Após cinco anos, Meu Nome Não É Portugas, projeto encabeçado pelo compositor, cantor, produtor e multi-instrumentista Rubens Adati, retorna à música. Para alguns, a "pausa" na carreira soa como um problema, já que, nos dias de hoje, existe uma ansiedade para o artista continuar, afinal, o tempo não para. Porém, durante este tempo que esteve "fora", o músico refletiu sobre o tempo, influenciado pelo 'ma', não-conceito que existe no Japão propõe uma relação com o espaço e o tempo através das possibilidades do silêncio e das pausas. Através dessa ideia surgiu Perdi Minhas Pernas em Shangri-La (Cavava Records, 2024), disco que propõe aproveitar a viagem curtindo o tempo presente e tudo que existe entre momentos, notas e acordes, que no seu caso, formam um indie pop com elementos de rock, R&B, dub, psicodelia e MPB.
Foram necessários cerca de quatro anos até que o álbum pudesse de fato estrear. Desenvolvido ao longo da pandemia, Perdi Minhas Pernas em Shangri-La passou por todas as fases do isolamento, seguindo o ciclo do luto. Agora que estamos em outra realidade, o álbum chega como uma cura, lembrando que a vida continua.
Gravado em seu próprio estúdio, o Inhaestúdio, o álbum conta com as participações de BAL, Lou Alves (Walfredo em Busca da Simbiose), Thiago Klein (Quarto Negro), Pedro Lacerda (Glue Trip), André Bruni (Bruno Bruni), Henrique Kehde (Monstro Extraordinário), Chico Bernardes, Teco Costilhes, Thomas Hares (Céu, Jards Macalé) e Bruno Ragnole. Todas as músicas foram compostas durante a gravação, deixando de lado o processo de compor ao violão com um caderno de letras do lado. "Foi tudo gravado aqui, com pequenas exceções, então é como se o espaço conecta-se às faixas, saiu tudo de um mesmo lugar e conseguem ser diferentes mesmo assim", explica Rubens.
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Rubens, como você se sente voltando de novo para a música, depois de um tempinho, né?
Acho que eu, na verdade, voltei com o projeto mais assim, né? Acho que para fora fiquei meio sumido mesmo. Mas eu fiquei ali sempre trabalhando em alguma coisinha, né? Mas eu estou gostando. Eu estou fazendo de um jeito que eu não tinha feito antes, né? A gente sempre tenta... Eu, pelo menos, sempre tento chegar a lugares novos através de caminhos novos, né, então, ter segurado esse lançamento… Na verdade, o disco está pronto há um tempo - então, isso foi diferente, né?! E agora voltar, assim, está sendo legal. Porque eu estou com as expectativas, acho que, mais alinhadas com o que faz sentido no meu momento. No momento da música também, de como são as distribuições, de como é chegar a um público, esse tipo de coisa. A gente, pelo menos, tem feito esse lançamento sem colocar muito impulsionamento. Sempre fazendo a coisa de um jeito mais natural. Então, eu estou gostando de voltar porque estou indo desse jeito, sabe? Está sendo bem gostoso.
Então, justamente, você demorou para aparecer aí, mas você sempre esteve por trás de tantos outros projetos, né? E o que que te fez pausar e voltar depois? Você precisou de um tempo, também, para realinhar aí as ideias e algo assim?
É, eu acho que, assim, esse disco, o atraso dele, no começo, foi porque eu lesei mesmo [risos] com alguns nomes, estava mandando algumas coisas, aí eu fui deixando passar. Aí foi aparecendo as coisas da vida e eu fui deixando ele um pouco... Mas, agora, eu acho que foi bem importante… Apesar de ter sido um “vacilo”, foi muito bom para esquecer dessas músicas um pouco, para sair desse universo porque foi bem no finalzinho da pandemia. Então, a vida meio que voltou e aquele disco pandêmico ficou lá, sabe? Então, também era uma coisa, tipo: “nossa, não sei se eu quero revisitar essas gravações”, né? Porque, quando eu ouço, eu volto para outros lugares, né, então, isso também foi ótimo. Tanto que, acho que foram quase três anos depois, eu ouvi e falei: “nossa!” Tinha oito músicas, aí eu tive que tirar uma… Se eu não tivesse esperado esse tempo, eu talvez deixasse ela e hoje falasse: “putz, tá lá aquela música que eu não gosto no disco” Então, nesse sentido, foi muito bom ter essa pausa. Nem sempre é possível, nem sempre faz sentido, né? Mas, nesse disco, fez muito sentido de ver que, três anos depois, eu ainda gosto [dele]. E que, lançando e deixando a coisa no mundo, as pessoas curtem ainda e, tipo, não parece velho, né?
E como foi revisitá-lo? Porque, claro, estávamos em outra época, a gente sai daquela época, mas, ao mesmo tempo, a época ainda não saiu da gente e hoje, mesmo estando em outro momento. Teve essa confusão, também, de estar em épocas diferentes?
Acho que sim, alguns assuntos, assim, talvez de letra, né… Eu brinco que é tipo, quando você põe um casaco velho, você acha uma máscara [risos]. Você faz: “nossa, isso é vestido!” Então, às vezes, eu ouço umas músicas e lembro de umas cenas assim… Mas eu acho que... Ah, não sei exatamente, assim, esse lugar que eu visito… Acho que ele tem muito a ver com as letras, de coisas que eu pensei naquela época, que talvez hoje eu já não concorde tanto, mas eu acho que essa é a graça, né? De ver quem eu era e quem eu sou agora e esse conflito, assim, no melhor dos mundos, né? Um conflito positivo. Então, eu enxergo esses momentos, essas revisitações como coisas gostosas, eu lembro que foi uma coisa muito boa e foi no tempo que precisou, sabe? Então, apesar de ter o gatilho da pandemia, ter a possibilidade de criar essas músicas durante esse período, eu olho e falo: “nossa, que privilégio poder fazer um disco num momento tão confuso do mundo” e, de certa forma, ele tá aí agora e é quase um fruto disso, assim, né, de um isolamento forçado. Mais do que uma música feita pra pandemia, mas foi uma música feita na pandemia, não necessariamente sobre a pandemia, né? Então, era isso que eu queria um pouco fazer, sabe? Tipo, não quero ficar falando de isolamento, não quero ficar falando disso, quero falar da vida, sei lá, das coisas que eu tô pensando, das pessoas que eu vou encontrando e encontrando naquela época um pouco mais à distância. Então, são revisitações boas. Nada do que eu ouço me leva pra um lugar que eu talvez tenha uma ideia ruim, uma memória ruim. Acho que tudo que tá ali foram coisas que eu gostei. Mesmo as coisas que são densas e tristes, que tem um pouquinho [desses sentimentos], são aquelas coisas que foram importantes, né? Então, acho que é por aí.
E como foi fazer um disco durante a pandemia? Claro que tem essa perspectiva também de fazer música pra continuar, pra fugir daquele pesadelo, mas também é muito complicado você dar continuidade a algo em um pesadelo. Teve também esses dois choques?
Era um pouco... Era o que eu tinha pra fazer, assim, sabe? Então, era essa capacidade de conectar com essa coisa maior, que é a coisa da música e a linguagem da música, né? Isso conecta independente de você estar perto ou não, né, então, de certa forma, isso era muito bom. Era uma... Como eu posso dizer? Era um jeito também de me conectar com algumas pessoas musicistas, né? Trocar. Tinha músicas que mudaram muito depois que outras pessoas interviram… Então, me fez não me sentir tão isolado, né? [abre um leve sorriso] E também ver que as pessoas estavam fazendo música, que estava sendo lançada, enfim, tudo aquilo que a gente já sabe da pandemia. Mas foi... Acho que agora, assim, eu... Também quero um pouco esquecer isso, pegar essas músicas e levá-las pra frente. Trazer pessoas para tocar e mudar elas e transformar. Tem tanto tempo já de um jeito, acho que eu posso fazer de um outro jeito agora também.
Saindo da pandemia, mais cedo, você disse que você gostaria de saber quem você era nesse processo também. Você sentiu muita diferença de quem você era desde o começo para o Rubens de agora?
Com certeza! Em 2017, eu estava entrando na faculdade de música. Então, nem pelas questões técnicas, tanto que tem uma diferença, mas a mentalidade, assim, de como eu enxergava as músicas, do que eu acho que elas tinham que ser, do que eu acho que elas expressavam também de mim. O jeito que eu escolhi pra me expressar há quase 10 anos atrás é diferente das maneiras que a gente vai encontrando. Então, eu olho pra essas músicas e até eu já sinto que mudei, mas ao mesmo tempo eu olho e falo: “nossa, olha que interessante como eu fazia pra expressar.” Porque é muito louco, né? As músicas vão mudando, as letras mudam muito, mas os sentimentos e os motivos por trás costumam ser muito parecidos com das pessoas ao longo do tempo. Então, acho que é quase um mapa, assim, de que eu falo: “nossa, agora eu já posso olhar pra trás e ver que eu fiz várias coisas desse tipo” e escolher outras coisas novas e também revisitar ideias que eu acho que pode serem transformadas pra uma coisa nova que eu gosto, mas eu falo: “putz, já não falo mais desse jeito, mas eu sinto isso” Então, como eu posso mudar isso que eu já falei? Por que eu falava desse jeito? O que eu penso agora? Com certeza, é um choque bem... Quando põe um do lado do outro, é muito grande a diferença pra mim. Ao longo do tempo a coisa flui super, mas quando coloca ali 2017 x 2024, nossa, é muito diferente. Muito diferente! [risos] E aí perceber certas coisas que até, tipo, você fala: “nossa, resolvi isso na minha vida, né? Que bom.” Porque tem umas coisas assim, você fala: “nossa, eu já não sinto mais isso aqui. Olha como era pesado! Olha como me punha pra baixo” Então, isso é bem legal também.
E você mesmo precisando desse tempo pra lançar, você estava sempre de novo trabalhando com música, mas foram quatro anos longes, digo, em disco, porque você lançou singles. Não é muito tempo para um artista ficar tanto tempo? E como chamar atenção também de novos ouvintes?
Olha, talvez seja muito tempo pra uma pessoa que está pensando em cronogramas e pensando no marketing da coisa. Eu entendo isso, mas foi o tempo que precisou. Eu acho que a arte tem o tempo que ela precisa. Nunca é demais e nunca é de menos. Eu acredito nisso. A gente pode discordar, com certeza. Mas eu acredito que cada coisa tem o seu tempo, nesse ambiente da arte. Agora, a outra parte da divulgação realmente pode ter sido um gap longo, mas, ao mesmo tempo, eu acho saudável. É bom ser esquecido e lembrado, sabe? Falar: “nossa, isso aqui existe. Nossa, deixa eu ouvir de novo e tal” Eu sinto, às vezes, do jeito que as coisas estão hoje, que essa pressa de fazer tudo, assim, muito seguido, você entra no mesmo lugar que todo mundo. Tipo, você está disputando uma atenção que já não é uma atenção tão contínua e longa, do jeito que a gente quer que seja com a nossa música, né? Então, acho que, nesse sentido, é bom dar uma desaparecida e voltar com uma coisa muito diferente, também, com traços do passado. Acho que o último [single], que foi o “Deuses das Telas”, já era um passinho perto do que eu já estava fazendo para esse disco, mas muito mais ligado com as coisas anteriores, né? Então, sei lá… Acho que não... Eu acho que o tempo deu certo.
Eu acho muito curioso, porque a gente tá falando de tempo, e o tempo, ele está presente também em “Pantufas”, que foi o primeiro single que você lançou. E a imagem das resulta no momento que você vai descansar, o momento que você está relax e tal, e também conversa com o tempo. Então, diz muito sobre a sua perspectiva, e na música, você utiliza a palavra sonhos. Então, acho que diz muito sobre esse tempo, essa sua necessidade, né?
Sim. “Onde eu deixei as pantufas e os meus sonhos”, né? Porque, às vezes, também acho que, olhando agora para essa frase, eu pensaria que as pantufas e os sonhos são lugares confortáveis. Então, às vezes, também... Onde que eu deixei aquele lugar confortável? Na música, é até engraçado, porque eu não estou de pantufas. A única vez que eu falo, eu falo: “onde que eu deixei as pantufas”, né? [risos] Mas, sim, o tempo, ele... Depois de algumas pesquisas acadêmicas, que foi bastante nesse tema de tempo e espaço, que eu desenvolvi uma pesquisa relacionada com algumas questões japonesas sobre compreensão de tempo e espaço, eu caí muito nesse lugar, de entender que o tempo e o espaço, claro, para mim, eu entendo hoje que são uma coisa só, né, eles existem... Não tem como você desassociar tempo, né? O espaço só existe porque tem tempo passando por ele, e vice-versa. Então, nessa música, era um pouco isso, assim, de encontrar um tempo. E é muito louco, porque eu lembro de conversar com, acho que com um orientador, e a gente falando “nossa, a gente trata o tempo como uma coisa que a gente precisa achar na nossa agenda, precisa abrir tempo na agenda” Então, o tempo tem essa capacidade de ser aberto, fechado, moldado, né? E, às vezes, isso é uma coisa que eu achei muito legal, que eu apliquei para a minha vida, que o presente nem sempre é esse momento que a gente perde o tempo inteiro, porque tem um pouco essa mentalidade, né, que presente a gente não conhece, só existe passado e futuro. Mas aí, na contramão disso, os japoneses falam assim: “cara, só existe presente, só existe o momento de agora”, claro que isso bem por cima, e isso me lembrou, me levou muito... É muito, porque trabalha com a compreensão de coisas que são... Que é muito engraçado, que, na verdade, sentir o tempo é você não racionalizar o próprio tempo. Então, como você estuda uma coisa irracional? Essa foi toda a minha treta acadêmica, como escrever uma coisa com base acadêmica de algo que a graça é não ser entendido, né… Então, sei lá, acho que um pouco as pantufas e os sonhos é um pouco isso, aquilo que a gente também não pode entender muito, sabe?
E aí, você sabe onde estão os seus sonhos?
[risos] Olha, acho que eu deixei junto com as pantufas em algum lugar [risos]. Olha, os meus sonhos...
Não está sendo possível sonhar?
Não, sim, super, super. Acho que é muito saudável, né? Tanto sonhos quanto pesadelos, eles sempre são avisos, coisas da nossa mente e planos diferentes que a gente pode visitar e tal. Acho que os meus sonhos, eu não sei aonde, exatamente onde eles estão, mas eu acho que eles são muito mais calmos que antigamente. Muito mais... Não estagnados, mas mais tranquilos, nesse momento, mais pé no chão, talvez, não sei. Os sonhos, acho que... Vou revisitar eles ou criar novos - acho que estou nesse momento.
Justo! E é muito curioso, porque a gente não consegue falar do tempo, a gente não sabe, tecnicamente, o que é tempo, e tem essa dificuldade de ter esse diálogo, mas na música não existe isso, né? É muito mais fácil, no final das contas, fazer música do que falar, né?
Sim. A música, por si só, é a arte do tempo. Isso é uma definição meio ocidental, mas ela é uma arte que trabalha com o tempo, então, se a estátua é uma arte do espaço, que você tem aquilo… Ela ocupa o espaço. A música é a arte de você ouvir... Tem que parar esse tempo. Ela dura o tempo que ela tem e você não consegue acelerar. Você não tem como. Eu lembro... Acho que algum escritor, alguma coisa assim, escreveu que tinha algumas coisas na vida que não dá pra acelerar, que era esporte, sexo e música. Então, eu achei isso ótimo. Não dá pra acelerar. Então, acho que a música, ela é essa arte que te traz pro tempo. E faz você não perceber o tempo, na verdade. Porque você fica envolto naquilo, se você se deixa levar. Acho que ela é muito boa pra isso. É como você valoriza cada momento da escuta da pessoa também. Como produtor, eu penso muito nisso, porque é bem interessante você sempre ter uma coisa curiosa acontecendo durante a música, um elemento que some, desaparece, que de vez em quando chama muita atenção. E é um momento especial dentro de um outro momento maior. Então, tem momentos dentro de momentos, mas é tudo um mesmo presente. É difícil ouvir uma música e terminar ela sem ter a sensação de que a gente viveu um momento, um momento completo. A gente vai passando as músicas e vai vivendo momentos. Então, a música é uma linguagem muito boa pra falar de tempo. Ela é o próprio tempo.
Como surgiu esse interesse também de espaço-tempo? Ela surgiu primeiro na academia ou na música?
Foi na faculdade, na academia, sim. Eu fiz bacharelado em violão. E aí eu tava chegando ali pra metade do curso, tava tentando desenvolver algum tema já de pesquisa, de TCC, porque eu poderia aproveitar dois anos desenvolvendo isso. Eu fiz a Santa Marcelina e eles sempre incentivaram muito que a gente fizesse algum tema de TCC que estivesse relacionado ao estudo do instrumento que a gente cursa. Você não é obrigado a fazer isso, mas é muito interessante quando você pode juntar e ter uma performance junto com o trabalho. Então eu queria fazer alguma coisa com violão. E aí eu falei: “mano, que loucura, né? Deixa eu entender porque ele escreve música desse jeito” Tipo, é muito curioso. Aí eu comecei a pesquisar. E aí o lance todo foi um conceito, não-conceito, que se chama ‘ma’, que é a definição do tempo e espaço pra cultura japonesa. E aí ele tinha na cabeça dele que ele queria colocar o ‘ma’ na música, que é essa sensação de sentir um tempo, sentir o timing certo das coisas, de ter uma... É como se você... Você pratica algum esporte, alguma coisa assim?
Não, dá até vergonha de assumir isso...
Isso acontece muito em esporte, por exemplo, em uma luta quando você acha o momento certo pra você fazer o golpe, sabe? É esse sentimento de fazer a coisa certa no momento certo. É irracional, você sente. Então ele queria trazer isso pra música - e eu achei muito interessante. Só que aí é uma filosofia muito densa e eu acabei absorvendo muito pra minha vida isso. Sempre foi muito mais sobre o processo. Comecei a entender que o processo das coisas é mais interessante que os resultados, do que a forma geral. Tipo, a vida é um pouco assim, você fica pensando muito na forma geral, tentando organizar. Aí você organiza uma vida que qualquer pessoa pode viver, não precisa ser você. Mas se você vive cada dia intensamente... Não precisa ser intensamente, mas se você vive cada dia pensando menor e aproveitando as coisas do momento, eu acho que é um outro jeito de viver. E isso me acalmou muitas ansiedades. Não só sobre a carreira, mas sobre a vida mesmo, relações, de amizade, de família. Isso me trouxe pra outro lugar. Isso foi a coisa que mais mudou nesses dois momentos da vida. Quando a gente estava falando do primeiro disco e disso agora, com certeza esse momento acadêmico foi muito importante. E aí, entendendo isso, eu consegui desenvolver uma pesquisa também sobre produção musical, porque o estúdio sempre foi um espaço que o tempo é muito importante que você passa dentro dele. Porque você grava o tempo que está dentro do estúdio. Então, isso é uma coisa alimentou a outra. Então os interesses super se juntaram e eu ainda vou continuar com esse tema, estou dando uma pausinha pra pôr a cabeça mais no lugar, fazer outras coisas, viver mais a vida, mas a academia é um lugar que esse tema tem muito pano pra manga. Porque ele é meio... Não é delicada a palavra, mas ele é um pouco subjetivo. Cada pessoa sente a coisa de um jeito. Então, sempre dá pra desenvolver material e sempre tem espaço no Brasil aqui pra isso - no sentido de que não é um tema muito pesquisado em língua portuguesa. Na língua japonesa tem muito material, em inglês tem um tanto, mas em português não tem muita coisa. Então eu estou gostando disso também. Estou podendo trazer uma coisa diferente aqui, juntando mundos que antes não se tocavam aqui.
É muito interessante porque o conceito, ele está no disco inteiro, mas pelo menos o que eu senti é que você quis brincar. No início, em “Primitive Enjoy the Ride”, tem a barulheira, mostrando como a vida é, e só depois que vai dando aquela baixada, presente na filosofia. Ou seja, você convida também o ouvinte para sair da barulheira da metrópole para ir direto ao ‘ma’. E aí eu te pergunto: você acha que o ouvinte consegue identificar este golpe certeiro, como você falou anteriormente?
Pode ser… Essa música, o começo dela, foi muito pensada como uma imagem. Eu tinha claro uma pessoa chegando numa festa, então tem o barulho de fila de festa, a música tá tocando lá dentro, aí ela entra nessa festa e aparece um monte de mãos dando copos e drogas, e a pessoa entra naquilo e vem a voz “Enjoy the ride” e é pra começar. Então acho que essa música é quase uma preparação, uma ponte, pra você sair do seu momento normal e você conseguir entrar em alguma coisa. Pode ser ouvida sozinha também, eu gosto dela só como uma música, mas ela é uma preparação mesmo, é uma ponte. Essa ideia de ponte também é uma coisa que eu gosto de trabalhar, porque ela é… Ponte, portal, essas coisas, porque momentos de transformação pra você ir pra outro lugar. Na nossa realidade seria, por exemplo, uma escada de uma catedral, você ter que subir aquilo, você tem que passar por isso pra chegar aqui, então é uma espécie de portal. A vida tem vários portais, tem o metrô, tem o portal de ficar esperando dar o horário da reunião, não sei o que, tem que passar essas coisas… Então essa música tem bem essa jogadinha [imita os sons da canção] de começar o disco. E aí começa a “Céu e Mar”, que é uma música que tem um comecinho meio estranho, uns ruídos e tal, e ela vai chegando, então é bem por ali.
E aí eu te pergunto, nós estamos acostumados com barulho, com diversas sonoridades, você acha que em algum momento nós vamos nos acostumar com o silêncio, com a calmaria?
É louco, né? Tem gente que fica maluco de ficar em silêncio, começa a ouvir minhas próprias vozes [risos]. É difícil, eu acho que isso vem muito mais de dentro. O silêncio, claro que quando você pode ficar em silêncio, silêncio mesmo, sem barulho de moto, esse tipo de coisa, é uma delícia, mas tem gente que também não consegue aproveitar as vezes. Mas enfim, eu acho que isso vem de uma coisa interna, sabe? De conseguir silenciar você mesmo, de, tipo, de se retirar um pouco, você não precisa falar, você precisa mais ouvir do que falar. Então, acho que... Não sei se as pessoas vão voltar a se acostumar com esse tipo de silêncio. Agora, o silêncio da vida urbana é muito maluco, eu acho que isso não existe mais. Tem que ir para um mato, um lugar muito isolado para você poder experienciar isso, assim, da maneira que é da natureza. E é muito engraçado, porque silêncio, silêncio mesmo, não existe. Sempre tem um barulhinho, sempre tem uma árvore que seja, um vento, um pássaro. Então, acho que também, de certa forma, o silêncio é você ouvir os barulhos que estão ao redor de você. Eu acho que as pessoas fazem pouco isso, de se silenciar e fazer um exercício de audição, de ouvir o que está acontecendo perto da sua casa. Que barulhos são esses? Sabe identificar? De que loja é que é isso? Você ouviu uma voz de alguém? Será que você já ouviu essa voz antes? Qual o mais longe que eu consigo ouvir? Acho que a gente faz pouco isso. Esse tipo de silêncio eu gostaria muito que fosse costumeiro porque ele é muito prazeroso, a gente se conecta mais com os outros fazendo isso.
Você sempre fez essa brincadeira de misturar letras, riffs de guitarra com outros sons. Esse processo sempre te chamou atenção?
Eu sempre gostei um pouco de fabricar sons, sintetizadores, pra mim, são ferramentas ótimas para isso, elas são sons totalmente diferentes, você pode mudar do jeito que você quiser. Eu acho que é muito legal de falar sobre isso porque traz a palavra do ruído e o ruído na música nem sempre é uma coisa pejorativa, o ruído é - aí vou puxar sardinha pro lado da minha pesquisa - o ruído, por exemplo, na cultura japonesa, ele é justamente a percepção do momento presente, tem uma camada a mais naquele som, não é o som puro e você tem que parar [para ouvir] porque o ruído só acontece naquele momento, quando toca daquele jeito. Ele é justamente a valorização desse momento presente, mais do que “eu acertei a linha de guitarra e eu vou repeti-la oito vezes…” Sei lá, o pedal dá um bug e, então, isso só vai acontecer agora. Eu gosto muito disso, daquilo que só acontece naquele momento. É muito especial! De certa forma é legal conseguir registrar isso e conseguir colocar no disco. Eu tava ouvindo um disco esses dias, de um cara chamado Todd Rundgren, um cantor e produtor americano, e ele tem um disco de 1973 [A Wizard, a True Star] com uma faixa que diz assim: “é uma brincadeira a partir de agora, é o jogo do estúdio: procurem, nas músicas, este barulho” e aí ele coloca um barulhinho e depois explica tudo. Então, eu adorei isso! Acho muito legal. É sempre possibilitar a pessoa a ir um pouquinho a mais. Não é só copiar e colar alguma coisa que você já acertou, né, a minha mentalidade é bem isso: copio e colo poucas vezes, não faz sentido - só quando é para parecer uma colagem. Se não, eu tento fazer a coisa inteira, porque o momento sempre guarda surpresas. Até quando eu tô gravando pessoas, produzindo e tal, a pessoa tem a mania de que, quando erra um pouquinho, parar. E eu falo “não, vai até o final” porque pode ser que saía algo muito maravilhoso. Acho que isso que você me perguntou vem muito desse lugar, de achar que sempre pode acontecer algo legal.
"Se [uma nova intepretação da música acontece] é porque foi possível. Algumas músicas não deixam que a gente sinta a nossa coisa. Olha que legal poder sentir coisas diferentes sobre a mesma arte."
É curioso falarmos de tempo porque no seu primeiro EP tem uma música chamada “Empaquei” que você diz “mas eu empaquei em mim”. Como você se sente sabendo que você não ficou empacado?
[risos] É ótimo, que bom! [risos] Que bom que eu não empaquei em mim. Essa frase, na época, na minha cabeça, era muito mais uma coisa sobre relacionamento, mas eu entendo que hoje é, analisando, tem várias questões da minha vida… Eu acho que eu aprendi, de certa forma… Não é que eu não empaco mais, mas quando eu empaco, consigo perceber que estou empacado e dizer “deixa eu remexer a poeira e mudar alguma coisa.” Se na época eu tava muito incomodado com aquilo… Se eu pudesse falar com o Rubens de 2017, diria: “cara, você vai empacar muito ainda! Mas também vai aprender a desempacar também.” [risos]
Em Sob Custódia da Distância, você diz que foi dividido, mas você continua sendo dividido - entre músico e produtor. Será que é um ciclo?
Eu acho que a gente é meio dividido, né. Aquela letra, de “Sete Cantos”, é muito louco, porque não sei se é uma experiência geral ou é uma coisa que eu vivi, mas é sentir que existem algumas personas suas - você não é do mesmo jeito quando age com uma pessoa e depois com outra, porque a gente estabelece relações diferentes em nossas vidas. Acho que essa divisão significava uma dúvida, tipo, eu fiquei dividido, eu não sabia qual era o meu caminho, né. Acho que hoje a divisão ainda existe, acho difícil a gente não se dividir para cumprir várias funções dessa vida. Como artista do disco, eu tenho uma cara, mas como produtor eu já tenho outras ideias, um outro tipo de abordagem. Então, como artista, eu sou muito mais crítico com as minhas coisas, mas sou aquele produtor que curte ideia nova, testando e errando. É uma contradição gostosa, acho que só pela divisão eu conseguiria [ser essas duas personas]. Naquele momento, a divisão tinha um significado muito mais triste, acho que hoje é uma coisa mais… Eu aceitei e tento não ver isso como uma coisa ruim, que me impossibilita de ser uma coisa só, mas a verdade é que existem diversas possibilidades para ser várias coisas e curtir isso. Daquilo que a gente tava falando: é ver um erro, algo que eu achava que era ruim, poder transformar isso, né. Com certeza é cíclico, a gente vai se dividindo.
Quando você começa um novo projeto, você revisita o passado? Porque quando eu fui ouvir o Perdi Minhas Pernas em Shangri-La percebi que existia algumas relações com outros trabalhos seus… Ou você esquece para seguir adiante?
Ah, esquecer é impossível! Sempre tá lá, até pra não cair em repetições. É engraçado porque eu só teria repetido uma coisa de um disco se eu não tivesse aprendido alguma coisa com aquilo. É uma atenção nisso também: é legal revisitar para pensar. Eu já ouvi algumas coisas, mas não com a intenção de analisar… E fico contente que [Perdi Minhas Pernas em Shangri-La] não se parece com o que passou. Os outros tinham um fio de melancolia e esse não é nada disso, é um disco com um pouquinho, um pouquinho, mais de astral [risos]. Então, se eu revisitei foi para ter certeza que estava indo para outro lugar.
“Primitive Enjoy the Ride” começou como uma imagem pra você, o que é interessante porque pra mim não houve uma imagem, mas sensações. Então, queria saber como foi criar uma narrativa para o álbum.
Eu não sou o cara que compõem ou que se expressa de uma maneira muito simples, de violão e voz que seria uma música folk, por exemplo. Eu me garanto muito mais em envolver as pessoas pelos sons do que criar essas narrativas. Eu nunca escrevi narrativas tão bem, sempre fui mais da poesia, de coisas mais soltas… Então, quando você me fala que sentiu muito mais essas sensações, poxa, acho que é o jeito que eu construo mesmo - eu sou muito apegado à sensações que o som me dá, muito mais do que as imagens, apesar de gostar. Então, gosto de trabalhar com algo que dê uma extra-imagem, dar contraste ou corroborar com a ideia de que a imagem tá dando. Mas no disco, eu acho que isso tá muito mais relacionado com a voz, essa capacidade de pintar um quadro com as palavras e envolvendo… Não tem muita história pelo disco, não tem um personagem que sai de um lugar e passa por outros - não tem isso. Acho que, talvez, a que seja assim é “Eu Voltarei” que fala sobre nadar no céu… Nunca foi minha intenção criar essas imagens, elas acabam vindo pra mim de um jeito que eu fico ouvindo a música um milhão de vezes [risos], então, uma imagenzinha vem. Realmente, não tem uma narrativa neste disco, são músicas que eu acho que conversam e que são momentos… Acho que é isso: são momentos que tem características diferentes quando são colocadas nessa ordem tem um efeito nesse tempo.
Qual a sensação que você teve ao fechar esse disco?
Foi recente porque eu tirei uma música, então, foi ótimo encerrar esse disco! [risos]
Mas se existisse a outra música seria mais complicado?
Ia, porque eu tava insatisfeito com a parte técnica, com a execução. Na época passou e eu tava muito “ah, coloca, tá legal” e quando eu ouvi pensei “nossa, vai dar errado”, foi muito precipitado. Então, esse encerramento do disco foi muito bom para fechar e falar “isso faz sentido desse jeito e a partir daqui eu preciso delimitar as coisas.” Eu gravei outras coisas com outros músicos, várias músicas novas, sei lá, duas playlists no Soundcloud com ideias, mas enquanto eu não lançasse eu não me sentiria bem, de fato, concluído.
Qual é a história por trás do título do álbum?
Então, Perdi Minhas Pernas em Shangri-La! Eu fui para Inhotim em 2013, tava começando a coisa, então, eu fui com a minha família e eu fui num pavilhão de uma artista canadense que se chama Janet Cardiff… E o pavilhão era muito doido porque era enfiado no mato e era bem escuro… Devia ter umas cem caixas de sons espalhadas em um grande círculo e no meio tinha um gramofone e esse gramofone ficava contando um sonho da Janet e essas caixas de som eram a ambientação do sonho. Era como se você tivesse no sonho, era uma sensação… Nossa! Se eu pudesse entrar uma vez por dia, entrar lá e rezar, essa seria minha religião [risos]. Durante o sonho, ela conta que perdeu as pernas dela e ela tava procurando e isso ficou na minha cabeça. Acho que é, de certa forma, dizer que você quer andar, mas ao perder as pernas… Onde estão as pantufas? Onde estão os sonhos? A frase veio totalmente dessa frase, a obra não tem a ver com o disco, mas muita coisa que ela falou no sonho ficou muito marcado. A música que tem esse nome me traz a sensação de quando eu tava naquele lugar, ela é um pouco sobre isso. Sobre esse sonho, sobre esse momento. Sei lá, eu queria perder minhas pernas bem longe [risos].
Quando você está com suas pernas, para onde você quer ir?
Ah, boa pergunta. Eu quero ir para algum lugar que a música seja… Que ela possibilite o que esse disco tá fazendo. Fazer um negócio do meu jeito, 100% do meu jeito, sem ter que lidar com algum tipo de filtros criativos… Enquanto eu puder fazer isso, lançar discos que minimamente tocam as pessoas e que eu possa fazer o que eu tô fazendo agora, com você, eu já tô no lugar certo. Quero estar num lugar assim, pode ser na Alemanha, no Brasil, onde for.
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