J. P. Cuenca me lembra um ex namorado que tive. Ambos escrevem, pensam em morte constantemente e dizem que escrever é doloroso (essa última questão, concordo). Tentei fazer uma breve lista de prós e contra visando as características dos dois homens, mas desisti - principalmente porque as listas não funcionam pra mim. No entanto, Cuenca é mais divertido, talvez ele tivesse ganhado. Através de um humor ácido, Cuenca retrata o seu não falecimento em 2008 em " Descobri que Estava Morto " (TusQuets, 2016). Após jogar lixo, pela janela, em um grupo de funcionários de um restaurante, o escritor é fichado pelo crime de "Ameaça e Arremesso ou Colocação Perigosa, sob o Registro de Ocorrência n° 014-03595/2011". A partir do seu crime descobre, três anos depois, que um homem foi enterrado com o seu nome, com sua identidade. Ele relata o choque já no primeiro parágrafo: "Descobri que estava morto enquanto tentava escrever um livro. Ainda não era este livro". Tenho pensado muito sobre a morte nos últimos tempos. Quem não está?! Não podemos mais fazer planos para os próximos dias ou sonhar com um show de um artista que gostamos. A vida foi alterada do dia para noite - e não há luz no fim do túnel com os milicianos no poder. Então, imagino como eu reagiria ao saber que alguém usou meu nome, minha identidade, para morrer. Minha vida também acabou? Eu iria atrás de respostas como Cuenca fez? Faria alguma crítica? O que você faria? "(...) - As pessoas costumam roubar a identidade das outras pra fugir. Pra tentar outra vida. É bem comum malandro tomar a identidade de um morto pra viver com o nome dele. Mas isso aí…" Leia também: Desalinhando Andrei Tarkovsky: o cineasta da vida Impressões: Carnage China continua resistindo em dias mortos "Descobri que Estava Morto" vai muito além da descoberta do escritor. A morte retrata diversas questões: a identidade de Cuenca, a fragilidade do Rio de Janeiro dividido pela desigualdade social e está quase morto, o desequilíbrio emocional e da criação literária. Colapso leva ao desequilíbrio que leva à morte . Fim. Fecham as cortinas. "- Então você morreu, mesmo.
- Morri.
- Puta merda, João, que maravilha!
- Você acha engraçado?
- Engraçado, não. É que para um escritor é sempre bom morrer." No decorrer da leitura é possível lembrar " O Jogo da Amarelinha ", de Julio Cortázar . Assim como a obra do escritor argentino, Cueca cria um verdadeiro quebra-cabeças narrativos, onde o leitor é livre (se quiser, se puder) para desvendar. No entanto, ao aceitar o desafio de compreender a morte do escritor, nos questionamos - J.P está falando sobre ele, o outro ou nós? É impossível não se enxergar no enredo que o autor escreve. "(...) Sentia falta não de casa, mas de tudo o que ia deixando para trás, como se algo meu se desfizesse pelo caminho. A essa saudade ao contrário da terra natal os alemães chamavam de Fernweh . A velha máxima de Baudelaire, “parece que sempre serei feliz onde não estou”, para mim valia apenas enquanto estava no Rio de Janeiro.” Outro ponto interessante da obra é quando percebemos que Cuenca usa a sua não-morte para expor com sinceridade e sem vergonha o círculo de amigos e suas festas. Entre artistas, jornalistas, intelectuais, publicitários e "poderosos", o semi-morto compartilha com o leitor as festas regada a drogas, bebidas e sexo, ao lado do morro em que a policia atira para matar a população pobre, negra, invisível do Rio de Janeiro. Além disso, também critica a imprensa que publica apenas aquilo que tem interesse. "(...) João Paulo Vieira Machado de Cuenca: aquelas seis palavras eram veneno para os meus ouvidos, e um lado meu sorria ao vê-las ligadas a um morto. Talvez aquilo significasse que eu, enfim, poderia enterrar aquele nome e começar a usar outro." É interessante como J. P. Cuenca usa a descoberta de sua morte para criar uma história sobre o seu desespero, mas que também é nosso, porque somos humanos carregando uma multidão dentro de nós. No decorrer das três partes do livro, o autor encontra também sua redenção, pois o que não falou em vida, disse após morrer.