"O dia em que eu parar de brincar, serei infeliz", diz Bel Carvalho durante conversa pelo zoom. Educadora social e mestra do Grupo Cupuaçu - Centro de estudos de danças populares brasileiras - Bel, apelido carinhoso para o nome Ana Isabel, encanta pelo sorriso, o alto astral e a paixão por brincar (atividade de extrema importância para sua existência), no entanto, é com as suas memórias que ela fisga as pessoas: as celebrações do Bumba- Meu-Boi, a preparação, a farra da família e a celebração da festividade.
Em "Do Auto do Nosso Boi" (2022), a escritora conta a trajetória de sua vida que se mistura com o feitiço do Boi. Conhecido mundialmente, o Bumba-Meu-Boi surgiu no século XVIII, época em que o gado era de extrema importância para a economia. Patrimônio cultural imaterial da humanidade pela UNESCO, a festa tornou-se uma grande celebração porque associavam o Boi com uma lenda. Segundo a história, um casal estava esperando um bebê. A mulher, que estava grávida, desejou comer a língua boi do patrão. Seu marido, assustado com a confissão, foi atrás de realizar o desejo da esposa. Ao descobrir que o boi estava morto, vão atrás do pajé e de um doutor para ressuscitar o animal. Ao ver o boi curado, as pessoas celebram o seu retorno em grande comemoração com dança e música.
Além das memórias, o livro traz também verbetes informativos, curiosidades sobre o festejo, além de dicas de como montar a brincadeira. Bel não compartilha apenas sua história, ela dá continuidade à cultura brasileira que tem sido esquecida por novas gerações, além de relembrar a sua ancestralidade. "Eu faço muita questão de falar da minha infância porque eu lembro um dia, eu conversando com um amigo, falei que não sabia andar de bicicleta e ele falou "como você não sabe andar de bicicleta? Então você não teve infância". Aí parei e pensei… Mas eu não trocaria a minha infância por um andar de bicicleta, sabe? Porque foi tão mais rico do que andar de bicicleta - não desmerecendo quem anda -, mas foi de uma riqueza que andar de bicicleta é o mínimo, sabe? Eu consegui aproveitar com outras coisas, com outras brincadeiras… Minha vivência foi outra é é rico! Acho que o legal é isso: é compartilhar, é trocar".
Leia também:
Como surgiu a ideia de fazer o livro?
A ideia de fazer o livro veio porque, a gente faz aqui no Morro a festa do Bumba Meu Boi e no meio da festa, às vezes eu tava mais querendo dançar e vinha um e perguntava "o que é aquele? O que significa? Por que ele tá vestido desse jeito?". Isso me incomodava por dois motivos, primeiro porque não era a hora que eu queria passar informação, eu queria era brincar, entendeu? [As perguntas] tavam atrapalhando minha brincadeira. E o outro [motivo] era [ver] que eles tinham essa necessidade, eles queriam aprender, o que significava - o conhecimento tá aí e as pessoas estão buscando. Quando eu fui madrinha em 2019 do Boi, eu falei "poxa, eu queria fazer uma lembrancinha significativa", que tivesse uma importância; não uma lembrancinha que fica lá parada em cima do móvel. Aí me veio a ideia de fazer um livreto e fiz de lembrança, falando o que era o Amo, quem é o Boi, o que é o Assassinato, o Pai Francisco, os instrumentos… Uma pequena informação para distribuir aos integrantes do grupo e para os amigos mais próximos. Depois, falei "por que não aumentar isso?", ir para as mãos de outras pessoas, sabe? Por que não atingir mais pessoas com essas informações? Aí convidei essa companheira de muitos anos, Nathalia [Meyer, que estava na sala do Zoom e que participou do processo do livro] a me ajudar a escrever um edital que foi aprovado e graças a Deus, [estamos] com essa maravilha nas mãos. [O livro] tem informações que você não tinha do Bumba Meu Boi - acredito que a partir daí, já se consegue trabalhar com ele, dá pra fazer algumas coisas com ele e em cima dele.
Como foi relembrar toda a sua vida, a experiência de conviver com o Boi e a experiência que foi passada de família, e colocar no papel?
Foi prazeroso, mas difícil. [Bel se emociona e sua voz embarga por alguns segundos] Foi muito difícil, chorei muitas vezes. Chorava quando lembrava minha infância, como era gostosa… Quando recebia presentes do meu pai que foi muito presente, apesar de que hoje, se ele estivesse vivo, com os seus cento e poucos anos, vejo que ele é diferente. Ele não era aquele pai como todos os outros pais, ele era presente, um pai que contava histórias, um pai que sentava para dar uma dura, porque nunca batia… Eu ia lembrando do meu pai se arrumando para o Boi e vinha aquela lembrança, eu chorava… Foi prazeroso demais, mas foi um parto, sabe? Um parto gostoso, com muita emoção nesse relato da infância e da adolescência.
A família é muito forte em você - agora mesmo, na sua fala, você ficou emocionada. O que família representa para você?
Acho que proteção, união e força. Eu falo que a minha família não é uma família que você chega [na casa e vê] todo mundo almoçando em um domingo. Na minha infância isso foi muito presente, talvez, seja por isso que eu sinto falta. Minha casa sempre foi muito cheia, minha mãe teve sete filhos, mas parece que não se contentou, então, nas férias, chegou a ter dez crianças na minha casa. Meu pai era chamado de Papai Pepê e aí falavam "nas férias eu vou no Pai Pepê". Então, sempre teve uma coisa da família toda junta. A minha família tem uma coisa que se tá precisando [de algo]... A gente não tem almoço de domingo, mas sabemos a hora de chegar junto e acho que isso é o mais importante, sabe? Essa força, essa cumplicidade, essa união.
Anteriormente você disse que no passado queria brincar com o Boi e é interessante você trazer essa palavra, brincar, que traz no livro como um sentimento maravilhoso, que desperta isso no leitor. Te pergunto: por que é tão importante brincar, mesmo sendo adulto e nos dias de hoje?
Eu acho que o brincar é o que te deixa conectado com você, é o que… Não digo que é o que te faz esquecer, mas é o que ameniza os problemas, o que ameniza as coisas que não são saudáveis, eu diria. Brincar é isso [para por um segundo e respira fundo]. Deixa eu buscar a palavra certa… Brincar é o que faz transcender, que te conecta com a paz, que conecta com o outro, porque não se brinca só; e acho que brincar com o outro faz sentido. Acho que o brincar só até dá para brincar, mas você brinca melhor quando você - eu gosto muito da palavra compartilhar -, quando você compartilha um brinquedo, você aprende brincando, ensina brincando. Quando falam que brincar não é coisa séria, pra mim é sim - brincar é muito sério! O brincar é sério quando você pensa no brinquedo que vai colocar nas mãos do seu filho, de qual forma que seu está brincando com isso ou com essa brincadeira. O brincar não é um brincar por brincar, acho que o brincar pode ser livre, mas ele não pode ser uma questão responsável. A gente precisa continuar brincando para continuar saudável.
As brincadeiras realizadas na sua infância, te deram o suporte, vamos dizer assim, para você continuar brincando como adulta, né?
Sim, pensando que o Bumba Meu Boi é uma brincadeira e eu preciso disso para sobreviver… Falo que quando eu vim pra São Paulo, não vim pra cá para ficar, era somente férias. Já tinha os quinze dias aqui… Se não desse certo, eu voltava. Duas coisas me fizeram ficar em São Paulo: o Grupo Cupuaçu, se não [tivesse], não teria ficado, não conseguiria sobreviver em São Paulo sem essa arte, sem essa cultura, sem essa minha ancestralidade. A família tá perto, a brincadeira tá perto… Trabalho, mas toda quinta-feira vou lá, meus amigos estão lá, a gente dança e eu volto pra casa feliz. Isso é brincar e isso me enriquece, me dá força, me dá vida, é meu suporte.
No livro, você comenta sobre a primeira vez que viu o Boi e a importância da família com o Boi, queria saber quando foi o momento em que você se apaixonou pelo Boi.
Eu costumo falar… Eu não sei quando foi a primeira vez que eu vi o Boi… Acho que estou no Boi muito antes de eu nascer, sabe, da barriga da minha mãe, porque, quando eu nasci… Quando me dei por gente, eu já via meu pai brincando com o Boi, meus irmãos brincando o Boi, não foi "ah, eu era criança, meu pai me levou para ver…" - não, eu não consigo lembrar o primeiro. Lembro de um que me marcou, mas com certeza não foi o primeiro porque eu já era bem grande, o cenário me faz lembrar… Mas o primeiro Boi eu não vou lembrar não.
Para Vygotsky, o brincar é fundamental pois ajuda no desenvolvimento cognitivo da criança e na aprendizagem. Uma criança que tem oportunidade de brincar, torna-se um indivíduo social, que consegue se socializar, compartilhar informações e afeições. Um adulto que segue brincando é muito mais feliz - esse é o sentimento que precisamos.
Enquanto Bel Carvalho responde minhas perguntas, relembro o breve ensinamento que tive sobre Bumba-Meu-Boi no tempo de escola e vejo, agora, que as atividades não eram suficientes, pois não contavam os encantamentos da festa e das ruas. Bel me dá uma aula, além de relembrar que é necessário continuar brincando para sobreviver e me faz ter esperanças, após anos assombrosos.
O enredo do Boi gira em torno da morte, da ressurreição e da fragilidade dos humanos. Nós, humanos, continuamos fragilizados?
Sim. Eu acredito que somos e que estamos sempre em busca de nos empoderar, de nos fortalecer e é isso que nos deixa cada vez mais fortes. Se você não pensar dessa forma e se você não se pré-dispor a isso, você vai sempre estar fragilizado, o que é, infelizmente, o que a gente presencia.
Duas coisas me chamaram atenção no livro: a primeira, as mudanças que fez, do Cururupu para São Luís e depois para São Paulo. Quais são as diferenças que você teve e, hoje em dia, essas mudanças te fizeram se apaixonar ainda mais por essa festividade tão bonita?
As mudanças foram grandes, não só pela questão regional... Eu diria que uma coisa é na infância, outra coisa é você adolescente e outra coisa é você adulta, mas pelas questões do Boi mesmo, né. Em Cururu, o Boi é de uma forma e é minha paixão, porque além de ser o Boi da minha cidade, ele é único, ele só existe lá! Eu posso viver dez anos, posso me modificar, mas onde tiver Boi eu vou! E ele é o meu Boi, era onde eu vi meu pai brincando, onde via meus irmãos, meu tio... Aí em São Luís, você chega e vê centenas de Bois, vários sotaques diferentes, muuuuita gente, em São Luís tinha duas mil pessoas em um Boi na época dos festejos – então, essa visão é diferente; aí eu venho pra São Paulo, onde meus irmãos, com uns amigos, fundam o grupo Cupuaçu que faz Boi – e que é o nosso Boi -, único aqui em São Paulo e ele é diferente de Cururu e de São Luís. Por que é diferente? São culturas diferentes, são pessoas diferentes – tinha americano, japonês, pessoas do Sul, pessoas do Nordeste... Esse Boi é o que nos fortalece, que nos une, que faz a gente brincar, então, são grupos diferentes, são formações diferentes, são pessoas diferentes e essa é a minha visão diferente do Boi. Até a forma de se relacionar com o Boi é diferente.
Quando você chega em São Paulo, esse é o outro ponto que me chamou atenção, você fica aqui. Como tem sido resgatar e compartilhar o Boi com os paulistanos e com tantas outras pessoas que cabem em São Paulo?
No começo não foi tão fácil, claro, para as pessoas que estavam interessadas em participar é uma coisa – quando falo participar é sobre fazer aula de cultura, saber mais... Mas quando chegava a hora que a gente ia por esse Boi na rua, aí vinha os problemas. Hoje, todo mundo faz Boi e acho que quase todas as culturas populares relacionada aos negros foram muito discriminadas - e ainda são -, mas no passado era bem mais. Quando você falava "vamos fazer um Boi na rua" chegava a polícia. Hoje não, hoje o Sesc chama para fazer Boi, casa de cultura chama pra fazer Boi, hoje você faz Boi nas melhores escolas privadas de São Paulo... Virou moda [risos].
Quando você chega em São Paulo, você começa a compor mais. Como foi esse estalo? Hoje em dia, você continua compondo?
Comecei a compor em São Paulo. Eu sou daquelas que vou lá, compunha, deixava lá no caderninho... E agora que a coisa tá começando a sair do caderno, do celular.
É interessante pensar que foi aqui que você começou a compor. Será que a inspiração foi ver as diferenças culturais?
É interessante, não sei…
Talvez tenha sido essa sede de compartilhar…
Pode ser sim. Acho que era brincar e eu não pensava no compor, eu gostava de dançar... Tem uma hora que você pensa "ah, mas dá pra fazer também isso", como também dá para cantar... Então, agora é a hora de começar a compor, de começar a cantar. Agora é a hora de começar a compartilhar isso com as pessoas.
Como que a gente pode conectar, apresentar – seja pra criança, jovem ou adulto – a história do Boi e mostrar como a cultura brasileira é bonita sendo que eles estão sempre nos celulares, em aplicativos?
A primeira delas é colocar "Do Auto do Nosso Boi" na mão deles [risos]. Aí eles vão ver que existe e depois a gente pode chegar junto para levar essa brincadeira até uma escola, a gente pode levar essas crianças até um Sesc, onde já tem essas brincadeiras... Acho que hoje elas estão mais acessíveis. Se os pais tiverem esse interesse de mostrar e de levar dá pra levar sim, dá para essas crianças conhecerem, dá pra fazer roda de conversa, dá pra levar as crianças no Morro do Querosene, onde o Bumba Meu Boi tá mais próximo da realidade do Maranhão, dá pra fazer muita coisa e a gente consegue sim que essas crianças tenham acesso ao Meu Bumba Meu Boi.
Bel, qual a sua parte favorita do Boi?
Olha, por incrível que pareça, eu diria... [leve pausa] São várias, mas posso falar de quando eu era criança. Quando eu era criança [minha parte preferida] era o Auto [encenação teatral com Pai Francisco, Mãe Catirina e o Boi encantado], me encantava! Quando o Boi brincava na porta da minha casa, porque lá era assim, brincava na porta, eu ia dormir e falava "me acorda na hora da matança". Aí eu acordava na hora da matança, assistia o Auto e continuava assistindo o Boi, porque eu tinha medo de ficar acordada e dormir durante o Auto. Então eu dormia, minha mãe me acordava na hora do Auto e eu continuava acordada. Hoje, se a gente for falar do Boi aqui, por incrível que pareça, a festa do Boi não é só a apresentação ali na praça, né – a festa começa dias antes, quando você liga para a prefeitura... Mas eu gosto muito quando se tá preparando a comida. Ali eu sei que estamos juntos, sabe? Vamos brincar. Fazer a comida é quando estamos de festa e aí o Boi acontece.
Como foi ficar sem a festa durante o isolamento social?
Foi difícil Arrumei umas atividades online, mas a gente se reunia toda quinta-feira pra dançar online. Isso foi a nossa válvula de escape.
A arte tá muito presente na sua vida. O que ela representa para você?
Eu responderia em uma palavra: vida. Se hoje eu tô trabalhando, claro que já fiz muitos trabalhos que não eram voltados a arte, mas eu sempre tive... Ou eu dançava o Tambor de Crioula quando era criança, dancei Boi, dancei... Ela é vida porque eu preciso dela para sobreviver. E se alguém acha que é conversa – não é! Eu não conseguiria trabalhar em uma loja, por exemplo, das 8h às 17h, e chegar em casa e deitar. Eu preciso tá dançando ou fazendo um macramê, qualquer arte! Qualquer arte me faz relaxar, me tira o estresse, qualquer arte me deixa mais tranquila. Então, na pandemia, quando eu falei "eu preciso fazer alguma coisa ou eu vou deprimir", fui buscar curso. A arte salva e me salvou. Então, quando eu falo que arte é vida, é isso.
Você tem alguma dica ou algum conselho para quem vai ver o Boi pela primeira vez?
Pra quem vai ver o Boi pela primeira vez... [pausa longa] Olha, no Maranhão a gente tem uma frase que é "saber chegar", então, se você veio pela primeira vez, observa. Quando você observa, você entende o contexto, você sabe a hora de entrar, você sabe se pode chamar nessa hora pra perguntar alguma coisa, se pode pegar alguma informação; porque eu cheguei, observei e entendi qual o contexto, o que tá acontecendo, como isso funciona... O meu conselho é: observar.
Quando o papo se encerra, lembro dos dizeres do historiador Luiz Antônio Simas em "O Corpo Encantado das Ruas" (Civilização Brasileira, 2019): "A festa em tempos de crise é mais necessária que nunca. A gente não brinca, canso de repetir isso, e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura." Agora, mais do que nunca, é hora de se divertir.
Desligo o computador para brincar - tenho certeza que encontrarei Bel e o Boi em minha folia.
Comentários