Existe uma teoria (totalmente falha!) que diz que o indivíduo suporta tudo que acontece com ele. Se ainda não consegue, um dia aprende. Nos últimos anos, o ser humano perdeu o seu valor, tornando-se um robô que deve fazer aquilo que a sociedade capitalista impôs e espera dele. Ainda bem que existe a arte para mostrar que não devemos aceitar esse "modelo", que o ser humano é belo, um universo, como diz o músico paraense Luri . Inclusive, o cantor faz um desabafo (melhor, desabafa em uma canção) sobre os dias ruins que parecem não ter fim. Uma carta aberta para todos, pois sabe que nesse período os sentimentos e sensações podem chegar ao limite. " Carta Aberta ", novo single do cantor, que estreou nesta quinta-feira, compartilha a faceta frágil, bonita e verdadeira de Luri, mostrando o processo de autoconhecimento e de desenvolvimento estético que está passando durante o isolamento social, crise sanitária e econômica. "É uma espécie de desabafo que muitas vezes a gente não tem coragem de colocar pra fora quando está nos dias ruins. Ela fala sobre ver o discurso vigente sobre quem ser, como agir e os conselhos que as pessoas dão, e não conseguir fazer aquilo, nem atender a essas expectativas, por mais que se tente. E também fala sobre como as válvulas de escape da nossa cultura também acabam não preenchendo esse vazio", explica. Residente em Vitória (ES), Luri começou a ter contato com a música na infância, mas foi na adolescência, após ir ao show do Shaman , que o cantor se conectou com a música: "Eu vi aquilo e fiquei encantado com a troca, a atmosfera de um show, como a coisa toda pode ser intensa e gerar tanta felicidade simultaneamente. Então, montei uma banda de rock e essa foi a minha primeira tentativa de algo mais sério, mas eu acabei me mudando para São Paulo, comecei a trabalhar em comunicação e desisti do sonho por um tempo", diz. Luri não ficou muito tempo sem aquilo que pulsava suas veias, voltou rapidamente: "Sempre que eu ia num show daquela sensação de que algo estava faltando na minha vida", finaliza. Luri trocou o metal por um ritmo mais adocicado, uma mistura de lo-fi hip hop e folk. O resultado combina perfeitamente com um pedacinho da letra de "Carta Aberta": "Houve um tempo em que / Eu podia me afogar em diversão / Mas não adianta mais". Leia também: Desalinhando Kurt Cobain: do pequeno artista ao cantor depressivo A alma nua de Ana Carol As pedras de Morris Seu single "Carta Aberta" foi feito a partir de um processo de amadurecimento. Como foi encarar essa transformação em ti? Alias, esse processo foi feito durante a pandemia ou antes? A semente disso vem de antes, mas a pandemia intensificou. Eu tenho passado por mudanças internas muito intensas desde quando produzi meu último EP, “Ao Pôr do Sol”, que era um apanhado de releituras de bregas clássicos paraenses em uma linguagem mais folk rock. Eu tive um burnout em 2018, durante a divulgação desse EP, e a solução que vi foi começar a transformar tudo dentro e fora. Entrei num processo terapêutico bem intenso, de olhar pras dores que me afligiam, incluindo aquilo que a gente não quer muito ver. As lembranças, os traumas, as desculpas que eu me dava para não perseguir de fato aquilo que eu queria, dar nome às coisas que eu tinha e sentia… Foi e tem sido um processo de destruir as camadas desnecessárias e ir vendo o que sobra. Eu mudei de cidade, mudei de nome artístico, mudei a estética do meu trabalho… Tudo isso são reflexos e causadores de mudanças. A pandemia, claro, também foi um catalisador. Tive outro burnout em 2020 e todo esse processo de transformação foi ficando mais potente, especialmente porque veio junto com a determinação de produzir o álbum. Acordar todos os dias, ver um caos e um descaso tão grandes por parte do governo, ver as pessoas que nem sequer podem se dar ao luxo de se isolar e tantas outras sem se importar com as medidas sanitárias… É muito de uma vez pra se lidar e a obra, pesar de não ser sobre isso, acaba sendo afetada. É fácil se identificar com a letra da canção. Como foi o processo de criá-la? Você já pensava em mostrar esse lado ou surgiu naturalmente? Foi natural, na verdade… Eu encontrei a semente dessa música quando estava reunindo repertório pro álbum. Ela estava no meio de umas demos que eu queria ter produzido uns anos atrás, mas que não saíram no papel e era bem diferente. Eu tinha feito uma coisa meio Bob Dylan, folk country, mas ouvindo a melodia e associando com minhas referências sonoras de agora, acabou ficando num tempo mais lento, um som mais introspectivo, mais espacial e cheio de synths. A letra mudou quase toda nessa nova olhada, criei um novo refrão e o segundo verso também virou o que tem agora. Foi legal que eu não lembrava que tinha feito ela e, quando a encontrei, achei que era um sentimento tão forte… Especialmente a linha "quando o seu melhor é bem ruim". Quem nunca se viu dando o máximo e sentindo que nunca é o suficiente?! Qual o significado da música para você? Inclusive, escrever sobre seus sentimentos e o tempo é mais fácil para você ou em algum momento é doloroso? Sim, mexe com umas coisas fortes e às vezes dói. Eu costumo ter vergonha das músicas que são mais cruas, porque é como se eu estivesse dizendo pro mundo algo que eu, no fundo, tenho medo de revelar por medo de ficar indefeso. Mas, ao mesmo tempo, é um alívio tirar isso da cabeça e colocar em algo externo, como se de repente desse pra materializar um fantasma que estava te envolvendo e corroendo a sua pele, mas que quando você olha, pode ser bonito e virar seu amigo. Eu acho que a música é sobre a sensação de se ver inundado pelo mundo, por tudo o que a gente supostamente tem que fazer ao mesmo tempo. A gente tem que ter sucesso, tem que postar nas redes sociais, tem que trabalhar muito, tem que ganhar dinheiro, ir em todos os restaurantes e bares e baladinhas, tem que socializar, ter vários amigos, uma casa arrumada e bem decorada, se alimentar direito, fazer exercícios, transar, ter um relacionamento… E tem que ser ótimo em tudo isso. Eu canso só de pensar. Meu movimento padrão é o oposto disso… Tendo a querer ficar quieto, gosto de uma rotina vazia, de espaço. E parece que não tem lugar pra isso, tudo e todos estão sempre dizendo pra você levantar, encarar, ser forte. Mas e aí, o que você faz quando não é assim? Então, tem essa contradição… Você quer ficar em paz, no silêncio, mas ao mesmo tempo que dar conta do turbilhão. Acho que o sentimento da música é meio esse. Luri é observador: suas inspirações começam através do que está ao seu redor, das pessoas que interagem com ele e o mundo em que vive. Depois chegam os artistas que estão no repeat de sua playlist, como é o caso de Phill Veras, O Terno, Tim Bernardes, Tagua Tagua, Terno Rei, Erasmo Carlos, Milton Nascimento e os sambistas Jorge Aragão, Bezerra da Silva e Cartola. Você tem um processo de criação para escrita e melodia?
Admiro muito escritores e pintores. Eu acho a abordagem deles pro processo artístico lindo demais. Em geral, são caras meio solitários que sentam e trabalham, que levam o que fazem muito a sério, sabem falar muito bem sobre isso… Meu sonho é um dia ser mais assim. Tento levar pro meu processo isso, da disciplina, do estudo, da seriedade com o trabalho.
Pra mim, o processo é sempre desse jeito, bem cuidadoso e deliberado.
Eu sinto uma ideia chegando no fundo da mente e vou atrás. Acho bem interessante como as melodias e ideias já vêm com algumas palavras junto. É quase como se a gente estivesse tentando ouvir alguém que está falando muito baixinho e precisasse pedir pra pessoa repetir mais e mais até você entender a frase inteira.
Eu sou bem assim… Tenho que olhar várias e várias vezes, mudar uma notinha, mudar uma palavra, tirar coisas que lá no fundo soam esquisitas pra mim e também entender os porquês de tudo. Pra mim, é lento.
E aí, tem toda a transformação que vai acontecendo. Entender esses processos demanda olhar pros mecanismos e gatilhos desencadeados em cada decisão. No final, costuma ter uma canção lá. Ou não. A cultura é um setor que nunca recebeu a atenção necessária do governo e com a pandemia, isso piorou. Queria saber de ti, quais são as dificuldades de fazer música nos dias atuais, onde um governo é a favor do desmanche e o artista independente precisa sempre se inovar para sobreviver.
São muitas, infelizmente. A pandemia tornou o que já era complicado em uma missão praticamente impossível. Querendo ou não, na cultura do nosso país, a ação do governo é fundamental enquanto um fomentador. Sem a possibilidade dos editais, por exemplo, fica bem complicado pra artistas com baixo alcance conseguirem financiar projetos que, por mais simples que sejam, acabam sendo bem caros de se tirar do papel.
Além disso, o mercado em si já é bastante competitivo, tanto que quase não vemos mais pipocando por aí materiais "caseiros". A produção pode até ter sido feita em um home-studio, quase sem grana, mas se você colocar lado a lado com gente que tem acesso a produções enormes, dá pra ver como o pessoal tira leite de pedra. O nível é altíssimo.
Então, a gente tem esse cenário… Falta de incentivo e uma competição muito dura.
E nem entrei no mérito do quanto é difícil a situação da maioria dos artistas, que trabalha em outro emprego pra sustentar as contas e ainda tira tempo pra se dedicar à música, se aperfeiçoar, produzir, fotografar, gravar vídeos, etc, e se divertir aqui e ali, namorar, ser feliz. Além do Spotify, Luri está no Youtube. Lá, ele apresenta regravações, aborda questões importantes e é claro, canta suas canções! Uma das coisas que me chamou atenção no seu canal no Youtube foi ver que no início você se apresentava como Luciano Andolini, nome e sobrenome. Agora, você se apresenta como Luri. Por que essa mudança? Essa mudança vem do fato de que o sobrenome não era meu. Uma parte do processo de mudança todo que citei antes foi eu tentar encontrar aquilo em mim que era meu e me desvincular de expectativas, do esforço de tentar algo, sabe? De uma certa forma, a escolha desse nome foi moldado por uma necessidade de ser outra coisa que eu não era, como se eu estivesse dizendo "eu não sou suficiente, preciso me esforçar e criar uma capa". Não queria mais isso. Então, resolvi adotar Luri por ser um apelido que só as pessoas mais próximas usavam. Eu achei que seria interessante como uma forma de aproximar, de dizer "esse sou eu, sem máscaras" e de deixar implícito que eu quero justamente eliminar barreiras e estabelecer um contato mais legítimo. Ainda falando do canal, você faz regravações de grandes artistas, como é o caso de Erasmo Carlos, Tim Maia e Jorge Aragão. Existe um critério para você fazer um cover? Também queria saber como você se sente ao cantar a música de outro músico.
Eu amo produzir versões! Nunca toco covers igualzinho como eles são. Ao mesmo tempo, adoro aprender as músicas e entender como elas funcionam… É um jeito de entrar na cabeça de outros compositores, entender outros gostos, sabe? Gosto também de revirar as músicas de cabeça pra baixo e ver como o significado se altera com outro arranjo. Enfim, é um exercício muito legal.
Quanto às escolhas, tendo a procurar aquelas que eu acho que vão ganhar alguma camada com uma mudança de arranjo. Ou alguma que acho que vai ficar diferente ou só que vai ficar legal mesmo. Vejo muito como um exercício, então, tem esse desafio também de achar aquela música que não se espera ouvir de um certo jeito e tentar, ver se dá certo.
Qual ou quais artistas, você faria um dueto? E qual o motivo da escolha? Se for pra tentar, eu acho que adoraria fazer alguma coisa com o Terno Rei ou o Phill Veras. Acho o trabalho deles sensacional. Para o futuro, você pretende dar continuidade nesse tipo de canção, que aborda sentimentos de dentro e amadurecimento?
Sim, com certeza. Nem sei se pra mim teria outro jeito. Podemos esperar novidades suas durante esse ano? Com toda certeza! Tem todo um cronograma de lançamentos, tudo ainda agora em 2021. Logo menos venho de novo e a gente conversa sobre as novidades. Em dias terríveis, é bom reafirmar que a arte salva e que temos artistas sensacionais como Luri para iluminar nossos dias. "Carta Aberta" está disponível em todas as plataformas musicais.