O que são assombrações? São fantasmas ou consequência da realidade? É possível ser os dois? Em "Assombrações" (Todavia, 2018), Domenico Startone traz um drama familiar que vai além do comum e do previsível: passado e presente se misturam enquanto um avô precisa cuidar do neto de quatro anos.
Daniele Mallarico, ilustrador que sente que está desaparecendo, é o narrador do livro. O seu duplo, Mario, uma criança, é o oposto do avô: iniciando a vida, possui capacidade de aprendizado exauridos, soando, em muitos momentos, como um adulto irritante - e é a partir daí que as assombrações de Daniele começam a surgir.
"(...) Em vários momentos tive medo de que os vagões saltassem dos trilhos, arrastados pela tempestade, e constatei que quanto mais se envelhece, mais se quer continuar vivo."
Logo de início, o leitor descobre que o ilustrador foi um pai ausente e, consequentemente, um avô relapso. A história se inicia com um telefonema de Betta, sua filha, que pede para que o pai vá até Milão para cuidar de Mario, já que ela e seu marido, Saverio, precisam ir para um congresso. Cansado, doente e egoísta, Daniele tenta fugir da atribuição, dizendo que precisa trabalhar, mas não consegue. Portanto, é obrigado a pegar um trem para cuidar do pequeno familiar que não o vê há alguns anos.
Durante o trajeto até a sua chegada, descobrimos o motivo do medo e da angústia de revisitar o lugar: foi ali que Daniele cresceu. Desse modo, passar alguns dias com um desconhecido é um incômodo. No entanto, quando Mario o vê, beija sua bochecha, o abraça, ficando feliz pela chegada do mais velho. Segundos depois, acontece o primeiro choque de diferenças: o avô entrega dois livrinhos que ilustrou no passado para o neto - qual é a criança que espera uma obra? Elas esperam por brinquedos. Esse ato mostra que Daniele não conhece o neto, não acompanha a realidade e não fez nada para participar da vida dele e de sua filha. Mas Mario gosta e analisa as figuras, até que critica um desenho, dizendo que está muito escuro - outro choque e o avô não entende, não aceitando a crítica.
Em consequência dos pequenos atritos, o leitor percebe que a convivência dos dois piorará em breve. Mais do que duas gerações diferentes, Mario é a assombração do avô que não suporta revisitar o passado e acompanhar o presente, uma nova vida cheia de oportunidades.
"(...) Por aquela fenda entrariam a insegurança, o desespero, a infelicidade, e eu teria aniquilado o homenzinho que eu queria me tornar: um cara de palavras elevadas, sentimentos nobres, senso de responsabilidade, sábia defesa do bem, sexualidade segundo a norma, vida absorvida por uma única e grande paixão: produzir num ciclo contínuo minhas obras, pequenas obras, obrinhas - nada me interessava mais. Mas acabei conseguindo, fui capaz de vedar todas as fendas uma a uma, numa operosidade permanente. Eu me tornara carne; o resto, fantasmas. E agora lá estavam eles, parados na grande sala do apartamento da minha adolescência, apartamento hoje transformado em casa de Betta, de Saverio, de Mario."
Antes de viajar, Betta mostra onde fica cada coisa. Inclusive, pede ao pai que tome cuidado quando for abrir o gás. Ele ouve, mas não presta atenção - foi assim sua vida inteira. Daniele é indiferente às pessoas e tudo que o ronda. No final das contas, o ilustrador só quer saber dos seus desenhos e da busca pela perfeição.
Mario é uma criança independente: sabe onde estão os utensílios da casa, se troca sozinho e sabe que em alguns momentos precisa brincar sozinho, para que os adultos possam trabalhar. Ao ajudar o avô a encontrar os itens necessários, Daniele se sente confrontado por uma criança, afinal, ele não deveria ser independente e franco para a idade que tem. É ele, o mais velho, que possui inteligência e sagacidade.
Mallario tenta trabalhar nas ilustrações do conto "A Bela Esquina", de Henry James. Interessante analisar a escolha de Domenico Startone: o conto traz a história de um protagonista que retorna para a casa que cresceu e revê os fantasmas de seu passado, mostrando o homem que poderia ter sido se ficasse naquele lugar. Ao continuar na casa, o único cômodo que gostava, logo se transforma em cárcere, cuja salvação depende do seu duplo, isto é, da criança.
"(...) O que é que me preocupa - disse a mim mesmo -, mais do que ansioso, eu deveria estar melancólico: já vivi grande parte da vida e agora eu mesmo me aproximo da hora da morte, caberá a Mario me descobrir atrás de uma porta ou nos cantos escuros desta casa. Quantas aparências o cérebro era capaz de pôr em órbita com seu circuito de emoções. O menino não tinha medo do escuro, mas, depois daquele nosso convívio, talvez ele temesse minhas aparições."
Mesmo sendo uma criança, Mario tortura o avô com a realidade nua e crua, de Milão e de sua casa. Ao colocar em prática a tortura emocional, o neto representa o que o avô deixou de ser: idealista e sonhador. E não só isso: Mario se mostra o homem que pode se tornar ao ficar naquela casa, já que todos os homens se tornam ressentidos e violentos. Em suma, "Assombrações" aborda o jogo cruel de familiares que foram impactados pela criação dos pais.
"(...) Inútil fechar os olhos, inútil reabri-los, a figura não ia embora. Era aquilo que eu devia desenhar, pensei. O fantasma que eu busco é Mario, sempre o tive à vista desde minha chegada. Sua matéria viva contém em si todo o possível: aquilo que se manifestou através da longa cadeia de cópulas e partos que o precederam, aquilo que se desfez e se perdeu na morte, aquilo que espera há um milhão de anos para se manifestar e agora se torce, se debate, se projeta, exige um presente no futuro, quer ser desenhado, pintado, fotografado, filmado, descarregado, transmitido, narrado, repensado. Que fantasma espantoso era o menino, tão pequeno e tão capaz. Não o suportava, não suportava mais nada. (...)"
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