Já escreveram muito sobre Elena Ferrante : dos seus livros a estrutura narrativa, de suas personagens destemidas ao papel das mulheres na literatura; no entanto, me parece que ninguém falou sobre o ápice - aquele momento em que finalizamos a leitura de sua obra e ficamos destroçados, perdidos. Por que sua identidade ganha mais espaço do que o pós-Ferrante? Elena Ferrante é cruel. Em " Frantumaglia: Os Caminhos de Uma Escritora " (Intrínseca, 2017) Elena, em resposta às perguntas de Stefania Scateni, diz que consegue separar a realidade da escrita ("Sempre tive a tendência de separar a vida cotidiana da escrita"), mas acho que é um blefe: a escritora descreve mulheres reais que se perdem, mentem, querem serem amadas, são abandonadas e lutam diariamente para não serem iguais as suas mães. Realidade e ficção se misturam, machucando aqueles que entram no mundo da escritora. Assim como a peça de teatro de Edward Albre ["Quem Tem Medo de Virginia Woolf?"], Ferrante cria enredos psicológicos extremamente pesados, criando um jogo cruel entre personagens e leitores. É impossível sair ileso do seu enredo. Eu tenho medo de Elena Ferrante, mas continuo seguindo-a porque, de uma maneira estranha e inexplicável, preciso saber quais serão seus próximos passos e como suas protagonistas pretendem fugir dos demônios do passado - no fundo, eu também estou procurando um caminho para fugir. Publicado originalmente em 2006, " A Filha Perdida " (Intrínseca, 2016) dá vida aos sentimentos conflitantes de Leda, uma professora universitária que está de férias no litoral sul da Itália e que, de longe, acompanha uma família grande e barulhenta que também está passando férias. Sua atenção é focada em Nina, uma mãe jovem que aparentemente se sente confortável em ser mãe - a jovem ainda não sentiu o peso da maternidade e a infelicidade de amar e odiar sua filha. Durante a história, acompanhamos Leda vigiando a família e lembrando de seu passado, aquele em que, em muitas vezes, abriu mão de sua vida pelas duas filhas, Bianca e Martha. A professora foi mãe cedo, seus estudos e trabalho ficaram em segundo plano, enquanto via o pai das crianças seguindo com sua vida. Por que acontece as diferenças? Afinal, os dois colocaram as meninas no mundo juntos; o peso da mulher é imenso. Se no livro já sentimos a angústia e o peso da culpa da protagonista, no filme, que leva o título do livro, a interpretação de Olivia Colman intensifica ainda mais - seus olhos, seus gestos e seu desespero são bem feitos. Não existe nenhum defeito. Leia também: Desalinhando Sylvia Plath: a escritora imortal Impressões: Vermelho Amargo Os pedaços de Edith Elek Não é preciso ir muito longe (da leitura ou do filme) para descobrir que o título não se prende apenas em uma filha - mães e filhas se tornam uma única pessoa assustada, perdida em um mundo que não a ouve e nem a acolhe de maneira correta. Como aceitar e consequentemente dar voz para algo que não é possível falar? Como escreve Ferrante no livro: "As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender". Ao acompanhar a família, Leda repara que a filha de Nina, Elena, carrega uma boneca o tempo todo com ela. A menina diz que ela é sua filha e interpreta os modos de sua mãe com seu objeto de transferência - a vida é assim mesmo?! Carregar um bebê no ventre por meses para, mais tarde, quando tiver um pouco de liberdade, imitarem seus gestos? O cordão umbilical não se rompe nunca? E mais: por que o peso fica todo com a progenitora? Ao ver a boneca, Leda relembra a vez que Bianca se perdeu na praia ou quando queria ter prazer mas ninguém estava ao seu lado, o caso extraconjugal e a necessidade de fuga para se reencontrar de novo. Passado e presente se misturam; levando Leda a roubar a preciosidade de Elena. Ao conviver com a boneca e ver o desespero da família ao ver a criança chorando e pedindo pelo seu brinquedo, Leda mergulha cada vez mais no seu passado, buscando respostas para sua angústia que nunca fora explicada e nem sentida pelo sexo masculino. Ao limpar a boneca para deixá-la perfeita, é possível ver que a protagonista "entende" a complexidade da maternidade e que ao fugir de sua família, anos atrás, foi necessário, porque ela não queria que sua vida acabasse. Leda quer viver e ser inteira com ou sem filhas. Livro e filme são diferentes, mas ambos dão força ao mergulho complexo que a maternidade é. Lançado no último dia de 2021 pela Netflix, o filme de Maggie Gyllenhaal (que faz sua estreia como diretora) é genial, bem estruturado e com uma belíssima fotografia, mostrando que a crueldade de Elena Ferrante é necessária para mergulharmos em nós mesmos. Deixe que as garras da escritora afunde sua pele até chegar nos ossos, deixe sangrar, porque é dessa maneira que lembramos que estamos vivos e que a vida é uma crueldade, mas tem momentos que valem a pena viver.