ver lá desde quando começou o projeto, o Abril Belga mesmo, em 2017, quando as bandas [que toquei] foram acabando, eu comecei com esse nome e o primeiro álbum, que é um álbum que eu nem coloco ele no Spotify, que eu achei muito pessoal e até meio… Gravei todos os instrumentos e aí eu mixei, masterizei tudo sozinho, fiz aquele processo todo sozinho, ficou com alguns erros de edição, não sei o que tal, coisa mais artesanal, né? E eu não coloco ele no Spotify. Mas é engraçado, porque aí nesse primeiro disco dá pra você falar que sim, porque é um álbum muito pessoal, então. Mas nos outros eu acho que… Não sei se mistura tanto exatamente, entende? Por que no primeiro momento você se expôs tanto? 99 é um álbum extremamente pessoal, que traz muitas coisas, muitas vivências de infância e aí depois você quis ir contra, parar de focar no pessoal, trabalhando com outras personas. Foi uma necessidade que você sentiu? É engraçado, não sei, eu não costumo pensar muito nisso… Eu acho que é muito do momento ali que tá acontecendo, que tá sendo relevante, no momento da minha vida, o que falar, sobre o que escrever, né, sobre o que compor e tal, eu acho que que tipo… É engraçado, porque já tem tanto tempo do primeiro álbum que eu já até esqueço, já esqueci quais foram os motivos que me levaram a ser tão pessoal e… Não sei exatamente, mas é engraçado mesmo, talvez nesse disco de agora, o novo, eu acho que eu tentei sair um pouco de mim e tentei ir mais pros meus, meu círculo social, meus amigos e minhas amigas, talvez fazer música mais para o novo, talvez deixar… Até porque nesses primeiros dois álbuns [99 e Sol de Mel] ali, né, principalmente o primeiro, eu toquei todos os instrumentos, essa história toda, e agora eu toquei de novo com uma banda de novo, né, foram duas pessoas que gravaram comigo e tal, eu também quis tentar sair um pouco de mim, ir mais pro mundo, talvez meu psicólogo fale isso. Eu acho que é um momento de sair um pouco do eu. Você sai do eu, vai para o nós. Você acha que foi uma consequência da pandemia que te levou a trabalhar com outras pessoas, mesmo à distância? Na pandemia, eu lembro que eu comecei a fazer Sol de Mel também aqui em casa, tipo nesse quarto que eu tô aqui - a configuração era um pouco diferente, tinha uma bateria eletrônica e tal que ligava no computador. Mas eu busquei também porque a ideia era fazer algo mais ou menos parecido com o primeiro também, ainda meio fechadinho na caverna, mas aí chegou um momento que encheu o saco e eu resolvi chamar o Pedro [Tambellini, responsável pela mixação e masterização de Metrô Hi-Fi] . Cansei e falei: “não tô evoluindo nisso aqui em termos de mixagem.” O Pedro resolveu tudo pra mim, foi muito boa a participação dele também. Claro também que teve outras coisas, né, nesse [disco] de 2022 teve [a participação] de um cara que eu conheci também na internet, né, que gravou trompete, teve alguém que fez a capa… Então não foi só essa coisa de artista se autoproduzindo completamente, que é muito chato, muito chato fazer tudo sozinho. É muito chato mesmo? Ah, é. Eu fiquei cansado de fazer tudo sozinho, entendeu? Eu aconselharia a qualquer pessoa, assim, é legal se autoproduzir, mas eu aconselharia… Pelo menos coloca outra pessoa para mixar, colocar outra pessoa para fazer algumas outras e deixar o orgulho de lado também, porque tem pouco essa parte, porque você pode aprender uma coisa nova também, e a outra pessoa, pode trazer sempre novas ideias, outras coisas diferentes. Estamos falando aqui de várias pessoas o que me fez lembrar a música "Bicicleta de Rodinhas", do 99 . No final das contas você não precisou ter um irmão pra conversar, porque você teve outras pessoas durante o processo da música, né? Te pergunto: ao trabalhar com outras pessoas e cantar, aliviou a necessidade do diálogo? Sim, outra coisa ótima também é que eu aprendi a andar de bicicleta, finalmente! Essa música sim é pessoal, tem essa coisa biográfica. Aprendi a andar de bicicleta no final de 2022. Eu arrumei uma professora que me ensinou, fiz duas ou três aulas com ela… Que maravilha! Que maravilha! É, pois é, tipo, quase 30 anos, assim, tipo, 28, não sei. E foi bom? Tá andando ainda? Pô, ando muito, cara. Parece que é uma coisa, assim, que eu conquistei, sabe? Tipo, porque as pessoas, elas aprendem a andar de bicicleta com seis anos, mais ou menos, né? Cinco, seis anos, né? Eu acho que o 99 tem aquela coisa de separação dos pais e eu acho que foi naquele momento ali que eu não aprendi a andar de bicicleta… Agora é uma coisa que eu conquistei, uma coisa minha. Agora eu vou pra todo canto de bicicleta. Ainda falando sobre 99 , em "Primeiro de Janeiro" você diz que segue sonhando acordado e pensando no passado. E hoje em dia, você continua assim? Acho que depende, mas eu acho que menos, bem menos. Estou olhando mais pro futuro. Essa música, meu Deus, eu não consigo nem escutar essa música. Eu acho ela muito triste. Eu não consigo nem ouvir essa música. Eu acho ela muito triste. "Apesar das composições serem minhas também, a gente teve muita colaboração ali em termos de arranjo, de produção e tudo mais, né, do Pedro Tambellini que que produziu e ele tocou baixo, ele tem uma participação muito grande no disco, sonoramente falando. E também do baterista, o Pedro Richaid. Saiu de ser só ideias minhas e foi uma coisa que, um pouco mais colaborativa, né, apesar de ainda ser um projeto solo, no caso." Metrô Hi-Fi foi construído a partir de um incidente: a ponte do violão de Gabriel, que manuseia o instrumento desde a infância, quebrou; desde então o músico compõe tocando com suas guitarras, fazendo com o que o álbum seja completamente diferente dos lançamentos anteriores. As letras adaptam o bom-humor e a angústia das composições das bandas antigas nas quais Gabriel tocou quando mais novo, iluminando um caminho já percorrido para chegar em algo novo. "Como boa parte das pessoas da minha idade, eu sinto que falhei em diversos aspectos. Mas o que esse álbum tenta propor é que, de repente, por 32 minutos, a gente não deva levar isso tão à cabo e apenas curtir, com velhos amigos e canções divertidas. E é isso que convido vocês a fazer", comenta Gabriel, revelando também que “detestava o trabalho corporativo em escritório de advocacia e quis fazer algo leve pra balancear, sem a cobrança de ser exatamente maduro musicalmente, mas tratar dos temas que permeiam esse período da vida com algum bom humor”. Se não tivesse esse incidente com o seu violão, você acha que você seguiria o mesmo processo de criação de sempre, ou seja, seria um disco baseado no violão? Não sei, eu acho que poderia ser. Eu acho que são duas coisas: a primeira é o violão e a segunda era a necessidade de parar de tocar sozinho. Você vai chegando numa idade, você vai ficando um pouco nostálgico e isso trouxe uma nostalgia da época que eu participava das bandas e aí eu resolvi recapitular isso. A nostalgia é um sentimento que pode soar muito perigoso, né? Porque você pode se afundar naquela memória, naquela saudade. Ao sentir essa necessidade, você acha que expandiu seus conhecimentos? Eu acho que durante esse tempo, tocando outro instrumento, no caso o violão e talvez um teclado, explorando sons aqui, no quarto, trouxe muito aprendizado, até para eu poder voltar e fazer esse álbum de agora que é mais de guitarra. Eu acho que ter dado essa volta ali foi crucial porque, em termos de composição, de saber o que colocar em cada lugar, o que é importante e o que não, dentro desse tipo de música de guitarra, sabe? Eu acho que, às vezes, entra um sintetizador ali, também, entra alguns outros arranjos… Eu acho que eu ter descoberto esses arranjos foram importantes ali para poder colocar nesse disco de agora, mas o papel também não é só meu, né, o Pedro teve muito papel aqui neste álbum também. Você compunha com violão por muito tempo, tem toda uma história. O que ele significava pra você e como foi mudar a rota e tocar outro instrumento? Como você se sentiu? Ah, foi bem engraçado. Eu tava num dia aqui no quarto, o violão ficava aqui [aponta com o dedo] onde tava escuro e tal, e aí eu acho que teve uma mudança de temperatura que a ponte do violão simplesmente quebrou. Eu até ouvi o barulho e fiquei “o que aconteceu?”. Aí olhei que o violão tinha quebrado, o violão que eu tocava o tempo inteiro, o dia inteiro - o que eu faço? Eu fiquei meio “nossa, eu não sei o que fazer”, porque era diferente, né? No violão, eu compunha sem palheta. Toco há muitos anos no dedo, só pego a palheta para gravar as guitarras que estão nos outros discos. Eu tava com preguiça de levar o violão para consertar e peguei a guitarra e voltei com a palheta, acorde com pestana… E lembrei que é muito diferente de compor dessa forma, sai muito diferente. Então foi, deu pra dar uma volta, então, né? Deu pra dar uma solucionada. Não te causou alguma estranheza ou coisa do tipo? Não, porque, tipo, eu sempre gostei muito de música de guitarra, né? E antes eu compunha com guitarra, mas na época das bandas, né? As bandas eram Cachorro Neon, Amsteradio e Anafrão. Eram três bandas que eu tocava guitarra e às vezes compunha. Então não foi tão esquisito voltar pra um lugar que eu já conhecia, mas que eu tinha esquecido de que ele era bonito também, entendeu? Tipo, quando você… Tem uma música desse disco que eu falo uma coisa parecida, quando você está morando no mesmo tempo, na mesma cidade, no mesmo lugar, ali, você sempre vê, você cruza sempre pelo mesmo caminho, né? Você sempre vê as mesmas coisas e de repente, algo te soa interessante. Eu moro aqui no Rio, em Copacabana, a vida inteira e se eu saísse, fosse pra outro lugar, pra outra cidade, morasse em outra cidade e depois voltasse pra cá, de repente eu ia ver coisas bonitas aqui que eu não vejo estando aqui caminhando todo dia, sabe, aqui neste bairro, nesta cidade. Foi a mesma coisa com a guitarra, acho que só voltei pra guitarra e descobri que tem coisas muito legais ali na guitarra também, entendeu? Na guitarra como fonte principal de composição, né? Tipo, coisa central ali, não só como acessório. E você pretende usá-lo, usar a guitarra também nas próximas composições ou você vai esperar? Acho que só o futuro dirá, mas eu percebi que eu tô com mais vontade de tocar guitarra agora. Mas eu tô achando que o próximo vai ser de guitarra também. Tem uma coisa muito comum nos seus álbuns que eles sempre trabalham o tempo, então no primeiro você trabalha a infância, no segundo você traz ações do cotidiano e no terceiro você traz muito a crise dos 30. O que o tempo significa pra você? E como é que é olhar para o tempo do passado até agora? A relação é complicada com o tempo, eu acho que eu penso bastante nisso, eu penso muito no tempo. Eu nunca tinha notado isso [a relação do tempo nos álbuns] , legal que você falou isso. Eu acho que no primeiro a relação é complicada com o tempo, porque eu tô sempre pensando um pouco no passado, eu esqueci de desapegar do passado, acho que é uma coisa muito comum da minha personalidade. Vai modificando muito, sim. Essa pergunta foi muito legal, foi tão boa que eu não sei responder direito. Foram muitas mudanças nessa trajetória de três discos… Começou muito na questão do eu, e aí depois… Não sei nem dizer sobre o que é exatamente o segundo disco, são muitas coisas… Acho que também tem uma coisa muito digital, da pandemia, sei lá, meio tá cansado do digital… Mas agora acho que é mais para o pós-pandemia, saiu da pandemia, estamos com trinta anos na cara, não sei o que e tal… E também voltei a falar outras pessoas, voltei mais pro mundo, saí do eu, o temo é outro… É tempo de falar da gente e menos de mim, apesar de ter algumas coisas pessoais. "É essa história: pegar o metrô, ir para o trabalho e quando você olha para o Instagram tem pessoas que dizem como eu devo viver minha vida. De repente eu não quero ouvir essas pessoas - acho que tem gente que se sente assim também, é legal dialogar com eles." Em "Mister J.J", música presente no segundo álbum, você diz que o mundo parecia cinza e fosco por aqui. E hoje em dia, ele continua assim? No pós-pandemia eu acho que melhorou um pouco, mas depende da ótica que você olha. O meu exercício diário é sempre tentar olhar ele mais cheio do que vazio, né, até porque a tendência é outra, olhar ao contrário. Ficha técnica de Metrô Hi-Fi, de Abril Belga Ficha técnica: Gabriel Franco - composições (exceto faixa 6 por Gabriel Franco e Pedro Tambellini), letras, guitarras, vocal principal e teclados. Pedro Tambellini - Baixo, vocais de apoio, mixagem e masterização. Pedro Richaid - Bateria e percussão. Bateria e baixo gravados no Estúdio Casa do Mato. Guitarras gravadas entre o Estúdio Casa do Mato e o home estúdio do Gabriel Franco. Vocais principais gravados no home estúdio do Gabriel Franco. Vocais de apoio gravados no home estúdio do Pedro Tambellini. Faixas 8 e 11 gravadas no home estúdio do Pedro Tambellini. Produzido por Pedro Tambellini. Técnico de som da gravação no Estúdio Casa do Mato - Rafael Sentoma. Arte da capa por Mike Zimmerman .