A utopia de Régis Bonvicino se inicia na capa do livro recém-lançado “A Nova Utopia” (Quatro Cantos, 2022): uma máscara observa atentamente o leitor - no entanto, outras interpretações podem surgir: dois pulmões e a falta de um coração ou uma borboleta se metamorfoseando. Capa e poesia de Régis expressam o tempo social que estamos vivendo: desigualdade social, a decadência de países, metrópoles sujas, violência e a falta de direitos humanos (não é atoa que os mendigos aparecem tanto nos poemas).
As cidades estão presentes dos 67 poemas que começaram a ganhar forma em 2014 e que se alternam entre o gênero poema, prosa poética curta e prosa poética mais longa. "O livro consiste numa tentativa de interpretação dessas realidades e não em um "discurso" sobre ela, ou como os poemas são minuciosamente construídos. Escrita seca, mas sensível, articulando arte e cultura no cotidiano duro das pessoas na contramão dos sentimentalismos etéreos", explica. Assim, Régis aborda a miséria e os pobres.
As cores também estão presentes, fazendo o contraste da dura realidade ao sonho do poeta: em preto e branco, o livro retrata a indiferença, guerras, fascismo e a fome - como fazia Pier Paolo Pasolini em seus filmes.
Ao criar um jogo entre palavras e imagens, Bonvicino traz (e leva) a arte e questionamentos ao dia a dia cruel dos indivíduos: "Sacos de lixo abertos pela chuva: / Não é o acúmulo, é apenas o acúmulo, / um trovão detona a nuvem / o que está no poema / não está no mundo", como mostra o poema "Janeiro". A obra traz o incômodo, revivendo Pasolini, que ganha o poema "Tradução".
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O livro começou a ser escrito em 2014, mas só foi concluído e lançado este ano. Como foi retornar aos escritos depois de um tempo?
Eu não retomei os escritos. O livro foi escrito sem interrupção de 2014 a 2022.
Em uma entrevista sobre o processo de escrita, o senhor disse: "Eu acumulo material, mas preciso de um conceito para fazer algo". O seu processo continua assim?
É preciso sempre ter um conceito, uma ideia de construção do poema. Ele nunca vem de inspiração. Mas eu faço anotações o tempo todo. E depois elas se integram ou não em um poema.
Suas poesias são retratadas no âmbito das metrópoles. De que forma as metrópoles impactam sua vida?
Eu prefiro chamar de poemas e não de "poesias". As metrópoles impactam a vida de todos os brasileiros, haja vista suas adversidades. De acordo com o IBGE, os dados de 2021 indicam que mais da metade da população brasileira (57,7%), ou seja, 123 milhões de habitantes, se concentra em apenas 326 municípios (5,8% dos municípios). Meus poemas estão focados nos pobres e ou miseráveis.
Cotidiano, sentimentos e questões existenciais também estão em seus escritos. Como é possível encontrar um equilíbrio, após dois anos de isolamento e todas as atrocidades que vivemos?
A pandemia é mais uma tragédia e não a única. Portanto, escrever durante ou antes ou depois é a mesma coisa para mim. Uma parte do mundo está sob o fascismo.
Enquanto lemos "A Nova Utopia", imagens de cidades e seus personagens surgem em nossas mentes. Qual o poder da imagem?
Acho que surgem imagens porque procuro usar vocábulos concretos e não abstratos. Meus poemas, espero, são em si e não apenas falam sobre as situações.
O livro se altera entre o gênero poema, prosa poética curta e prosa poética mais longa. Como esses modelos surgem no processo de escrita?
Surgem da necessidade do que você quer dizer naquele poema.
Em "A Nova Utopia (1)", o senhor diz: "a nova utopia é inclusiva, participativa". O senhor acredita que possamos ter um mundo justo, onde "a nova utopia é um ajuste de contas contra o obscurantismo dos outros"?
Esse poema é irônico, tem que ser lido na chave avessa.
O poema "Tradução" é dedicado à Pasolini. O senhor se inspira no poeta italiano? Aliás, ele sempre procurou estar perto dos subproletariados italianos, como mostra no filme "Accattone - Desajuste Social”, me chama atenção que o senhor escreveu "a procurar irmãos que não existem mais"; de quem o senhor está falando? De pessoas que não existem mais, já que o consumo as corrompeu?
Pasolini é uma inspiração para todos. No poema que menciona, que é de Pasolini (eu inverti chamando-o de "Tradução") ele fala da Itália perdida e desfigurada pela sociedade de consumo. Acattone é um filme que me é um exemplo. Gosto muito.
Pessoas em situação de rua são personagens frequentes em "A Nova Utopia". Como foi retratar vidas tão sofridas? Aliás, a pandemia da Covid-19, trouxe a necessidade de abordá-los em seus poemas?
Essas personagens estão nos meus poemas em geral bem antes, mas bem antes mesmo, da pandemia. Como eu disse, a pandemia é só mais uma tragédia.
A última parte do poema "Arte" diz: "É um artista se entregando à polícia". É curioso imaginar um artista indo ao encontro de um oficial, que geralmente é contra as artes. Como seria esse embate? É necessário se sacrificar?
A arte hoje é uma rotina, que raramente desafia as instituições. Artistas são funcionários da arte, no mau sentido, no sentido inercial. Não sei como seria o embate entre arte e instituições, mas sei que todos querem estar no "sistema", pelo que noto.
Jean-Luc Godard, Pasolini, Allen Ginsberg e Paulo Leminski seguem vivos dentro de Régis Bonvicino, assim como a minoria, fazendo jus as palavras de Whitman: "Escuta, não dou lições nem esmolas, quando eu me dou, é por inteiro".
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